Cerca de 150 indígenas Kaiowá e Guarani do tekoha ("lugar onde se é")
Guaiviry, no município de Aral Moreira (MS), fronteira com o Paraguai,
puderam dormir em paz pelo menos nesta última noite, sem o risco de
serem despejados de modo violento, como tem acontecido recorrentemente
no estado.
O presidente
do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski,
deferiu a Suspensão de Liminar 929 no final da tarde desta quarta-feira
(21), suspendendo, deste modo, a reintegração
de posse que seria realizada amanhã (23), segundo a Polícia Federal
havia informado a Fundação Nacional do Índio (Funai).
A forte base de
operações policiais montada para executar o despejo de Ñhanderu
Marangatu, suspenso na madrugada desta quarta-feira (21) também pelo
STF, permanecia montada na cidade de Antônio João, segundo informações
de movimentos sociais que estiveram presentes no local ontem. Como a
posição dos Guarani e Kaiowá era de não abandonarem sua terra
tradicional, os conflitos eram iminentes.
Segundo
informa Ava Apika Rendy Ju, uma das lideranças da retomada, os
indígenas permanecerão na área, mesmo com o ataque policial [leia o depoimento na íntegra, ao final da matéria].
Em nota técnica, a Funai afirmou temer "risco de óbitos decorrentes de
um possível conflito entre índios e policiais, tal como no caso da
reintegração de posse em que veio a óbito o indígena Oziel Terena", e
informou que, do total de moradores de Guaiviry, 68 delas são crianças e
jovens menores de 18 anos, e 14 são idosos.
Em
junho, os indígenas retomaram as fazendas Água Branca e Três Poderes,
que incidem sobre o território reivindicado. Os proprietários das duas
fazendas entraram com pedidos de reintegração na 1a Vara de Justiça Federal de Ponta Porã que, então, determinou a retirada dos Kaiowá em ambas as propriedades.
Histórico
Entre
2005 e 2011, os indígenas realizaram diversas tentativas de retomar
parte de seu território originário. Em novembro de 2011, o rezador Nísio
Gomes foi assassinado a tiros durante tentativa de expulsão dos índios
de área ocupada. O Ministério Público Federal (MPF) denunciou 19 pessoas
pelo ataque - entre eles, fazendeiros, advogados e um secretário
municipal, além de proprietário e funcionários da Gaspem, empresa de
segurança privada. Após o ataque, a comunidade conquistou 79 hectares, onde viviam 66 famílias.
No
dia 24 de junho deste ano, em protesto contra uma decisão da Justiça
Federal que negava pedido de danos morais coletivos contra o
proprietário Gaspem, Aurelino Arce, as famílias de Guaiviry ocuparam as
fazendas Água Branca e Três Poderes, que incidem sobre o território
reivindicado.
Suspensão
Horas antes da polícia iniciar o despejo de cerca de mil indígenas do tekoha
Ñhanderu Marangatu, em Antônio João -, a ministra do STF Carmen Lúcia
acatou pedido da Funai de suspensão da liminar de reintegração.
Em
agosto, cerca de 500 indígenas iniciaram a retomada de cinco fazendas
que incidem sobre o território tradicional de Ñhanderu Marangatu. A
resposta dos proprietários das fazendas foi brutal: armados, e sob ordem
de uma fazendeira local, Roseli Maria Ruiz Silva, atacaram brutalmente
os indígenas, culminando na morte de Semião Vilhalva, jovem Kaiowá de 24
anos, com um tiro na cabeça.
Comitiva
Para
tentar garantir que confrontos como o da fazenda Buriti, no Pantanal,
onde durante reintegração de posse, em 2013, foi assassinado o indígena
Oziel Terena, uma comitiva de entidades de direitos humanos e movimentos
sociais foi formada para acompanhar as reintegrações. Eles também
buscam coletar informações para possíveis denúncias de violações junto a
organismos internacionais de direitos humanos.
Além
de representantes indígenas do Conselho da Aty Guasu (Grande Assembleia
Kaiowá e Guarani) e do Conselho Terena, fazem parte do grupo o Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), Via Campesina, Comissão Pastoral da
Terra (CPT), CDDH, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Cebi, Coletivo Terra Vermelha (CTV), Copai/OAB, Renap, Marcha Mundial
das Mulheres, Levante, Cedampo e Tribunal Popular da Terra (TPT-MS). O
grupo continuará acompanhando as próximas reintegrações de posse, e
estará presente na próxima sexta, em Guaiviry.
Depoimento de Ava Apika Rendy Ju, liderança de Guaiviry
A
comunidade do Guaiviry, quando soube da decisão do despejo, decidiu
permanecer lá. E o recado é o mesmo de sempre: que ninguém vai sair de
lá, vai permanecer. E vai morrer tudo lá. Quem for fazer o despejo, é
pra matar todo mundo: cachorro, gato, pra nenhuma pessoa sobreviver.
Porque se deixar uma, duas pessoas, essas pessoas sofreriam muito a
perda de todas as outras. Então a decisão é que, morrendo todo mundo,
ninguém ia ficar sobrando pra sofrer a dor da perda dos parentes.
Nós
temos a visão de que aquela terra nos pertence desde o início. E que a
terra tem um significado diferente do que tem o significado para o
capitalismo, que você só produz dinheiro sobre a terra.
Para
nós, tem outro significado, que são os matos, as caças, banho de água
na cachoeira; quando você vai plantar em nome de Jaikará [o deus do
milho, para os Kaiowá], quando você vê a estrela do céu, isso tudo é a
vida na terra. É muito ampla e fora do que você entende por dinheiro.
Isso é o que se chama vida. E entre nós, Guarani e Kaiowá, sempre
conseguimos viver em harmonia com eles, sem agredir eles e sem eles nos
agredir.
São
Paulo é a prova disso. Agora tem escassez de água, de chuva. E o Rio
Grande do Sul com as inundações, isso por quê? Porque a maior parte da
exploração desses lugares, da terra, ali a terra e a vida foram
ofendidas e agora elas estão respondendo isso desse jeito. E quem sofre
mais são os pobres e não os ricos que exploraram a terra. Quando a gente
pensa nesses lugares e nessas situações, a gente percebe o que o
Guaiviry representa para nós Guarani e Kaiowá.
Então
a gente diz que defender esse direito de vida, não é defender para o
grupo de pessoas ali do Guaiviry. É contemplar a vida de todo mundo.
Porque se salvar o Guaiviry a gente salva a água embaixo da terra que
está lá, os animais, tudo que possa procriar de novo, recuperar as
plantas que estão sendo extintas.
Então
isso da gente defender o Guaiviry, dar a vida, defesa com o nosso
próprio sangue, dar a vida do nosso próprio filho, da mulher se
sacrificar, é pro bem de tudo, é o bem do futuro, de todos.
Queria
que isso fosse entendido por pessoas que vivem dentro da cidade e às
vezes não tem noção de onda mora e nem do que está ao redor, porque está
num prédio cercado de mais prédio de mais prédio.
Quando
você chega no Guaiviry, todas as crianças ficam felizes, pulando,
cantando. Se você chega numa criança urbana você vai ver o quê? Pra
ficar feliz tem que levar no parque de diversões, que é uma ilusão,
porque você leva o filho lá e não se diverte tanto. Ou você vai levar no
zoológico pra conhecer os animais.
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