2 de fevereiro de 2014

Ricardo Albuquerque, advogado dos Tenharim: “Os policiais não foram investigar; eles foram lá para tentar comprovar uma convicção já formada”

  "os indiciados ainda não tiveram acesso ao
 inquérito, não havia como prestar depoimento se 
não sabemos do que estamos sendo acusados ou 
quais as provas apresentadas.
 Orientei todos eles a 
exercerem o direito constitucional ao silêncio e
 todos seguiram fielmente minha orientação".


Os indígenas foram presos na reserva e transferidos para Porto Velho (RO) _ Foto Divulgação




Por Tereza Amaral
Na data em que deveria ter tido acesso ao inquérito do Caso Humaitá, no último dia 30, o advogado dos indígenas Tenharim, Ricardo Albuquerque, foi surpreendido com a informação pela Polícia Federal de que iria efetuar as prisões. De imediato, ele e funcionários da Funai acompanharam as prisões temporárias dos cinco índios, dois deles filhos do cacique Ivan, além do cacique da aldeia Taboca e dois indígenas da Marmelo. O advogado viajou até Porto Velho onde acompanhou os interrogatórios e teve reunião na OAB local. Já de volta a Manaus - e sem ainda saber sobre o que consta no inquérito - o defensor dos Tenharim concedeu a seguinte entrevista, via E-mail, à Tania Pacheco (Blog Combate ao Racismo Ambiental). Confira!

Tania Pacheco: Antes de mais nada, como foram os depoimentos em Porto Velho?  
Ricardo Albuquerque: Tania, como os indiciados ainda não tiveram acesso ao inquérito (eu teria acesso na quinta, em Manaus, mas estava lá com eles na hora das prisões), não havia como prestar depoimento se não sabemos do que estamos sendo acusados ou quais as provas apresentadas.Daí, eu orientei todos eles a exercerem o direito constitucional ao silêncio, e todos seguiram fielmente minha orientação.Mesmo assim, foram muito exaustivos os depoimentos. Iniciamos às16 horas e terminamos próximo da meia noite. Mas todos eles se mantiveram muito fortes, apesar de tudo que estão passando.
Tania Pacheco: Afinal, as acusações se baseiam em quais depoimentos? 
Ricardo: A maior parte das provas a que tive acesso são depoimentos de testemunhas, mas tudo muito genérico, sem apontar uma conduta individualizada ou que presenciou o suposto crime. Tem muito “ouvi falar”, e nisso vou fundamentar meu Habeas Corpus. Mas antes vou ver o resto das provas amanhã, quando olhar o inquérito.
Tania Pacheco: As notícias que chegam são as mais desencontradas. Na página do Altino Machado, a Polícia Federal teria dito a a familiares que dois dos desaparecidos haviam sido baleados, e o terceiro, degolado. Nos chamados portais da região, há de tudo: uns afirmam que os três foram retalhados e queimados; outros, que degolados e jogados no rio. Qual a versão da PF para você, enquanto advogado dos Tenharim? 
Ricardo Albuquerque: Bem, não sei como chegaram a essas informações, se os corpos não foram encontrados. Mas, para mim, a Polícia não prestou nenhuma informação neste sentido. Nem apareceu no interrogatório alguma pergunta neste sentido. Isso tudo faz parte de uma bem estruturada campanha para aterrorizar a sociedade local e jogá-los contra os Tenharim, pois até agora nenhuma prova apontou para estas informações.
Tania Pacheco: Mais importante que tudo: o que dizem os próprios Tenharim acusados?
Ricardo Albuquerque: Eles desde o primeiro momento me negam tudo e são bem convictos da inocência. Pelo meu lado, eu fielmente acredito que eles não cometeram algum crime, pois são muito firmes e sequer balbuciam ao conversar comigo sobre o que a Polícia os acusam.
Tania Pacheco:  Desde o início, uma crítica feita inclusive pelo cacique Aurélio, na sua fala perante o general reproduzida pelo Estadão, foi o fato de a Polícia parecer trabalhar voltada para provar a culpa dos Tenharim, sem investigar outras alternativas, como a notória violência na área da Rodovia do Estanho. Aliás, esse absurdo foi registrado orgulhosamente pelo Portal Apuí, no dia 26 último, quando afirmou: “Como a única linha investigada pela Polícia é de que os índios Tenharim Sequestraram [sic] e mataram o [sic] três desaparecidos, as investigações devem confirmar as suspeitas da sociedade” (ver foto no final). Esse comportamento não isento da PF não compromete inclusive o resultado das investigações?
Ricardo Albuquerque: Isso vai ser questionado no processo com certeza. A Polícia desde o primeiro momento que adentrou a Terra Indígena sempre teve sua convicção formada acerca da culpa dos indígenas, mas nunca foi explicado o motivo deste comportamento. Contudo, no procedimento judicial, quando a ampla defesa e contraditório estiverem presentes, esse com certeza será um dos muito pontos a ser questionado, pois compreendo que eles não foram investigar, eles foram lá para tentar comprovar uma convicção já formada.
Tania Pacheco: Foi divulgado que o MPF em Manaus teria negado um primeiro habeas corpus preventivo, no dia 21, mas que você teria impetrado um segundo, que estaria sendo julgado. Há alguma resposta a respeito? Exatamente o que você procura, através dele?
Ricardo Albuquerque: Não há resposta do primeiro. O que houve foi um parecer negativo do Ministério Público, mas o Juiz ainda irá decidir. Neste primeiro eu questiono certos procedimentos policiais e a ausência de antropólogo nestas investigações. Acredito que obrigatoriamente deveria haver a presença de um antropólogo, em razão de a polícia não compreender a cultura dos Tenharim. E essa incompreensão cultural pode levar os policiais a crerem que o que é culturalmente diferente é indício de algum ilícito.Já o segundo Habeas Corpus será para questionar os fundamentos da decisão que determinou a prisão e buscar revertê-la no Tribunal Regional em Brasília.
Tania Pacheco:  Teoricamente, os Tenharim podem permanecer presos por até 30 dias. Como será isso, uma vez que eles vivem no Amazonas, assim como você, e estão presos em Porto Velho?
Ricardo Albuquerque: Umas das minhas primeiras atitudes foi deixar a Comissão de Direitos Humanos da OAB de Rondônia e do Amazonas a par desta situação. Com isso, o Dr. Vinícius Miguel, membro da Comissão de RO, estará em contato com eles constantemente, para garantir que os direitos deles não sejam violados.Outra questão pela qual eu venho lutando é a transferência deles para Manaus, pois o Estado de Rondônia tem um péssimo histórico quando se trata de pessoas encarceradas, como por exemplo o Presídio Urso Branco (ao lado de onde eles estão), que já levou o Brasil a julgamento pela Corte Interamericana de Justiça. Cpntinue lendo em Mais informações!
Além deste histórico de violação de Direitos Humanos, o local é sujo e desumano. Os indígenas me relataram que não dormiram, pois o chão estava molhado, além de existirem baratas, ratos e até lixo no local. É intolerável a permanência deles naquele local, em razão de não fornecer a mínima dignidade aos presos.
Tania Pacheco: Nestes últimos dias, um portal de Apuí estava noticiando a existência de três novos desaparecidos, que na quarta-feira teriam deixado a cidade em direção à aldeia Tenharim do Igarapé Preto, pela Rodovia do Estanho. Ao mesmo tempo, as notícias das prisões suscitam os esperados comentários. E uma das reportagens de Humaitá terminava com uma grande foto de jagunços numa camionete,  olhando o incêndio dos casebres, em 27 de dezembro. Juntando tudo, me parece um cenário preocupante. A Justiça Federal determinou que fossem dadas todas as garantias de segurança aos indígenas de Tenharim Marmelos. Como fica isso, quando aparentemente há uma nova fogueira sendo preparada?
Ricardo Albuquerque: Continuam valendo as liminares concedidas para proteção dos Tenharim e Jiahui. Contudo, irei peticionar ao Juiz destas causas para que ele tome conhecimento da situação e até pedirei que a FUNAI e União estejam preparadas para proteger os indígenas.Eu estou convicto de que há uma campanha por trás de tudo que está acontecendo, pois já iniciaram boatos de que os Tenharim farão reféns e atacarão. Já conversei com o Nilcélio Jiahui e com o Aurélio Tenharim, lideranças destas Etnias, e  ainda que estejam muito tristes e consternados com o que se passa com seus parentes, não irão de forma alguma atacar qualquer pessoa.
Os Tenharim e Jiahui são pessoas de bem e exemplares na luta por uma vida melhor para os indígenas. As pessoas que por lá transitam, como eles próprios me falaram, podem ficar tranquilas que nada lhes acontecerá. Afinal, diferente do que alguns sites noticiam, os Tenharim não são criminosos; muito pelo contrário, são pacíficos e honestos.
Por último, há uma petição on-line ao MPF sendo feita pedindo igualdade de tratamento para os não indígenas vizinhos do Tenharim. Isto me fez acreditar que há algo coordenado por trás tentando criminalizar os indígenas e alimentar o ódio.
Não é difícil compreender que algumas pessoas terão um tratamento diferenciado dado por lei. Isso todo mundo sabe, pois quem não conhece um idoso, uma grávida, uma criança, um deficiente, entre outros que a Lei dá tratamento diferenciado?
Estão pedindo a igualdade formal e abstrata, mas a leitura do Direito conexo com a realidade traz outra situação, onde o princípio da igualdade se torna substancial e concreto, ou seja, aqueles que não se igualam com os outros em uma mesma condição histórica, social, pessoal, etc., terão um tratamento peculiar. Muitos sabem disso, pois já se tornou popular a frase “tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual”.
Não é o mercado que diz quem será indígena e sim a pessoa que se identifica como tal e a comunidade que o reconhece. E como social e historicamente há motivos suficientes para tratar os indígenas de forma diferente da sociedade que os envolve, tanto a Constituição Federal como as leis abaixo dela o fazem.
Na verdade, este pedido de igualdade é uma forma velada de submissão dos indígenas aos interesses da sociedade não indígena e dominante. E ao lado dos Tenharim há muitos interesses escusos. Que fique claro que eu não estou falando das pessoas de bem da sociedade Humaitaense ou de Apuí e que com certeza não compactuam com a segregação forçada que os indígenas estão sofrendo. O problema neste momento é que as pessoas de bem ficam sufocadas, e eu sei que há muitos amigos dos Tenharim e dos Jiahui entre seus vizinhos.
Mas há interesses de madeira, garimpo, soja, gado, entre outros, os quais nunca respeitaram a presença e muitas vezes sequer a vida dos indígenas. Os Juma – também da família Kawaghiva, como os Tenharim – são exemplo recente da matança de um povo, onde toda uma sociedade foi reduzida a 5 pessoas em razão de ser um obstáculo a esses interesses. E, claro, sabemos que as Unidades de Conservação e Terras Indígenas são um obstáculo ao dito “progresso”.
Este é meu medo: que interesses economicamente fortes dominem o discurso e a política da região, se é que isso já não aconteceu, e as consequências para os Tenharim podem ser nefastas, como o isolamento forçado a que estão sendo submetidos.
Tudo isto me deixa triste mesmo como amazonense, pois nasci e cresci aqui com orgulho da descendência indígena. Mas será que o orgulho caboclo de respeito à floresta e aos indígenas no Amazonas, Estado com a maior população indígena do país, se reduz ao Festival de Parintins? Será que perderemos a Amazônia para interesses econômicos de poucos? Quem ganha com isso? O caboclo certamente não é.
Enfim, nunca esperaria que no Estado do Amazonas ainda estivéssemos tentando submeter os indígenas a interesses que historicamente os desestruturaram e muitas das vezes os dizimaram, e, ao invés de respeitar sua autonomia, subjugá-los até que se reduzam a uma condição de miserabilidade.
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Portal Apuí - a única linha de investigação

NOTA DE AMAZÔNIA LEGAL EM FOCO
A entrevista Exclusiva ao Blog Combate ao Racismo Ambiental foi postada na íntegra, tendo sido feita uma outra introdução por motivo de padronização mantendo os dados do site, cuja imagem acima (Portal Apuí) foi reproduzida.  
Edição _ Tereza Amaral

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