Indígenas do MS em recente protesto em Brasília _ CDHM |
Por Camila Emboava, em Folha de Dourados
No dia 29 de agosto, o líder Kaiowá Guarani Simião Vilhalva foi
assassinado durante um ataque à comunidade indígena de Ñanderu
Marangatu, no sul de Mato Grosso do Sul, fronteira do Brasil com o
Paraguai. Dezenas de pessoas foram feridas. O ataque aconteceu após uma
reunião no sindicato rural da cidade de Antônio João (MS), na qual os
ruralistas decidiram expulsar os Kaiowá Guarani que reocupavam a Fazenda
Barra desde o dia 22.
A área foi reconhecida como indígena pelo Estado em 2005, mas o
processo de demarcação foi suspenso por conta de um mandato de segurança
impetrado pelos fazendeiros. O caso espera uma decisão definitiva do
Supremo Tribunal Federal há dez anos.
Embora o fato tenha ocorrido há apenas dois dias, a notícia da morte de
indígenas por conta do conflito de terras é uma velha canção nos nossos
ouvidos. E como por vezes nossa história segue se repetindo como num
velho disco riscado, foi fácil matar o Kaiowá Simião. Há uma semana,
desde a reocupação dos indígenas, espalharam-se insistentemente boatos
de que os Kaiowá tinham incendiado fazendas e planejavam invadir o
município.
Um dos principais articuladores dessas calúnias foi o ruralista e
ex-deputado federal Pedro Pedrossian Filho, filho de um dos mais
importantes políticos da região. Pedro Pedrossian foi uma vez governador
do antigo Mato Grosso uno e por duas vezes governador do então Mato
Grosso do Sul.
No dia 27, Pedro Pedrossian Filho postou na sua conta pessoal do
Facebook fotos de um celeiro e de maquinários carbonizados alegando que
as imagens retratavam destruição feita por indígenas depois de invasão a
uma propriedade.
O post dizia: “Não basta invadir, tem que destruir! Eu não quero
comentar mais sobre isso pq todos já sabem a minha opinião e a partir da
minha decisão é que nenhum índio vagabundo quis roubar minha
propriedade. Agora se a decisão de vocês é esperar pelo Estado
inexistente, o resultado é o previsto… O nosso país se chama Brasil
(sic) ”. A publicação teve mais de 2.000 compartilhamentos (vários deles
na minha timeline inclusive) e mais de 70 comentários no estilo “Tiro,
bomba e porrada nesses vagabundos” e “tem que contratar um “Funcionário”
para eliminar esses índios inútil (sic)”.
A imprensa regional repetiu a versão dos ruralistas. Os indígenas,
por meio do perfil Aty Guasu, afirmaram que as imagens não eram da
ocupação. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) comprovou que as
imagens são de matéria publicada pelo portal paraguaio ‘Itapuá en
Noticias’ sobre um incêndio ocorrido no último dia 24 e causado por
curto-circuito em uma fazenda de Capitán Meza I, distrito paraguaio.
Veja a postagem de Pedrossian Filho aqui:
https://www.facebook.com/pfilho2?ref=br_rs
E a matéria sobre o incêndio aqui:
http://itapuanoticias.tv/index.php/capitan-meza-incendio-descomunal-genera-3500-millones-en-perdidas/
.
No dia 21, a proprietária atual da Fazenda Barra postou um vídeo no
qual, vestida toda de branco, lê uma carta aos “pares fazendeiros,
homens e mulheres que fazemos, que produzimos o alimento da mesa dos
brasileiros”. Fala do bem e do mal, diz que tem fé abominando esse braço
da Igreja Católica que é a CNBB e cita a Bíblia “seja quente ou seja
frio, pois os mornos eu vomitarei”. Bem, ontem os ruralistas realmente
“puseram quente” como se diz em Mato Grosso do Sul.
Depois da confirmação da morte do líder Kaiowá durante o ataque,
Pedrossian Filho – com a foto de perfil de terno, gravata e bigode,
bandeira do Brasil brilhante como capa – postou: “Na ausência do Estado,
nós temos que fazer a nossa própria segurança, de nossa família, de
nossas casas, de nossas vidas! Não é possível que alguém suporte tamanha
humilhação e desonra sem que nada seja feito. Ademais, não se entra em
casa alheia, em terra alheia sem que esteja preparado para o conflito,
para a guerra.(…)”.
Podia ter sido no século retrasado, mas foi agora. Foi também no dia
24 de junho deste ano que indígenas da comunidade Kurusu Amba foram
expulsos por pistoleiros de seu acampamento. Foram tantas vezes. E ainda
é um absurdo. Não apenas o discurso que sobrepõe sem nenhum rodeio o
direito à propriedade ao direito à vida. Não só a ironia de quem se
dirige aos pares produtores do alimento dos brasileiros e se refere a
uma das comunidades que tem o maior índice de desnutrição do país.
É absurdo o cinismo do Brasil enquanto Estado. Assegurou os direitos
indígenas na Constituição de 1988, previu as demarcações no prazo de
cinco anos e até hoje não concluiu. O Brasil que assinou a Declaração da
ONU sobre os Direitos dos Povos Autóctones, de 13 de setembro de 2007,
como observou o advogado Rogério Batalha no blog do Coletivo Terra
Vermelha “fez isso perante todos, perante o mundo, alegando não querer
deixar equívocos sobre o caminho que o Estado brasileiro pretende seguir
na sua relação com seus povos e comunidades indígenas”.
A mesma declaração foi assinada pela Noruega, por exemplo, onde a
notícia do assassinato de um líder indígena e o tamanho da morosidade
(seletiva?) da Justiça nas demarcações causam espanto porque soam
impensáveis. A Noruega é um exemplo de como o caminho para o
desenvolvimento não precisa atropelar os direitos e saberes indígenas.
Não precisa atropelar os direitos de ninguém, aliás. Atualmente moro em
Guovdageaidnu, no norte da Noruega, território tradicional do povo Sámi,
estudo na Sámi University College e percebo a valorização da
diversidade. É tão real quanto possível.
*A jornalista nasceu e mora em Campo Grande, no Mato Grosso
do Sul. É assessora de imprensa do Núcleo de Estudos e Pesquisas das
Populações Indígenas da Universidade Católica Dom Bosco - texto
publicado no Diário do Centro do Mundo. Ler original AQUI.
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