Um
grupo de famílias Guarani e Kaiowá ocupou há uma semana pequena porção
de mata, menos de um hectare, no território indígena Iguatemi Peguá I.
Ocupado por aproximadamente 20 pessoas, sendo a maioria anciãos e
crianças, a área pertence ao tekoha Mbarakay e é uma das poucas com
árvores, banhado, capoeira e biodiversidade dentro de uma imensidão de
terras devastadas pelo agronegócio no cone sul do Mato Grosso do Sul.
Mbarakay está sob o domínio de fazendeiros criadores de gado. Os
indígenas entraram no terreno com o intuito de acessar os direitos
humanos mais básicos: água, comida, remédios naturais e um pouco de paz.
Não se tratava de uma retomada. Mesmo assim, o grupo acabou atacado e
torturado por pistoleiros fortemente armados e organizados num bando.
Além
dos feridos, há dois desaparecidos: uma criança e uma jovem de 17 anos.
O Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio
(Funai), que estiveram com os indígenas e também no local dos ataques,
têm indícios de que houve ao menos um assassinato, possivelmente da
jovem desaparecida. Investigações estão em andamento.
Segundo
depoimentos concedidos pelos Guarani e Kaiowá, entre lágrimas e
desespero, após um ataque inicial efetuado por meio de disparos com
armas letais, os indígenas - crianças, jovens, homens e mulheres,
sobretudo anciãos - sofreram tortura e espancamentos. Apanharam
indiscriminadamente golpeados com coronhas de armas e agredidos com
socos e pontapés. Uma jovem teve o cabelo arrancado enquanto as mulheres
idosas suplicavam de joelhos pela vida do grupo ao “capanga chefe”,
como os indígenas o denominaram. Este sujeito, segundo os Kaiowá,
gerenciava os limites das torturas e, conforme os indígenas, demonstrou
que a ação era premeditada. Quando alguém estava apanhando muito, ele
pedia para substituir o agredido ou diminuir a intensidade.
Após
horas de terror, os relatos revelam que alguns idosos tiveram seus
tornozelos quebrados antes do grupo ser expulso do local e ter o
acampamento incendiado. Os indígenas então caminharam um longo trecho
até a rodovia. Já na estrada, carros começaram a circular ameaçando
novamente o grupo, que amedrontado e desnorteado se escondeu no mato
para esperar o amanhecer. Quando pela manhã foram encontrados por
servidores da Operação GuaraniFunai, já haviam percorrido quilômetros em
direção à aldeia de Limão Verde, município de Amambai, e estavam
extremamente fragilizados.
O
MPF e servidores da Funai estiveram na aldeia Limão Verde e no local do
crime. Investigam o caso. Os agentes públicos estão chocados com a
brutalidade do ataque. Há fortes indícios de que houve o assassinato de
ao menos uma pessoa e tudo indica, pelo relato das testemunhas, de que a
jovem de 17 anos - desaparecida - tenha sido morta pelos pistoleiros.
Em depoimento, um indígena que trabalha numa das fazendas da região
afirmou que os pistoleiros, depois do ataque, se vangloriavam do ato
criminoso e que um deles afirmou que acertou disparos em uma índia.
O
tekoha Mbarakay foi identificado pela Fundação Nacional do Índio
(Funai) como de ocupação tradicional dos Guarani e Kaiowá (Seção 1 do
Diário Oficial da União – 08 de janeiro de 2013). De lá os Guarani e
Kaiowá foram expulsos há poucas décadas e aguardam que o governo federal
conclua o procedimento de demarcação e assim consigam retornar e viver
em paz na terra tradicional. A pequena área de mato ocupada pelos
indígenas fica distante cerca de 10 km de qualquer sede de fazenda nas
redondezas.
DOF mais uma vez presente
Nos
depoimentos ao MPF, os indígenas alegam que os ataques foram precedidos
pela presença do Departamento de Operações de Fronteira (DOF), que
teria ‘encontrado’ os indígenas e esteve no acampamento antes da ação
violenta dos pistoleiros. Este fato remete a uma dolorosa constatação:
em todos os relatos dos últimos 14 ataques sofridos pelos Guarani e
Kaiowá por grupos com características de milícia, existe o testemunho de
que o DOF chega aos locais onde os indígenas estão acampados para
averiguar a situação e minutos depois os pistoleiros atacam
violentamente.
Recentemente
ocorreram fatos semelhantes em Pyelito Kue, município de Iguatemi,
pertencente ao mesmo estudo de delimitação de Mbarakay: pessoas foram
espancadas, baleadas, amaradas, transportadas à força e uma mulher foi
estuprada por vários homens. Neste caso a presença da Polícia Federal
chegou a ser desarticulada por conta de um relato de membros do DOF de
que os indígenas teriam voltado a seu antigo acampamento, o que não
condizia com a verdadeira situação, e que permitiu a investida dos
jagunços.
A
cena se repete no caso de Kurusu Amba, onde o DOF participou de reunião
interna do sindicato rural de Amambai e acompanhou os agressores até a
localidade do acampamento indígena em que houve incêndio de barracos,
ataques armados e duas crianças ficaram desaparecidas. Em outros casos,
como de Ñanderú Marangatú, município de Antônio João, onde Semião
Vilhalva foi assassinado e outras pessoas espancadas, o DOF esteve
presente; o mesmo se repetiu em Potrero Guasu, município de Paranhos,
onde a comunidade foi atacada e três pessoas foram baleadas. Nestes
cinco casos, o DOF se fez presente para averiguações e chegou a
acompanhar os agressores até a entrada das aldeias e acampamentos;
minutos depois de sua saída, os indígenas foram covardemente agredidos,
torturados e expulsos.
Contra
esses fatos não se percebe reação do Estado ou do governo federal; não
há nenhuma intervenção e ação direta dos poderes públicos. O Direito, o
Ministério Público Federal (MPF) e os organismos internacionais, caso da
Organização das Nações Unidas (ONU), chamam a isso de genocídio.
Ódio e violência: genocídio
Oriel
Benites, liderança indígena que recebeu e ouviu os relatos dos
indígenas que chegaram à aldeia de Limão Verde, desabafou: “Nada
justifica esta covardia. Ao ouvir os anciãos, chorávamos por dentro.
Todos na aldeia choraram. Não se trata de conflito ou retomadas em sedes
de fazenda, mesmo que estas estejam dentro de aldeias e que seja nosso
direito reivindicar nossos territórios. Estes velhinhos apenas foram ao
mato ser felizes. Quando chegaram, não acreditamos. A que ponto chega a
covardia e o ódio destes fazendeiros? E o pior é que não é a primeira
vez, já aconteceu antes. Não se trata de conflito, nunca se tratou, se
trata de massacre, não podemos nem caminhar mais, somos menos que
animais, eles fazem o que querem contra velhos e crianças e ninguém faz
absolutamente nada”, disse com a voz trêmula.
Até
quando se permitirá que fazendeiros criminosos atuem contra os
direitos, a democracia e o próprio Estado? Até quando se permitirá que
os genocidas do agronegócio comandem a política e o Judiciário? Até
quando se permitirá que as comunidades sejam vilipendiadas em seus
direitos fundamentais sem que haja qualquer tipo de intervenção do
governo federal? Lamentavelmente a resposta do governo aos crimes contra
a vida e contra o direito à demarcação das terras é a omissão, uma
característica constrangedora de um governo que está de joelhos diante
do altar do crime em Mato Grosso do Sul, do latifúndio do boi e da soja.
Atualizado em 16 de outubro, às 15 horas.
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