9 de outubro de 2015

Dom Roque Paloschi: “Os inimigos dos Guarani Kaiowá os atacam na calada da noite. À luz do dia, atacam seus aliados”



“Ñanderú mandou dizer: está na hora”.

Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e bispo de Roraima, esteve durante essa semana no Mato Grosso do Sul para contribuir com a missão ecumênica que prestou solidariedade aos povos indígenas e ao Cimi, alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) movida pela bancada ruralista da Assembleia Legislativa, e para pedir outra CPI: a do genocídio, contra os povos indígenas do estado.
“Pela inconveniência de atacar os Guarani Kaiowá à luz do dia, seus inimigos os atacam na calada da noite. À luz do dia, atacam seus aliados, em concreto, o Cimi, através de uma CPI que em vez de Comissão Parlamentar de Inquérito melhor seria chamada de CDF, Comissão de Despistamento dos Fatos”, disse Dom Roque aos religiosos, leigos, indígenas e movimentos sociais.

Leia na íntegra o pronunciamento do bispo de Roraima e presidente do Cimi:  

Pronunciamento de Dom Roque
(Ato Ecumênico, Campo Grande, 07.10.2015)

Agradeço essa convocação oportuna para a participação desse Ato Ecumênico ou melhor, desse Ato Macro Ecumênico em defesa do povo Guarani Kaiowá aqui no Mato Grosso do Sul e, um pouco também, em defesa do Cimi que foi “agraciado” com uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Eu digo “agraciado” porque essa CPI nos abrirá oportunidades para a repercussão, nacional e internacional, dos crimes cometidos contra os Guarani Kaiowá e demais povos originários do MS e do Brasil.
A CPI do Cimi me lembra de uma novela do grande escritor austríaco, Franz Werfel, perseguido pelos nazistas e expulso de sua terra por causa de sua origem étnica. O título dessa novela, que poderia servir também para os cenários, nos quais se encontram os povos indígenas, aqui no MS, é: “Não o assassino, os assassinados são culpados”. 

- Os culpados não são os paramilitares e não os fazendeiros organizados em milícias armadas que, segundo Elizeu Lopes, liderança Guarani Kaiowá, entre agosto e setembro deste ano provocaram mais de dez ataques contra as Terras Indígenas Ñanderú Marangatú, Guyra Kamby´i (TI Panambi-Lagoa Rica), Pyelito Kue (TI Iguatemipegua I) e Potreiro Guasu.
Os culpados são os Guarani Kaiowá.
- Os culpados do assassinato do líder Guarani Kaiowá Semião Vilhalva não são os fazendeiros organizados em milícias armadas;
            = nem são eles os culpados nos ferimentos causados por tiros com armas de fogo contra três indígenas;
            = nem são eles os culpados pelas feridas por balas de borracha;
            = nem são eles os culpados pelo espancamento de dezenas de indígenas;
            = nem são eles os culpados pelo estupro coletivo contra uma mulher Guarani Kaiowá, segundo denúncias que nos chegaram da respectiva região.
Os culpados são os Guarani Kaiowá.
Os culpados dos mais de 580 indígenas que cometeram suicídio e nos 390 assassinatos de Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, nos últimos 12 anos, não são os paramilitares nem os fazendeiros organizados em milícias armadas, nem a ala ruralista que lucra com as terras indígenas incorporadas nos seus latifúndios.
Os culpados são os próprios Guarani Kaiowá.
Mas por vários motivos não convém aos inimigos dos povos indígenas atacar, diretamente, os Guarani Kaiowá, porque gozam certo prestígio na opinião pública mundial. O próprio Elizeu Lopes está chegando neste momento de viagem do exterior onde encontrou mais apoio do que em sua própria terra. Se encontrou com organismos internacionais em defesa dos direitos humanos e denunciou a omissão do próprio estado brasileiro, do poder Legislativo, Judiciário e Executivo face aos povos indígenas.
Pela inconveniência de atacar os Guarani Kaiowá à luz do dia, seus inimigos os atacam na calada da noite. À luz do dia atacam seus aliados, em concreto, o Cimi, através de uma CPI que em vez de Comissão Parlamentar de Inquérito melhor seria chamada de CDF, Comissão de Despistamento dos Fatos. Essa CPI/CDF se dirige contra os Guarani Kaiowá e todos os seus aliados, contra os movimentos populares do campo, Comunidades Eclesiais de Base ecumenicamente organizados e contra as Pastorais Sociais. Agradeço como presidente do Cimi a solidariedade que recebemos por defender a causa dos povos indígenas. Nos 3.800 km (via BR-174) desta longa viagem que fiz de Boa Vista/RR para Campo Grande/MS, pensei: “Qual poderá ser, além do horizonte simbólico, o significado e a contribuição concreta dessa viagem”?
Provavelmente todos, que estamos aqui, pensamos algo semelhante sobre o alcance concreto da nossa presença nesse ato ecumênico e, amanhã, da visita às comunidades indígenas. O que podemos fazer para transformar a lei do mais forte em “justiça mínima” nos territórios guarani kaiowá? Os diferentes credos não impedem de unir-nos, de somar gritos, denúncias e forças. Mas falta, talvez, algo mais decisivo nesta situação em que “o sistema, sustentado pelos poderes Legislativo, Judiciário, Executivo e os canhões do grande capital e do agronegócio, procura encaminhar os povos indígenas para a solução final de extermínio” (XXI Assembleia do Cimi). Em todo Brasil, os povos indígenas estão rodeados pelo latifúndio e pelas Propostas de Emenda à Constituição (PEC). Uma das mais perigosas é a PEC 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras tradicionais indígenas, titular terras quilombolas e criar unidades de conservação ambiental. Esta PEC atende explicitamente aos interesses da bancada ruralista e do agronegócio. As PECs são subterfúgios para desmontar as conquistas da Constituição Federal de 1988.
Um desses subterfúgios é também o chamado “marco temporal”, pelo qual só poderiam ser atendidos reivindicações territoriais dos índios, que até a data da Constituição de 1988 foram disputadas por eles. Mas, até essa data, os índios foram tutelados e não podiam entrar em juízo para reivindicar suas terras. Por isso os Guarani Kaiowá retomaram a partir do 22 de agosto de 2015, quase a totalidade de áreas invadidas por fazendeiros e localizadas dentro dos limites da terra indígena, já homologada. O governo federal não pagou as indenizações para os ocupantes e os efeitos do decreto de homologação foram suspensos pela Justiça em setembro de 2005. Logo depois dessa retomada vieram os policiais do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) e dispararam tiros para assustar os índios. Mas os índios decidiram não recuar.
Os fatos são conhecidos, os assassinatos contabilizados, os cenários localizados, os gritos ouvidos, as imagens sobre as extremas crueldades são divulgadas, os mandantes dos assassinatos são soltos, um ou outro dos seus capangas está preso, os culpados são apontados. Talvez não pela grande imprensa, mas por vias alternativas, os fatos romperam as fronteiras da clandestinidade e chegaram em algumas das nossas comunidades. Precisamos sacudir essas nossas comunidades e socorrer aos índios com mais eficácia!
Amanhã, por exemplo, quando estaremos nas comunidades indígenas Apykai e Guayra Kamby´i - o que vamos dizer aos sobreviventes da família do cacique Nísio Gomes, que no acampamento Guaviry (MS), em 2011, foi assassinado à queima-roupa, jogado numa caçamba de caminhonete e nunca se soube para onde foi levado seu corpo?
Nosso ex-secretário do Cimi, Antônio Brand, em sua tese de doutorado, descreveu com profundidade como os Guarani Kaiowá, por causa da qualidade de suas terras e de sua mão de obra foram permanentemente submetidos a ondas de colonização e confinamento em territórios cada vez menores. Os estrangulamentos dos suicídios não seriam uma consequência dos confinamentos territoriais?
Se não se tratasse nessas CPIs de um jogo com cartas marcadas, poderíamos nos empenhar na realização de CPIs sérias, verdadeiras, sem fins eleitorais. Por exemplo, uma CPI sobre o confinamento histórico dos Guarani Kaiowá em condomínios que não garantem seu sustento e que daria razão a suas reivindicações. Poderíamos também solicitar uma CPI sobre o financiamento da última campanha eleitoral da dentista e deputada estadual do Partido Trabalhista do Brasil (PT do B), Mara Caseiro, proponente da CPI do Cimi e, no dia 30 de setembro, eleita presidente dessa CPI que lhe muito convém. No dia 2 de outubro, Mara Caseiro aproveitou o último dia do prazo permitido para trocar de domicílio eleitoral para mudar seu título para Campo Grande, onde vai concorrer à prefeitura da Capital nas eleições do ano que vem.
É óbvio que a CPI do Cimi não tem por objetivo, como o documento de convocação reza, de investigar, se a entidade “incitou ou financiou invasões de propriedades particulares em Mato Grosso do Sul”. O verdadeiro objetivo da deputada é de se servir da CPI de trampolim para criar visibilidade para sua “pré-candidatura” à prefeitura de Campo Grande.
Este é o contexto em que somos convocados para exercer nossa vocação profética. Se nós nos calamos, “as pedras gritarão” (Lc 19,40)!
Os Guarani Kaiowá foram caçados e escravizados:
- pelos Bandeirantes,
- colonizados pela Cia. Matte Laranjeiras que se apropriou de suas terras para o plantio da erva de Matte,
- pelo Serviço de Proteção aos Índios,
- pelos governos militares e, finalmente,
- pelos governos democráticos de hoje, estes, por sua vez, colonizados pelo grande capital.
Os Guarani Kaiowá são sobreviventes “que vêm da grande aflição” (Apc 7,14). Resistem com bordunas, maracás e com a inspiração da Palavra de Ñanderú.
Bordunas, arcos e flechas, hoje, não tem muita serventia para enfrentar os jagunços do agronegócio. Mas a Palavra de Ñanderú, ela fez da sobrevivência desses índios não uma probabilidade, mas uma certeza.
Uma dessas sobreviventes Guarani, marcada por rugas de luto, luta e fome, perguntada porque justo agora estão retomando as suas terras, num momento em que as forças são tão desiguais, respondeu: “Ñanderú mandou dizer: está na hora”.

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