" (...) Enquanto nós, Guarani e Kaiowá, enfrentamos um verdadeiro genocídio, marcado por ataques paramilitares, assassinatos, espancamentos, estupros e perseguição de nossas lideranças, o governo brasileiro debocha de tudo isso buscando criar folclore para distorcer a realidade e camuflar a real situação dos povos originários" (Aty Guasu)
No embalo da Copa do Mundo e da
Olimpíada, o Brasil sediará outro evento esportivo internacional: os
Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, que começam na próxima semana em
Palmas, no Tocantins, com participação de cerca de 5 mil competidores do
Brasil e de outros 22 países.
Assim como as outras duas
competições, os jogos indígenas também estão cercados por polêmicas –
enquanto são festejados por alguns povos, sofrem boicote de outros.
Duas
etnias do Tocantins que haviam sido convidadas para o evento, os Krahô e
os Apinajé, decidiram não participar e divulgaram notas com críticas ao
governo e ao Congresso Nacional.
Os Guarani-Kaiowá estão
divididos: haverá uma delegação da etnia, mas algumas lideranças também
criticaram o evento em uma carta.
Em entrevistas à BBC Brasil,
Antônio Apinajé e Renato Krahô disseram que "esse não é o momento de
festejar", já que povos indígenas vêm enfrentando "um momento difícil",
com a demora na demarcação de terras, conflitos violentos com
fazendeiros e invasões de territórios já homologados por madeireiros e
garimpeiros.
Eles reclamam ainda do sucateamento da Fundação
Nacional do Índio (Funai) e acusam o governo de usar os Jogos para
desviar o foco desses problemas.
"Os povos indígenas estão vivendo alguns problemas graves. O volume de dinheiro que está sendo gasto (com os Jogos) podia estar sendo investido em saúde, na demarcação de terras, no monitoramento (dos territórios demarcados), pois tem muita terra sendo invadida. Aí o governo inventa um evento desse, usando a imagem dos índios para dizer que está tudo bem", critica Antônio Apinajé.
Para
ele, os Jogos não trarão benefícios para os povos indígenas e são "um
circo para turista ver". Krahô reclama que os povos do Tocantins não
teriam sido convidados para participar da organização do evento e diz
que o objetivo principal é movimentar a economia de Palmas.
"Quem vai sair ganhando com os Jogos é a cidade de Palmas, os restaurantes, hotelaria, e nós indígenas, que somos os protagonistas, vamos lá e depois voltamos do mesmo jeito que fomos", diz.
Investimentos
O secretário extraordinário dos Jogos Indígenas da
Prefeitura de Palmas, Hector Franco, diz ser natural que alguns grupos
aproveitem a visibilidade do evento para protestar.
Ele estima que cerca de R$ 100 milhões estão sendo investidos no evento, sendo que parte dos recursos (entre R$30 milhões e R$35 milhões) veio de patrocínios de empresas como Odebrecht Ambiental, Oi, EHL e Energisa.
Já
a prefeitura de Palmas gastou cerca de R$4 milhões do seu Orçamento,
enquanto o Ministério dos Esportes informou que repassou outros R$4,3
milhões para a prefeitura e mais US$13 milhões (R$50 milhões) para o
Pnud, órgão da ONU que também está participando da organização.
Os
valores foram investidos em obras de infraestrutura e logística, na
preparação de estruturas temporárias para as provas e no alojamento e
transporte dos indígenas. O acesso às competições será gratuito.
Franco afirma que a questão indígena é "complexa" e que por isso não entraria no mérito das manifestações contra os Jogos.
"É
óbvio que, assim como teve protestos na Copa do Mundo, assim como há
protestos nas Olimpíadas, também há eventuais insatisfações em relação
aos Jogos Indígenas. Qualquer evento que abre uma janela de exposição,
as pessoas sentem isso como uma oportunidade (para protestar), sejam
elas reivindicações legítimas ou não legítimas", diz.
O secretário
conta que a cidade está preparada para receber os Jogos e que a
cenografia é baseada na cultura indígena. "Os hotéis estão lotados. Vai
ser uma grande festa", afirma.
'Dinheiro dos Esportes'
Os Jogos Indígenas já tiveram 12 edições nacionais,
desde 1996, em diferentes cidades do país, com apoio do governo federal,
patrocínio das prefeituras e, eventualmente, de estatais como Caixa
Econômica e Eletrobras.
Esta é a primeira edição internacional e
contará com a participação de povos de países como Argentina, México,
Estados Unidos, Congo, Rússia, Finlândia, Mongólia, Etiópia, Paquistão e
Nova Zelândia.
Do Brasil, há 23 etnias confirmadas, entre elas
Asurini (Pará), Guarani-Kaiowá (Mato Grosso do Sul), Pataxó (Bahia),
Waiwai (região amazônica) e Xerente (Tocantins).
Os Jogos
Indígenas têm modalidades similares às Olimpíadas, como futebol e
atletismo, mas também provas baseadas nos costumes indígenas, como
corrida de tora, canoagem, arco e flecha, cabo de guerra, lança e lutas
corporais.
Entre terça e quinta-feira da próxima semana haverá um
festival cultural. Na sexta, ocorre a abertura dos Jogos, que se
encerram dia 31 de outubro.
A organização do evento está a cargo
do Comitê Intertribal, que é liderado pelos irmãos Carlos e Marcos
Terena. Em entrevista à BBC Brasil, Carlos Terena não esclarece bem os
critérios de escolhas dos povos.
Ele diz, sem detalhar o processo,
que os convites foram feitos pelo Comitê com base na participação dos
povos nas edições nacionais dos jogos.
Sobre a decisão dos povos Apinajé e Krahô de não participar, responde: "Não tem explicação e não estou muito preocupado. Eu estou preocupado agora com quem vou colocar no lugar deles. Tenho que cuidar de cinco mil indígenas que vão para os Jogos, entendeu?". Carlos Terena
Terena afirma que não saberia dizer que
benefícios o evento poderá trazer para os povos indígenas, "porque os
Jogos não aconteceram ainda", mas defendeu que o evento serve para
fortalecer a cultura e os costumes dos povos.
Ele rebate também as
críticas de que os recursos poderiam ser melhor investidos na saúde
indígena e na demarcação e proteção de terras.
"O Orçamento (do
governo federal) tem planejamento anual para cada atividade. Como eu sei
fazer esporte, fui lá e apresentei o projeto dentro do Ministério dos
Esportes. Então eu não tirei dinheiro da saúde para colocar no esporte,
tirei do esporte", destaca.
Entre os motivos para boicotar os jogos, as
lideranças dos Apinajés e dos Krahôs apontam também a Proposta de Emenda
Constitucional 215 que tramita no Congresso com objetivo de passar a
prerrogativa de demarcar terras indígenas do Poder Executivo para o
Poder Legislativo – onde os ruralistas têm uma bancada influente.
Eles
também citam os conflitos que estão ocorrendo no Mato Grosso do Sul
entre Guaranis-Kaiowá e fazendeiros da região – a morte do cacique
Simião Vilhalva, assassinado no final de agosto durante um desses
conflitos, está sendo investigada pela Polícia Federal.
O
território indígena foi demarcado em 2005, mas produtores rurais
conseguiram uma liminar no Supremo Tribunal Federal impedindo sua
retirada – a indefinição acaba alimentando a tensão na área.
Os
próprios Guaranis-Kaiowá estão, no entanto, divididos sobre os Jogos. O
povo é composto por cerca de 30 mil pessoas, que vivem em 33 pequenas
áreas espalhadas entre Brasil e Paraguai.
Uma delegação composta
por 30 homens e 20 mulheres, principalmente da região de Dourados, no
Mato Grosso do Sul, participará do evento. O coordenador do grupo,
Maximino Rodrigues, considera que os Jogos são uma oportunidade de
revitalizar a cultura Guarani-Kaiowá.
"O evento é importantíssimo
para os jovens que vão com a gente. Nós estamos aqui nos preparando,
fazendo colar, cocar, nossas vestimentas, tinta", diz.
Na sua visão, não é o boicote aos Jogos que resolverá o problema da demarcação de terras.
"Recebi
telefonemas de vários amigos ativistas pedindo que eu desistisse dos
Jogos Mundiais Indígenas, que não era o momento de estar festejando, que
os Guaranis-Kaiowá estão morrendo. Disse que os Jogos não surgiram num
piscar de olhos. É um trabalho de muito tempo atrás, que a gente vem
lutando, brigando para que isso acontecesse", afirma.
Outras
lideranças da etnia, reunidas no chamado Conselho da Aty Guasu,
aprovaram uma moção contra os jogos na semana passada, durante uma
conferência em Dourados.
"Agradecemos a todos os demais povos que
tiveram a mesma coragem e a clareza de denunciar o que são, na
realidade, estes 'Jogos' (...). Enquanto nós, Guarani e Kaiowá,
enfrentamos um verdadeiro genocídio, marcado por ataques paramilitares,
assassinatos, espancamentos, estupros e perseguição de nossas
lideranças, o governo brasileiro debocha de tudo isso buscando criar
folclore para distorcer a realidade e camuflar a real situação dos povos
originários", acusa o texto.
A BBC Brasil procurou o Ministério
dos Esportes e o Ministério da Justiça (que cuida das demarcações de
terras) para comentar as críticas, mas os órgãos não quiseram se
pronunciar.
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