Muito embora a questão territorial seja o
principal vetor da matemática cruel de subtração de vidas indígenas no
Mato Grosso do Sul, o processo corrente de genocídio espraia-se por uma
ideia antiga de completa interrupção do Ser indígena autodeterminado em
interface com a sociedade envolvente e o Estado colonial. O Guarani e
Kaiowá, o Terena, na concepção do ruralismo, não podem deixar a condição
de ‘bugres’. O corrente processo de criminalização e perseguição ao
advogado Terena Luiz Henrique Eloy (foto) revela a arqueologia da
violência no MS. O indígena, hoje doutorando em antropologia social pelo
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem
sofrido assédios judiciais e pedidos – o segundo em menos de dois anos -
de cassação de seu registro na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pela
Federação de Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul) e
Associação dos Criadores do Mato Grosso do Sul (Acrissul).
A perseguição teve início quando Eloy participou
da ação judicial, no âmbito da assessoria jurídica do Cimi, contra o
chamado Leilão da Resistência, criando obstáculos intangíveis aos
realizadores do evento. Em novembro de 2013, fazendeiros se reuniram na
Acrissul para organizar um leilão de animais com o intuito de angariar
fundos contra as retomadas indígenas. A intenção dos idealizadores era
investir na “segurança” de propriedades sobrepostas a terras indígenas. A
ação judicial barrou inicialmente a realização do leilão,
posteriormente liberado, mas com a utilização dos recursos angariados
controlada pela Justiça Federal e pelo Ministério Público federal (MPF).
A ministra da Agricultura Kátia Abreu e o deputado federal Luiz Carlos
Heinze (PP/RS), que naquele mesmo ano, em dezembro, declarou que
“índios, gays e negros são tudo o que não presta”, estavam presentes no
evento.
Conforme o Terena, a Famasul e a Acrissul já
trocaram três vezes de escritório advocatício depois de tentativas
judiciais fracassadas de impedi-lo de exercer a profissão. “A minha
banca de mestrado aconteceu numa aldeia Terena. Então eles ingressaram
com uma ação judicial para tentar suspender a banca, mas a Justiça
Federal decidiu que a universidade tem autonomia científica, e que isso
não constitui crime algum, haja vista que os Terena estão na posse por
força de decisão judicial do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª
Região)”, explica o advogado Terena. Quando se deram conta de que Eloy
tinha um registro na OAB, os ruralistas começaram a colocar em dúvida se
Eloy era indígena. “Diziam que eu não era índio, que o Cimi tinha
pedido para eu me identificar como Terena só para dar força à luta. Eles
não querem admitir que eu sou indígena e ao mesmo tempo advogado. Não
admitem que eu possa demandar na mesma técnica e competência deles”,
analisa.
Dessa trajetória de perseguição infrutífera em
resultados positivos aos intentos ruralistas, surge a representação
contra Eloy afirmando que ele fere o Código de Ética e o Estatuto da
OAB. A Comissão do Agronegócio da Ordem no Mato Grosso do Sul subscreve a
representação. “Juntam documentos do Cimi da década 1990, período que
ainda eu morava na aldeia e nem passava pela cabeça um dia ser advogado.
Me acusam ainda que por ser indígena eu estaria orientando e
incentivando as lideranças indígenas a retomarem terras, que minha
conduta é inidônea, pois no ano passado defendi minha dissertação de
mestrado em área de retomada. Nada concreto ou que de fato demonstre que
cometi alguma irregularidade”, afirma o advogado Terena. Juntam ainda
no processo a cópia do perfil de Eloy no facebook e e-mails, alegando
que o indígena divulga cartas do Conselho Terena e que isso não é
conduta de advogado.
Os ruralistas chegam ao cúmulo de acusar Eloy de
advogar para os indígenas, como se fosse crime ou prova de prática
amoral. “Eles juntaram ao processo meu curriculum lattes que mostra que
eu atuo em todos os processos demarcatórios ou criminais, defendendo
lideranças indígenas, como assistente de acusação naqueles em que houve
morte de liderança e na academia (mestrado e doutorado) tenho feito
formação de lideranças. Por meio das grandes assembleias indígenas e
cursos de formação de lideranças e professores, temos capacitado
lideranças para defenderem seus direitos. Eles querem nos intimidar e
fazer recuar, usando todo poder e influência que têm no Estado”, diz
Eloy.
Uma das articuladoras das ‘provas’ contra Eloy é
a também advogada e ruralista Luana Ruiz. A documentação juntada aos
autos contra o Terena foi recolhida por ela. Luana esteve nos recentes
noticiários do assassinato de Semião Vilhalva. Presidente do Sindicato
Rural de Antônio João, a mãe de Luana, Roseli Maria Ruiz, liderou um
comboio com cerca de 100 camionetes para atacar o tekoha - lugar onde se
é – Ñanderú Marangatú, no último dia 29 de agosto. Roseli pretendia
reaver a fazenda, que se diz herdeira, sobreposta à terra indígena
homologada em 2005. Uma das armas dos fazendeiros presentes no ataque
lançou um balaço mortal no rosto de Semião, que procurava o filho em
meio ao caos imposto pelos invasores ruralistas. Dias depois, Luana
defendeu aos jornalistas sul-mato-grossenses a utilização de armas
contra indígenas para defender supostas propriedades privadas. Luana
possui um escritório advocatício que se especializou em entrar com
ações questionando demarcações, ou pedindo reintegrações de posse. A
advogada acusa a Funai, o Cimi e os indígenas de crimes como terrorismo,
práticas de guerrilha e formação de quadrilha.
Na Comissão de Assuntos Indígenas da OAB/MS,
Luana também tentou interferir. No entanto, foi barrada de um jeito
peculiar: durante um ritual Guarani Kaiowá em uma das sessões da
Comissão, a ruralista começou a passar mal. Conforme a descrição de quem
presenciou a cena, Luana parecia sufocar. Com as mãos no pescoço e o
rosto vermelho, se retirou da reunião para nunca mais voltar à Comissão.
Porém, segue na OAB e nos tribunais, advogando em causa própria e
disseminando calúnias – como as que dispara contra Eloy Terena.
Conforme a presidente da Comissão de Assuntos
Indígenas, Sâmia Barbieri, as acusações contra Eloy são despropositadas e
fruto de mera perseguição política, que ela afirma sentir na pele. Em
2013, durante reintegração de posse na Terra Indígena Buriti, que
culminou no assassinato de Oziel Terena, cujo processo judicial tem mais
de mil páginas inconclusas sobre de que policial partiu o tiro que
matou o indígena, a comissão foi acusada pela Polícia Federal de incitar
a violência que culminou com a morte de Oziel. Sobre o Cimi recai a
mesma acusação. O processo ainda está aberto.
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