Por Elaine Tavares
O dia nascera emburrado,
mas no alojamento, o povo já se preparava. Estavam ali há três dias, em
intensos debates sobre como sobreviver na universidade. Eram jovens de
vários lugares do Brasil, de variadas etnias indígenas. Já tinham
discutido o acesso, a permanência, o preconceito, a demarcação das
terras, a violência que ainda enfrentam, seja ela sutil ou explícita,
como a que vive o povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Tinham
também ouvido as experiências de parentes da Colômbia, do México, do
Equador e de outros cantos da América Latina.
Haviam compreendido que
estar na universidade dos brancos era também uma forma de resistir.
Entrar, colocar a cunha, mostrar a cultura, dividir saberes ancestrais.
Aprender, mas também ensinar. E, no diálogo com os companheiros
latino-americanos, também entenderam que o movimento indígena brasileiro
tem de avançar para a criação de uma universidade própria, indígena,
para que, aí sim, possa realmente existir o diálogo intercultural. Um
desafio que ficou para ser desvelado e superado.
Só que naquela tarde não
haveria discussão. Eles marchariam até o centro da cidade, ocupando as
ruas com suas cores, danças e cantorias. Florianópolis, tão acostumada a
presença silenciosa dos Guarani, haveria de conhecer a garra Tuxá, o
grito Xavante, Pataxó, Pancararu. E assim foi. Saindo da UFSC, a coluna
indígena foi passando pelos caminhos, incendiando a cidade. As janelas
se abriam e caras admiradas surgiam, bocas abertas. O que era aquilo?
Cantando e dançando os
estudantes iam mostrando a beleza de suas culturas. Quando chegaram ao
túnel que leva ao centro, eles tomaram conta de todas as pistas e, por
alguns minutos, bailaram em círculos, com gritos e passos cadenciados.
Era a expressão da alegria, o encontro sagrado com as raízes, a apoteose
da cultura.
Seguiram caminho até o
centro, percorrendo mais de 20 quilômetros e lá, no meio do Mercado
Público gourmetizado, ocupado agora apenas por turistas e riquinhos, de
novo entoaram seus cantos, no bailado xamânico. As pessoas paravam,
admiradas e estupefatas. E os Tuxá puxavam seus cantos caboclos,
evocando os deuses das florestas e dos igarapés. Momento mágico.
O próximo passo era o
mais esperado. Sob a ponte que liga a ilha ao continente, desde há anos
se mostra, arrogante, o colonizador. Uma estátua erguida para homenagear
aquele que, conforme dizem os não-índios, “fundou” a cidade: Francisco
Dias Velho. Em pé, nariz empinado, segurando o mosquete, o bandeirante
matador de índios, que comandou caçadas por todo o sudeste antes de
chegar à ilha, olha para o centro da capital e dá nome ao elevado que
corta a beira do mar.
Numa correria louca, os
estudantes atravessaram a perigosa autoestrada no rumo da estátua.
Burlando a polícia que acompanhava a caminhada eles assomaram, gritando
como se fossem para a guerra. Num átimo, sem que os policiais esboçassem
reação eles já estavam ao pé da estátua. Dois deles subiram no pedestal
e a enrolaram numa faixa, na qual estava escrito: DEMARCAÇÃO. Depois,
afixaram cartazes com apoio aos parentes Guarani Kaiowá.
Falas repúdio ecoaram
frente a estátua do assassino que havia varrido do litoral a presença
Guarani. “Homens como Dias Velho ainda estão por aí, com suas armas na
mão, matando índio. O massacre de nossa gente continua. Não é possível
que continuem fazendo homenagens aos escravistas assassinos.” E, em
volta da figura do matador, eles dançaram e fizeram pajelanças. Nenhum
passo atrás, a luta vai prosseguir.
Dois dias depois, quando
todos já tinham partido da cidade para suas regiões, passei pela ponte
e, surpresa, vi a estátua ainda coberta com a faixa. Ninguém se
preocupara em desembrulhar. Dias Velho estava cegado pela palavra
“demarcação” e só o mosquete aparecia. Antes, como hoje, as armas ainda
estão apontadas para os índios. Mas, a diferença é que agora, eles não
têm medo algum.
Que vivam os povos indígenas desse país e de toda Abya Yala.
Nenhum comentário:
Postar um comentário