ENTREVISTA
“Quanto mais os fazendeiros matam lideranças
indígenas, mais bilhões de reais são destinados ao seu Plano Safra”. LT
Por Greenpeace
Material Enviado pela Ativista Dila Luna Matos
Mais um índio jaz no chão. Simião Vilhalva Guarani,
liderança indígena do povo Guarani Kaiowá, foi brutalmente assassinado
com um tiro no rosto dia 27 de agosto, enquanto procurava por seu filho
num córrego da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, no município de
Antônio João, Mato Grosso do Sul.
“A situação é praticamente de guerra”, explica Lindomar Terena, que
está na linha de frente dos conflitos entre índios e fazendeiros no Mato
Grosso do Sul, estado onde foram assassinados 41 indígenas só no ano passado
– o que representa 30% do total de ocorrências no Brasil. Segundo o
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de 2003 a 2010, o total de
índios assassinados na região foi de 250 frente a 202 casos no resto do Brasil.
Um dos principais líderes do povo Terena e representante da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Lindomar foi incluído
no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos após receber
várias ameaças de pistoleiros. Ele destaca a judicialização de
conflitos como um dos principais fatores que “eternizam” a questão.
Lindomar também aponta que o atendimento por parte do Estado aos
indígenas não existe. “Quanto mais os fazendeiros matam lideranças
indígenas, mais bilhões de reais são destinados ao seu Plano Safra”.
Leia a seguir a entrevista com Lindomar Terena, que fala sobre os
conflitos no Mato Grosso do Sul e como sua judicialização eterniza os
processos de demarcação de terras, além de comentar sobre a aprovação da
PEC 71 pelo Senado e da participação de parlamentares no ataque aos
Guarani Kaiowá.
Greenpeace - O estado do Mato Grosso do Sul tem um longo
histórico de conflito com os povos indígenas: são mais de 40 anos
marcados pela violência. Você pode contar um pouco, a partir da sua
experiência, como se construiu essa relação entre os fazendeiros e
indígenas a ponto de chegar na situação que presenciamos hoje?
Lindomar Terena - Primeiro que o conflito que vemos no Mato Grosso do
Sul hoje é um caso emblemático, que desafia os governantes a apontar
soluções para resolver a questão. É o estado campeão de violência contra
os povos indígenas, que mais assassina nossas lideranças – só no ano
passado foram 41 ocorrências. E a cada ano esse número tem crescido.
Isso tudo fruto de uma falta de vontade política do estado brasileiro em
sanar essa grande dívida que o País tem com os povos indígenas do
Brasil e especificamente do Mato Grosso do Sul.
“No Mato Grosso do Sul é uma situação praticamente de guerra. Só não digo que é guerra mesmo porque um dos lados, a comunidade indígena, não está armada”
No Mato Grosso do Sul é uma situação praticamente de guerra. Só não
digo que é guerra mesmo porque um dos lados, a comunidade indígena, não
está armada. Mas essa relação mudou muito com o tempo. Há 10, 15, 20
anos atrás nós tínhamos um espaço. Os povos indígenas do Mato Grosso do
Sul vivem em pequenos espaços reservados pela antiga SPI (Secretária de
Proteção ao Índio). São glebas de 2 até 3 mil hectares. Para você ter
uma ideia, em 1910, a terra onde eu moro, a TI Cachoeirinha, era uma
área reservada de 2,6 mil hectares para uma população de 200 indígenas. O
problema é que hoje a área continua a mesma mas a população é de 7 mil.
O mesmo acontece com os Guarani Kaiowá, o que faz com que esse povo vá
em busca de seus direitos conquistados na Constituição, porque não
existe outra alternativa para eles.
Greenpeace - A Terra Indígena (TI) Ñande Ru Marangatu, dos Guarani Kaiowá,
que foi atacada no sábado dia 27 de agosto resultando na morte da
liderança Simião Vilhalva, está com a demarcação travada no STF desde
2005, ou seja, há dez anos. Existem outras TI na mesma situação? O que
essa judicialização dos conflitos implica para os povos indígenas?
Lindomar Terena - A Terra Indígena Ñande Ru Marangatu teve sua homologação suspensa há
10 anos pelo ministro Gilmar Mendes, e esse processo paralisou, nunca
foi a votação, sempre enrolando. Dos 9,5 mil hectares que era a Ñande Ru
Marangatu, os Guarani Kaiowá conseguiram apenas 150 hectares. Hoje a
espera passa de 10 anos, e não restou outra alternativa para eles do que
entrar em suas áreas de direito, mesmo que isso acabe com morte.
Além da Ñande Ru Marangatu, tem a TI Kadiwéu, também no Mato Grosso do Sul, a TI Porquinhos, no Maranhão, e a TI Limão Verde,
que é terra Terena. Todos esses são territórios que ficaram travados e
eternizados no Poder Judiciário. Vou te dar um exemplo claro: a TI
Kadiwéu é uma terra homologada, mas seu processo ficou no Supremo
Tribunal Federal (STF) por 30 anos. E aí o ministro do STF olha o
processo e decide que o caso deve ser julgado na primeira instância, e
agora está correndo na primeira instância. Veja bem, um juíz levou 30
anos para decidir em qual instância se julgaria o caso. É uma estratégia
para dizer que há conflito federativo, o que envolve o estado, por isso
vem parar no STF. Essa é a estratégia dos ruralistas: travar as
homologações já feitas e judicializando as que estão em processo de
identificação e delimitação. Hoje, se a Funai publica um Grupo de
Trabalho para identificar e delimitar uma terra, imediatamente o
agronegócio entra na Justiça para judicializar e paralisar o processo.
Greenpeace - Como você avalia a atuação do poder público hoje na região do
Mato Grosso do Sul em relação aos conflitos fundiários? Existe algum
tipo de proteção ou auxílio? E especificamente sobre a Fundação Nacional
do Índio (Funai)?
Lindomar Terena - O atendimento por parte do Estado não existe, ele é morto. Nós temos
no Mato Grosso do Sul uma Superintendência de Assuntos Indígenas do
estado, mas que foi criada com o objetivo de desarticular o movimento
indígena. O articulador político da Superintendência, por sinal, é
ex-presidente da FAMASUL (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso).
A Polícia do Estado não nos atende. A morte que teve no município de
Antônio João, do Simião VIlhalva, a polícia estava no meio. Eu não
estava lá, mas temos provas. Na nossa região, quando acontece isso a
Polícia Militar está no meio, a Polícia Rodoviária Estadual também…
Estamos querendo denunciar que o Exército foi para lá e montou sua base
no portão do fazendeiro. Cabe uma denúncia, porque o que é que o
Exército está fazendo lá? Eles foram para proteger os produtores rurais,
e não para manter a ordem.
Vemos também portarias e decretos dos poderes Executivo e Judiciário
praticamente lavando as mãos. O Executivo fica mandando recadinho pro
Judiciário, e o Judiciário fica mandando recadinho para o Executivo…
ninguém assume a responsabilidade. Tem a Advocacia Geral da União (AGU),
que tem o papel constitucional de fazer a defesa dos territórios da
União, mas não vemos ela fazendo isso. O que vemos é a AGU prestando
consultoria e assessoria para a bancada ruralista e o agronegócio de
como se cria instrumentos para inviabilizar a demarcação de terras
indígenas no país. Nunca se viu a AGU, mesmo durante a ditadura militar,
prestando serviço ao agronegócio.
Sobre a Funai, os funcionários que estão lá são pessoas boas,
parceiros, mas é uma Funai fraca. Não há orçamento para fazer nada e
acaba sendo um prédio morto lá. Ela perdeu a força que tinha no passado.
Hoje a Funai não consegue exercer nenhuma autoridade, não é capaz de
ser um braço do Ministério da Justiça a ponto de invadirem seu prédio e
ameaçarem os funcionários.
Greenpeace - A exemplo dos Guarani Kaiowá, que estão sendo intimados fora
de seus territórios e mau vistos na cidade, presenciamos uma situação
semelhante no norte do Brasil com o povo Ka’apor. Você acredita que a
disputa que presenciamos hoje no Mato Grosso do Sul é uma disputa
nacional? Por que?
Lindomar Terena - Eu acho que a luta dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul norteia a
resistência em nível nacional. No nosso caso, a luta é pela vida mesmo.
Então acho que essa situação dos indígenas serem intimados quando vão à
cidade, isso é verdade, eu falo porque a gente vive isso. Então não é
fácil. A própria imprensa da região divulga que as demarcações indígenas
inviabilizarão o crescimento econômico do Estado, e a gente não pode
responder porque não vão nem publicar.
Greenpeace - A presidente Dilma disse mês passado que a ‘pátria do
agronegócio’ encontrou a ‘pátria educadora’, pois o agronegócio é o
setor que, segundo ela, consegue associar a qualidade das terras do País
com capacitação humana em ciência, tecnologia e inovação. Por outro
lado, essa tal ‘pátria do agronegócio’ financiou a região do Mato Grosso
do Sul e por consequência os conflitos…
Lindomar Terena - Acontece que eu não sei se o governo brasileiro fez uma opção ou se
já era por dentro capacho do agronegócio. Não dá para nós, enquanto
indígenas, aceitarmos essa fala da presidente, porque sempre esperamos
outra coisa desse governo. Não só os indígenas, mas os povos humildes do
Brasil esperavam que pudesse transparecer no governo Dilma o seu
passado. Mas foi o contrário: é no governo Dilma que o agronegócio mais
ditou regra no País, e é uma regra fadada ao fracasso porque hoje
vivemos em crise e o que o governo mais fez foi emprestar bilhões de
reais ao agronegócio, além de ser capaz de perdoar a dívida desses
produtores.
Greenpeace - Queria saber se você pode contar sobre o Conselho Terena e
sua função. Os integrantes do Conselho não temem virar alvo de
pistoleiros?
Lindomar Terena - O Conselho Terena surgiu em 2012 exatamente da necessidade de uma
organização nossa, no Mato Grosso do Sul, e da necessidade de reunir e
unir o nosso povo. E tem dado certo. Já foram mais de sete assembleias,
que ajudaram o nosso povo a avançar na recuperação dos nossos
territórios. O Conselho Terena é uma organização que não tem coordenador
geral, não tem presidente – está em processo de formação. Nós vamos em
diferentes Terras Indígenas, pegamos uma representação entre os caciques
dessa terra para compor o Conselho e falar em nome dele. Cada cacique
traz uma pessoa de confiança, que pode dar conselhos jurídicos ou pode
ser uma pessoa ligada à educação, para expandir nossa atuação.
Temos medo de virar alvo sim, porque recentemente a própria
Superintendência de Assuntos Indígenas do Mato Grosso do Sul publicou
uma carta com os nossos nomes, dos que compõem o Conselho. Quer dizer,
estão entregando a gente.
Greenpeace - Os deputados federais Luiz Henrique Mandetta (DEM/MS) e
Tereza Cristina (PSB/MS), além do senador Waldemir Moka (PMDB/MS),
estiveram presentes na reunião que incentivou produtores rurais a
organizarem o ataque na comunidade indígena Guarani Kaiowá. Como você
avalia a presença de parlamentares nesse episódio?
Lindomar Terena - Isso é péssimo, algo que não se espera. A sociedade não espera isso
de um parlamentar, que foi eleito para apontar soluções e criar leis com
o objetivo de resolver conflitos. Eles não foram eleitos para trabalhar
no mundo da pistolagem. Sabemos que os fazendeiros só tiveram força e
animação para atacar porque estavam lá deputado federal, senador… isso
legitima o ataque. Eles sabiam que tinha pessoas da lei do lado deles, e
que portanto os fazendeiros não seriam penalizados. Então vemos com
muita tristeza, porque a partir do momento que esses parlamentares
soltam notas e comentam sobre o assunto sem qualquer remorso ou dor,
percebemos que eles vêem essa morte [do Simião Vilhalva] como uma morte
qualquer, ou seja, se amanhã for mais um e depois de amanhã outro, tanto
faz para eles. Isso para nós é perder a capacidade de se ver como ser
humano. Na verdade são animais.
Greenpeace - A PEC 71 foi recentemente aprovada no Senado e agora vai para
apreciação da Câmara. O texto prevê indenizar proprietários com terras
incidentes em áreas indígenas, mas é fato que o montante para indenizar
os fazendeiros que estão em TIs é enorme e dificilmente o governo
conseguirá pagar em curto prazo. O que isso significa para os povos
indígenas, na prática?
Lindomar Terena - Olha, os fazendeiros sempre alegam que se pagar pelas terras eles
saem. E a gente sabe que não é isso, que não é assim. No Mato Grosso do
Sul tem um exemplo disso, que é a TI Buriti.
O governo acertou tudo para pagar e na hora os produtores recuaram, ou
seja, o agronegócio não quer receber. Eles ganham com a morte do nosso
povo. Infelizmente parece que no Mato Grosso do Sul, quanto mais eles
matam liderança indígena, mais bilhões de reais são destinados aos seus
Planos Safras. Essa PEC 71 é um instrumento para reafirmar essa fala
deles, mas sabemos que o que os ruralistas querem é protelar, protelar e
protelar.
Greenpeace - Você veio a Brasília para uma reunião sobre mudanças
climáticas. Hoje diversos estudos comprovam a eficácia das terras
indígenas no combate ao desmatamento, resultando em menos emissões de
gases de efeito estufa. Você acha que esse argumento pode ser usado para
avançar no processo de demarcação de terras?
Lindomar Terena - Acho que essa discussão sobre mudanças climáticas não está no centro
do poder brasileiro. Não sei até que ponto favorece porque o próprio
governo brasileiro não tem apresentado o que os povos indígenas e outras
organizações vem discutindo sobre mudanças climáticas. O Brasil acaba
seguindo um pouco a linha do mundo afora e deixa de discutir de fato o
País. Nos encaminhamos agora para a COP 21 e o governo brasileiro sequer
trouxe para debate o que vai ser apresentado. É algo que está sendo
feito em gabinete, sem participação do público. Então acho que para os
povos indígenas é importante a discussão, mas não sei até que ponto
contribuiria para a efetivação das demarcações das terras indígenas,
porque não é a linguagem que o governo está falando. Pelo contrário, ele
está falando em como mercantilizar as terras tradicionais, que é a
Agenda Brasil.
Greenpeace - Como você, representante dos povos indígenas, recebeu a notícia sobre a Agenda Brasil?
Lindomar Terena - Eu te disse que o agronegócio tem comandado o Brasil, e uma prova
disso foi essa agenda. Para sair da crise, causada por eles, teria que
mercantilizar as terras indígenas no Brasil.
Greenpeace - Sobre as retomadas, você acredita que elas são um último recurso depois de tanta espera por ações do poder público?
Lindomar Terena - As
retomadas são um recurso legítimo. Todas as terras indígenas que temos
no País hoje jamais teriam sido demarcadas sem que houvessem retomadas. A
retomada é o último instrumento nosso, em que a gente pode de fato ver a
recuperação do território. Nós, do Mato Grosso do Sul, estamos
decididos que não voltamos atrás, mesmo que para isso tenhamos que
passar por alguma situação. Nós vamos dar sequência as nossas ações de
retomada. Ler Original AQUI.
Foto _ Fábio Nascimento / MNI)
Foto _ Fábio Nascimento / MNI)
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