Fotos _ Cimi |
em CIMI
As conquistas sociais e humanas que obtivemos nas últimas
décadas, e das quais nos orgulhamos hoje, resultaram de processos
intensos de luta e de resistência. Não foi a espera passiva e acomodada
que nos levou, por exemplo, ao fim da ditadura. Ao contrário, foi o ato
de contestar e de reclamar justiça que contribuiu para que ruíssem os
alicerces do regime militar. Não foi a aceitação da violência e da
injustiça contra mulheres que nos conduziu às normativas que resguardam
os direitos femininos, e sim a luta corajosa e aguerrida de mulheres,
que enfrentaram a ira implacável de quem detinha o poder.
Em especial, não foi o sentimento de subserviência que
assegurou conquistas estabelecidas na Constituição Federal de 1988, que
ficou conhecida como constituição cidadã. O capítulo “Dos Índios”, no
qual se definem as regras do relacionamento do Estado Brasileiro com os
povos indígenas, resultou de uma intensa luta e de um desejo coletivo de
promover a justiça e estabelecer as bases de uma democracia que se
pretendia duradoura e regida pela ética.
Mas o reconhecimento do direito indígena às culturas, às
terras tradicionalmente ocupadas e aos modos próprios de organização
social, embora estabelecidos em nossa lei maior, não se efetivam
compulsoriamente. Cada território ancestral tem sido conquistado palmo a
palmo e através de muita luta. Estas terras são disputadas,
contestadas, reclamadas por particulares ou pelo poder público para a
construção de empreendimentos considerados urgentes para promover o
desenvolvimento nacional e regional.
A coragem e a resistência indígena tem assegurado, em parte,
a implementação da lei. Mas o preço para quem protagoniza estas lutas
tem sido alto – nas últimas décadas, muito sangue indígena banhou o
chão, muito sofrimento dobrou seus corpos, muito preconceito ganhou
expressão em canais midiáticos, sustentando-se na arrogância e na
intolerância de setores do agronegócio. Tem sido assim em diversos
estados do Brasil. Em Mato Grosso do Sul, especialmente, a violência é
marca registrada.
Desde da década de 1980 o Conselho Indigenista Missionário
–Cimi divulga o relatório da violência contra os povos indígenas no
Brasil. Em todos esses anos, Mato Grosso do Sul está no topo da lista de
agressões contra indígenas, de assassinatos e de suicídios. Nos últimos
12 anos, os relatórios do Cimi registram 585 suicídios e 390
assassinatos em Mato Grosso do Sul.
Informações como estas provocavam, há alguns anos, grande
comoção e repercutiram fortemente em diferentes esferas sociais,
oficiais e em meios de comunicação. Paradoxalmente, mesmo quando os
números demostram aumentarem as ocorrências, estes dados não repercutem,
o que indica a naturalização desta absurda realidade.
Os terríveis acontecimentos dos últimos dias envolvendo
terras Guarani e Kaiowá, cujos procedimentos de demarcação estão
avançados, trazem à tona um conflito intenso e silencioso que se estende
há mais de uma década, pois sobre estas terras estão ainda instaladas
fazendas.
A coragem dos Guarani e Kaiowá para lutar pela vida (que
para eles só se realiza plenamente no território) motivou retomadas de
terra realizadas em 28 de agosto, no município de Antônio João, e em 2
de setembro no município de Douradina, Mato Grosso do Sul. Estas
retomadas têm sido desqualificadas, e tratadas como atos de invasão por
parlamentares e ruralistas da região, que ignoram o fato de serem eles
os ocupantes (de boa ou de má fé) das terras tradicionais dos Guarani e
Kaiowá.
No município de Antônio João, a reação dos fazendeiros
contra os Guarani e Kaiowá do tekoha Ñanderú Marangatú resultou no
assassinato de Semião Vilhalva, um indígena de apenas 24 anos. No
município de Douradina, a violência dos produtores rurais se expressa
veementemente: “Fotografias de projeteis e cartuchos de armas de fogo de
diversos calibres, evidenciam os ataques desferidos contra os
Guarani-Kaiowá na noite de quinta-feira, 03” além disso, mensagens
veiculadas em redes sociais demonstram o planejamento de ações contra os
índios (conforme nota divulgada pelo Cimi, no dia 5 de setembro).
As famílias Guarani e Kaiowá retornaram, depois das
investidas dos ruralistas, para o tekoha Guyra Kambi’y, a 35 km de
Dourados, onde residem há mais de quatro anos. E mesmo estando em seu
tekoha, durante todo o dia de sábado eles foram vítimas de ataques de
milícias rurais. Os indígenas têm relatado as agressões sofridas e
solicitado que os órgãos públicos – Funai, Ministério Público Federal –
tomem as providências cabíveis. Eles informam que há um intenso
movimento de caminhonetes a cerca de 250 metros da aldeia, que os homens
que os ameaçam estão armados e que, na manhã de sábado, foram efetuados
mais de 200 disparos para amedrontá-los. Relatam, inclusive, que uma
retroescavadeira foi deslocada até as proximidades da aldeia,
possivelmente para destruir suas casas e pertences, caso as famílias
recuassem amedrontadas.
Apesar da intensidade da violência (protagonizada por
grandes fazendeiros e por seus jagunços), e dos insistentes contatos dos
indígenas para relatar as agressões que se estenderam por todo o dia,
foram tímidas as ações oficiais para coibir a ação criminosa e a ameaça à
vida de homens, mulheres, crianças e anciãos que se encontram no
tekoha.
No final da tarde deste sábado, 05, com a mediação do
vice-prefeito de Douradina, José Ailton Nunes, do cacique Ezequiel e do
presidente do sindicato rural da região, estabeleceu-se um acordo de
trégua e os ruralistas deixaram temporariamente as imediações do tekoha.
É importante dizer que as recentes ações de violência
decorrem da omissão do governo, uma vez que este não finaliza os
procedimentos de demarcação e não assegura a posse e usufruto exclusivo
dos povos indígenas. Com isso, o governo assume o risco do conflito,
assume o risco de morte dos indígenas, assume a responsabilidade pelas
agressões. A omissão, neste caso, é o mesmo que conivência com as
ilegalidades que se praticam e que envolvem interesses sobre as terras.
As retomadas feitas pelos Guarani e Kaiowá são uma forma de
dizer um basta à paralização nos procedimentos demarcatórios e à
violência silenciosa e cotidiana. Retomar a terra é atitude cidadã
daqueles que, sustentados por um direito legítimo, dão um passo na
direção de sua efetiva garantia, uma vez que o governo se mostra omisso.
Alguns poucos têm criticado as ações dos Guarani e Kaiowá.
Esses não entendem que as retomadas são também uma forma de escancarar a
situação em que vivem, a beira de rodovias, sob o risco de serem
atropelados, com suas crianças sofrendo de desnutrição, muitos sendo
assassinados. As retomadas expressam o desejo de mudança, e para
reverter esta situação precisam de seus tekoha.
Na história brasileira, usualmente se reconhece a coragem de
personagens e a legitimidade de movimentos sociais que ergueram seu
brado contra a opressão – homens e mulheres que lutaram contra o regime
escravocrata, que ousaram imaginar um Brasil sem autoritarismo, que
construíram as bases cidadãs e democráticas que nos regem hoje, e que,
hoje, lutam para que a pluralidade de formas de pensar e de viver seja
reconhecida.
Saudemos, pois, os Kaiowá e Guarani que, em sua incansável
resistência, atestam que a democracia é fruto de conquista e que a lei
existe para ser cumprida e não para permanecer como princípio abstrato,
ou para ser flexionada a partir dos interesses de quem dispõe de maior
poder econômico.
Apoiemos, neste momento, as lutas destes corajosos homens e
mulheres! Não nos cabe, em momentos como este, a indiferença. Não cabe
ao governo federal a omissão que, no contexto de conflito instaurado em
Mato Grosso do Sul, significa conivência com aqueles que sentenciam os
indígenas à morte. Que se promova a justiça através da imediata
desintrusão das terras Guarani e Kaiowá.
* Iara Tatiana Bonin é professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Ulbra
Nenhum comentário:
Postar um comentário