5 de outubro de 2015

Clima de terrorismo impede demarcação de terras indígenas

Para o procurador Marco de Almeida a União não atende nem aos agricultores nem aos indígenas.


SEMANA ON
 
Ao defender as comunidades indígenas, o Ministério Público Federal não está apoiando um determinado grupo social em detrimento de outros, não se trata, como argumenta o procurador do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul Marco Antônio Delfino de Almeida, simplesmente de defender uma causa, mas de garantir os direitos constitucionais.

 “É preciso que fique claro: o que o Ministério Público está defendendo é a Constituição Federal. A defesa das comunidades indígenas é igualmente um mandato expresso do Ministério Público Federal”, defende o procurador.

A pauta da demarcação de terras indígenas já é antiga e há sete anos não avança. “Desde 2008, há esse clima de terrorismo que impede que o processo de demarcação avance. O próprio governo federal recuou politicamente. Ele entende que politicamente não é uma briga que vale à pena de ser travada”, descreve.

Frente a esta queda de braço, onde de um lado estão as forças políticas amparadas pelos setores mais conservadores do Congresso e de outro os indígenas e os movimentos sociais, o governo parece se furtar ao debate. “O que vejo, infelizmente, é que a União fica numa posição extremamente cômoda. Há um compromisso político, mas com um determinado segmento.

E aí se usa o eufemismo de que a demarcação vai avançar com responsabilidade ou acordo e, ao mesmo tempo, se faz compromissos com as lideranças indígenas de que irá cumprir seu papel”, aponta o procurador. “Ou seja, a União tenta atender a todo mundo (produtores rurais e indígenas) ao mesmo tempo, mas não atende ninguém. Enquanto não começar a atuar e sair dessa posição cômoda de imobilismo nada vai avançar”, complementa.

ENTREVISTA


Qual o cenário do processo de demarcações de terras indígenas hoje?

O que temos é um cenário absolutamente de impasse e que só prejudica todo mundo. Temos várias decisões judiciais que asseguram aos indígenas permanência no território. Essa é uma permanência precária. São necessárias medidas judiciais adicionais para assegurar escola, para água, para produção, entre outras. Também são áreas pequenas, que representam uma pequena fração do território a que eles têm direito. E que apresentam todos os empecilhos jurídicos para que seja plenamente utilizado. Por parte dos produtores rurais é um prejuízo econômico, por conta da retirada dessa área da parte produtiva. Para a União a situação é extremamente cômoda. Ao ser chamada para intervir, sustenta:  “não, essa área está em litígio”. E assim, simplesmente, permanece silente. As mesas de negociação que ocorreram não avançaram. Nós não temos uma perspectiva, em médio prazo, de solução. O governo, de uma forma muito clara, tem ações contraditórias.


Ainda que nós, muitas vezes, tenhamos essa pecha de que somos defensores incondicionais dos direitos indígenas, é preciso que fique claro: o que o Ministério Público está defendendo é a Constituição Federal.

Houve um momento, em 2007, que governo e MPF sentaram numa mesa, houve negociação que resultou em um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Mas, pelo que o senhor afirma, já no outro ano as determinações desse documento não valiam mais para o governo. É isso mesmo? E o MPF está tendo, agora, que intervir nesses mesmos pontos apenas para fazer com que o TAC seja cumprido?

Sim, sim, é isso. São vários problemas. O TAC é um compromisso que normalmente o MPF celebra com particulares, eventualmente com órgãos públicos. É extremamente complicado, num país em que entendemos que as instituições devem funcionar, que o órgão responsável pela execução da política indigenista necessite da assinatura de um instrumento deste teor para se comprometer a cumprir os seus deveres constitucionais. O que ele veio aportar, o que o TAC diz é isso: “Funai, ao invés de se fazer esse processo à conta-gotas, a identificação de territórios, faça de uma forma concentrada, cumpra-se sua obrigação”. Obrigação essa que a lei 6.001/1973 estabeleceu, desde 1978. Que, em cinco anos, todas as terras deveriam ser demarcadas. Posteriormente, em um novo desapreço aos Povos Indígenas, este prazo é prorrogado e inserido, expressamente, na Constituição Federal. Até 1993 todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas. Não o foram. Caracterizada a omissão no cumprimento da Constituição. O TAC concede um novo prazo para a ocorrência deste cumprimento. O governo federal com toda a pompa e circunstância assina o compromisso. Não quero crer que a Funai tenha assinado  um TAC sem o expresso assentimento do  Ministério da Justiça e sem que tenha ocorrido a necessária previsão dos recursos orçamentários e humanos necessários ao seu cumprimento. Mas, todo esse compromisso é novamente descumprido. É como se dissessem: “esqueçam o que assinei”. Mostra o quão pouco as instituições, que deveriam ter o mínimo de respeito com a Constituição, encaram suas obrigações.

Nós estamos falando de uma situação humanitária extremamente grave, plenamente relatada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em diversos relatórios da Anistia Internacional.

Sim. Ou seja, até as pedras sabem dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul. Nos últimos dez anos, mais de 600 suicídios. Dados estarrecedores de violência. A taxa de homicídios em Mato Grosso do Sul está na casa de 150, 160 homicídios por 100 mil habitantes. As pessoas estão morrendo, esperando que a solução para esse problema seja gerada. Um problema que a União, de uma forma clara, não pode se apartar, dizer que desconhece. Talvez os Guaranis Kaiowás, sejam a comunidade mais etnografada, fotografada, de todas as que existem no país.

O senhor quer dizer que não tem como a União argumentar que não conhece essa realidade do Mato Grosso do Sul?

Não tem como dizer isso! Desde 1917, o Serviço de Proteção ao Índios (SPI) está em Mato Grosso do Sul. Ou seja, há quase 100 anos. Então, é uma realidade que eles conhecem há 100 anos.


“Não é possível que nós tenhamos um país em que três ministros de estado, três altas autoridades públicas, façam declarações públicas, como foi feito em 2013, de que a resolução da questão indígena em MS demoraria 90 dias. E passados dois anos nada aconteceu de fato.


O senhor pontua duas questões: 1) a União não está respeitando a própria Constituição; 2) em função disso foi necessário que o MPF firmasse um acordo. E nem esse acordo está sendo respeitado. Diante desse cenário, de que maneira o MPF se torna um mecanismo de solução dos problemas devido a incompetência do estado em resolver a questão indígena?

Ainda que nós, muitas vezes, tenhamos essa pecha de que somos defensores incondicionais dos direitos indígenas, é preciso que fique claro: o que o Ministério Público está defendendo é a Constituição Federal. A defesa das comunidades indígenas é igualmente um mandato expresso do Ministério Público Federal. E entendemos que em Mato Grosso do Sul o MPF está cumprindo a Constituição Federal. Está fazendo com que as determinações constitucionais sejam plenamente cumpridas, inclusive assegurando a todos aqueles que de alguma forma esquecidos.
A União não pode se esquivar. Estava aqui há 100 anos, é parte indissociável desse processo. Todas essas terras indígenas estavam nessa faixa de fronteira, de 66, 100, 150 quilômetros. Os títulos estaduais, por exemplo, que foram emitidos nesta faixa tinham que ser ratificados para serem plenamente válidos. Ora, se a União ratificou títulos, é porque minimamente ela se omitiu no dever dela de pesquisar se naquelas áreas havia ou não presença de comunidades indígenas. E não satisfeita de atuar de forma omissiva ao ratificar títulos, o SPI e posteriormente a Funai removeram populações indígenas. E pode dizer que isso foi em outra realidade, na década de 40. Mas não é verdade. Isso são dados de 1978, em que a Funai – veja, a Funai, não SPI removeu populações. Como se as instituições, como mera troca de nome, se transformasse totalmente. Os vícios permaneceram, as práticas permaneceram – colocaram os índios em caminhões e removeram para 400 quilômetros de distância. Isso é o que? É limpeza étnica. É a mesma coisa que se faz na Sérvia, em outros lugares. É deslocar populações. Mas, não satisfeita com isso, em 1993, fez a mesma coisa.

O ano de 1993 é uma data interessante porque, teoricamente, é o ano em que todas as terras deveriam ter sido demarcadas. 

Só que, nesse mesmo ano, a Funai ainda estava removendo indígenas de um lado para outro. Traz para Dourados. Não, Dourados está muito cheio. Agora, manda para Amambaí. Ah, mas lá também não dá. Enfim, pegando indígenas e removendo como se fossem engradados de cerveja, armários. Era essa a prática. E, reitero, não satisfeita com essa prática de remoção, ainda fez a titulação em área indígena. Nós tivemos a Colônia Agrícola Nacional de Dourados. Área de 300 mil hectares, boa parte dela dentro de território indígena. Nós tivemos o Projeto Integrado de Colonização de Sete Quedas, dentro de área indígena. Tivemos Projeto de Colonização de Iguatemi, dentro de área indígena.
Ou seja, projeto de colonização, projetos de incentivo ao povoamento, feitos pela União. Então, a União tem papel central nesse processo. E foi muito feliz a juíza ao trazer a União para o papel que ela deve assumir. Ela não pode se afastar do papel central na evolução dessa questão. Não é possível que nós tenhamos um país em que três ministros de estado, três altas autoridades públicas, façam declarações públicas, como foi feito em 2013, de que a resolução da questão indígena em Mato Grosso do Sul demoraria 90 dias. E passados dois anos nada aconteceu de fato. É extremamente complicado se entender que, mesmo no Brasil, as instituições tenham tanta fragilidade.


O processo de demarcação é sempre visto como um processo de destruição da produção. Ora, no caso específico de Mato Grosso do Sul, o que nós temos é: os indígenas ocupam 80 mil hectares, o que vai dar 0,3% da superfície do território do estado.

Em que medida a questão indígena é uma pauta que não evolui no Congresso e no Executivo por incompetência e inabilidade em tratar do tema? 

O que vejo, infelizmente, é que a União fica numa posição extremamente cômoda. Há um compromisso político, mas com um determinado segmento. E aí se usa o eufemismo de que a demarcação vai avançar com responsabilidade ou acordo e, ao mesmo tempo, se faz compromissos com as lideranças indígenas de que irá cumprir seu papel. Ou seja, a União tenta atender a todo mundo (produtores rurais e indígenas) ao mesmo tempo, mas não atende ninguém. Enquanto não começar a atuar e sair dessa posição cômoda de imobilismo nada vai avançar.
A União sustenta que ela precisa de segurança jurídica nas suas ações. Ora, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já fez um relatório apontando um rol de soluções. Já há várias decisões judiciais sustentando que a indenização é uma possibilidade. Só que a União recorre de tudo. Esta nova decisão será, com certeza, objeto de recurso. Ela, definitivamente, não tem interesse em solucionar. O interesse é manter essa solução precária em que pequenas áreas são ocupadas. O prejuízo é imenso para todo mundo, mas é mais cômodo do que efetivamente cumprir seu papel, tomar uma atitude que seja efetivamente englobante, sistêmica. E volto a afirmar: está longe de ser um imobilismo ocasionado pelo desconhecimento da situação.

E o papel do Congresso? Não poderia pressionar a União para quebrar esse imobilismo?

A grande questão é que o Congresso acaba entendendo o processo de demarcação sempre como o antagonismo de matéria e antimatéria. O processo de demarcação é sempre visto como um processo de destruição da produção. Ora, no caso específico de Mato Grosso do Sul, o que nós temos é: os indígenas ocupam 80 mil hectares, o que vai dar 0,3% da superfície do território do estado. Mato Grosso tem 27% de sua superfície ocupada por terras indígenas. E é o maior produtor de grãos, mesmo tendo restrições ambientais, porque parte do Mato Grosso está no bioma amazônico, tem área de transição de cerrado e apenas uma parte, ao sul, tem um regime de regramento ambiental semelhante ao Mato Grosso do Sul. Nele, você pode plantar em 80% da área da propriedade rural. Ainda que você tivesse esse número elevado para 1%, 1,5%, acreditar que isso irá de forma grave afetar a produção é uma falácia. Imagine-se que essa área passe de 0,3% para 2% da superfície do estado. Apenas em terras degradadas hoje, no Brasil, nós temos 18 milhões de hectares. É algo em torno de 2,5% da superfície do país. São terras degradadas que não produzem e que poderiam produzir se fossem adequadamente tratadas. Essa oposição entre demarcação e produção não se sustenta. É dar a uma população que historicamente tenha o direito àquilo o que é seu. E não estamos falando em presente, mas sim em cumprir a legislação. É apenas isso: dar a cada um o que é seu. O Estado Romano tinha três fundamentos: viver honestamente, não lesar o outro e dar a cada um o que é seu. O que se está defendendo: que se dê aos indígenas é o que é deles, que foi retirado deles. E não há que se falar coisas como: “ah, vão devolver então a Copacabana”. Mas alguém está reivindicando Copacabana? Não. Também é outra falácia muito sonora do ponto de vista argumentativo, mas que também não se sustenta.


Boa parte desses títulos dados aos produtores foram feitos pelos estados, em muitos casos ratificados pela União. Não há como a União, nesses casos, voltar e, 30 anos depois esquecer aquele ato de ratificação e considerar o título nulo.

Diante de todos esses argumentos, se constrói a seguinte equação: de um lado há o produtor rural, que já foi posto naquela terra, e de outro há o índio que não tem a terra que é sua por direito. Como resolver essa equação? O caminho da indenização é a solução?

É o caminho. Porque boa parte desses títulos dados aos produtores foram feitos pelos estados, em muitos casos ratificados pela União. Não há como a União, nesses casos, voltar e, 30 anos depois esquecer aquele ato de ratificação e considerar o título nulo. Está certo que estamos acostumados a mandatários não cumprirem aquilo que eles se obrigam a fazer. Mas o Estado, principalmente em casos documentais, tem uma obrigação clara. Então, nesses casos em que tiver havido ou a colonização pelo governo federal ou a ratificação do título pela União, eu não vejo outra solução que não seja a indenização.

Hoje, a Funai é ligada ao Ministério da Justiça. Há quem defenda uma desvinculação, levando-a para outra pasta. O senhor acredita que isso traria uma efetividade maior para a Funai? E qual seria o melhor ministério para abrigá-la?

O SPI ficou durante muito tempo ligado ao Ministério da Agricultura, porque o objetivo era usar os indígenas como mão de obra. Especialmente no Mato Grosso do Sul eles foram usados amplamente como mão de obra. O que é outro ponto interessante. Toda a base econômica do estado foi calcada na mão de obra indígena. Posteriormente, com a chegada dos militares e a criação da Funai, passou ao Ministério do Interior. Eram caixinhas: Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste - Sudene e uma outra caixinha era a Funai. Mais recentemente que ela passou para o Ministério da Justiça. Enfim, durante todo esse período, desde o SPI, houve grande interferência política, governada por militares.
Eu, sinceramente, não vejo uma eventual desvinculação da Funai do Ministério da Justiça como algo que vá ocasionar uma alteração drástica na realidade que tem. Como verificamos se uma ação é prioritária? Há um mandato constitucional que determina que em até cinco anos toda a terra indígena seja demarcada. Isso seria em 1993. A mora já é uma mora de 22 anos. Se tenho mora de 22 anos, eu minimamente vou entender essa ação como prioritária.
Se me proponho a respeitar a Constituição, a entender a Constituição como lei maior que deve nortear as questões de Estado, eu entendo que a mora constitucional é algo gravíssimo. E, assim, deve ser reparada o mais breve possível. Logo, tenho que angariar a maior quantidade de recursos para que essa mora seja purgada, não exista mais. E essa priorização não deve ocorrer com a mudança de caixinha, daqui para lá. Vai ocorrer com recursos humanos e materiais, com suporte político, o que a Funai não tem há muito tempo.


Ações foram movidas para tentar tolher a atuação do Ministério Público, para que os procuradores não atuassem. Foram pedidos de indenizações movidos pelos sindicatos rurais num intuito claro de tolher a atuação institucional. Mas entendo isso como uma reação despropositada.

Como é viver num Estado que é considerado pelo Ministério Público Federal como o maior conflito fundiário do Brasil? Qual o maior desafio? 

Do ponto de vista pessoal você tem alguns problemas. A gente já teve algumas ameaças à atuação. Não ameaças físicas, mas reações. Ações foram movidas para tentar tolher a atuação do Ministério Público, para que os procuradores não atuassem. Foram pedidos de indenizações movidos pelos sindicatos rurais num intuito claro de tolher a atuação institucional. Mas entendo isso como uma reação despropositada. Porque o Ministério Público está aqui para cumprir a Constituição. Infelizmente, cumprir a Constituição não é algo que seja simples. Muitas vezes também não é cômodo e é isso que as pessoas acabam não vislumbrando. O que queremos é que os direitos constitucionais sejam plenamente exercidos. Tanto uma eventual reparação pelo erro do Estado como o direito a terra assegurado às populações indígenas. Mas é obvio que isso causa uma reação. Nada que venha a afetar de forma expressiva nossa atuação.

O senhor acompanha os problemas dos Guarani Kaiowá de perto. Gostaria que o senhor atualizasse esse tema. Qual a atual situação?

Os Guarani e Kaiowá são comunidades indígenas, a segunda maior do país, com 40 mil indígenas. Temos um cenário de extrema vulnerabilidade dessas comunidades. Se pegarmos os mais variados índices que medem a qualidade de vida dessas pessoas, veremos que os índices são muito ruins. Em 2006, tivemos um quadro gravíssimo de desnutrição infantil. E aí houve toda uma atuação do Estado. Quando o Estado quer, ele atua. Houve muitas reportagens em 2006 e 2007 que retrataram de forma brutal essa desnutrição das comunidades, quando as pessoas simplesmente morriam de fome. E a partir do momento que essa questão foi minimamente resolvida, a atuação do Estado não mais passou a ser prioritária. E ainda índices de violência elevadíssimos, na faixa de 150, 160 homicídios por 100 mil habitantes. Em São Paulo, o índice é de 8 a 9. O índice de alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS) é 10 e no Brasil é 25 ou 24. E, mesmo com as nossas ações, os índices permanecem. Não há uma atuação sistêmica, global.
O Estado age sempre de forma pontual e demandada pela ação judicial. Não tem uma política que venha contemplar de forma expressiva essa população. Então, talvez apenas quando houver uma determinação internacional, uma condenação na corte interamericana, é que o governo vai se mobilizar. Algo semelhante à Lei Maria da Penha. A violência contra a mulher é uma realidade no país. Mas, apenas quando houve a condenação houve toda essa mobilização de aprovação da legislação, construção de centros e tudo mais. Havia o conhecimento do problema, mas não havia uma mobilização para a sua solução. A situação dos Guarani Kaiowá é semelhante. Não há como colocar ar de surpresa e dizer que não sabia. Como não sabia? Há agentes públicos aqui há quase 100 anos, em contato direto com essa realidade. Como é que o governo vai desconhecer isso. Não estamos falando de uma comunidade recém contatada, com outros problemas.


Há 100 anos essas populações indígenas são retiradas. Essas reservas são, do ponto de visto jurídico, campos de deslocados internos. Que é, na verdade, uma espécie de parente do refugiado.

É uma realidade em que as reservas do Mato Grosso do Sul existem há quase 100 anos. 

Essa é outra questão. Muitas vezes as pessoas naturalizam e colocam que lugar de índio é na reserva. Como se a reserva fosse local de índio. A reserva é um local que foi escolhido, determinado para abrigar indígenas. Tem um livro de Couto Magalhães chamado Os Selvagem (Itatiaia Editora: Belo Horizonte, 1975), que resume a política de “proteção” aos indígenas. O livro foi escrito, no final do século XIX, em uma época em que se debatia, especialmente nos Estados Unidos, a “Solução Final” dos Povos Indígenas. A solução do extermínio era claramente apontada e ponderada, em face dos custos das guerras e da reação da opinião pública. O livro igualmente aponta o custo das guerras contra Povos Indígenas realizadas no Chile e na Argentina. Adota-se então, a solução  mais pragmática: Utilização massiva dos indígenas como mão de obra nos projetos de agricultura que seram estimulados pela colonizacão do interior do país. Plenamente lógica, portanto, a localização do SPI no Ministério da Agricultura. As reservas são nesse sentido. São espaços para disponibilização de mão de obra. Os indígenas foram usados como mão de obra na cultura de erva-mate. Depois nas fazendas, para derrubada de mata, plantio de gramíneas. Nas décadas de 60, 70 passaram a atuar nas lavouras de cana.
Então, na linha de Os Selvagem, o indígena foi essa mão de obra que foi usada ao invés de exterminar. Mas para que fossem feitas as reservas você teve que retirar populações. E há 100 anos essas populações indígenas são retiradas. Essas reservas são, do ponto de visto jurídico, campos de deslocados internos. Que é, na verdade, uma espécie de parente do refugiado. Só que o refugiado tem esse viés externo, fora do país. O deslocado interno é aquele deslocado de sua área, mas que fica dentro de seu país. É o caso da Nigéria, agora, por exemplo, em razão do BoKo Haram. E no Brasil não foi nenhum grupo terrorista, foi o próprio Estado Brasileiro que fez todo processo de retirada.

E nesse sentido que voltamos ao exemplo de Copacabana.

Sim.  “Se os indígenas quiserem nossa Copacabana, o que vamos fazer?”, dizem. Ora, e o que esses mesmos senhores fariam se um caminhão encostasse na porta de seus prédios em Copacabana, no Rio de Janeiro, pegassem todos os seus pertences, com a família e todos os parentes e os levasse a 400 quilômetros de distância. O que fariam? Isso foi feito com os indígenas aqui. E nós estamos falando em 1978, 1993, 1994. Não estamos falando em 1500, 1600. Mesmo assim, há uma dificuldade em se reparar essas comunidades.
Essa questão do marco temporal também é interessante. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Carmem Lúcia, entendeu que reparações econômicas de crimes contra humanidade são imprescritíveis. Então, se fui torturado eu posso demandar do Estado sem qualquer marco temporal. Se o fato for hoje, posso entrar com reparação econômica contra o Estado daqui há 20 ou 30 anos. Ora, e a reparação que visa estabelecer a dignidade dessas comunidades? Aí se estabelece um marco temporal. Se você não estava em seu território em 1988, não tem direito a reparação. Mas porque a diferença? Também nesse caso, se estabelece uma diferenciação. Uma diferenciação que havia lá no século XVI, entre humanos e não humanos. Será que os índios são humanos ou não humanos? Será que tem alma? Então, para os humanos há imprescibilidade e para os não humanos se estabelece o marco temporal. Ler Original AQUI.

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