3 de fevereiro de 2018

Povo Munduruku emite carta de repúdio ao governador do Pará; Jatene institui Grupo de Estudos para consulta prévia sem ouvir os indígenas

Foto _ Reproduzida/ Facebook : Anderson Barbosa


A Associação Indígena Pariri, representante das onze aldeias Munduruku do Médio Tapajós, expressa seu total repúdio ao Governo do Estado do Pará e ao Decreto nº 1.969, de 24 de Janeiro de 2018 que institui o Grupo de Estudos para criar procedimentos de Consultas Prévias, Livres e Informadas a povos e populações tradicionais.

O decreto afirma que observa a Convenção 169 da OIT, mas não realizou a consulta aos povos indígenas sobre a própria medida administrativa decretada para discutir Consulta Prévia. Não aceitamos essa dissimulação do governador Simão Jatene, que sugere observar a Convenção 169 e o direito à consulta dos povos e populações tradicionais e indígenas, mas cria de forma arbitrária e autoritária um Grupo de Estudos do qual não fazemos parte e cujo ingresso fica submetido à deliberação da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, que nunca teve qualquer diálogo com nosso povo Munduruku e com outros povos indígenas e comunidades ribeirinhas e quilombolas do Tapajós.

Fazem parte desse grupo também a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade e a Casa Civil. Todos esses órgãos estão completamente distantes das realidades dos povos indígenas e comunidades tradicionais, de seus modos de vida e de suas florestas e rios. Muitos de seus representantes trabalham confortáveis no ar condicionado para servir aos interesses econômicos de grandes empresas aliadas ao poder público do Estado do Pará em seus esquemas corruptos e saqueadores da Amazônia.

A Convenção 169 não nos dá apenas o direito a sermos consultados sobre projetos já prontos, mas nos dá o direito de definirmos nossas prioridades de "desenvolvimento". Nossos caciques chamaram desenvolvimento de rio livre, água limpa e floresta em pé. Nós não somos "objetos" da Convenção 169, nós somos sujeitos-atores principais desse mecanismo que garante nossos direitos e devemos ser os primeiros consultados para essas discussões.

A Consulta ao povo Munduruku deve ser feita de acordo com seu Protocolo, assim como deve acontecer com outros povos e comunidades tradicionais que já construíram seus Protocolos. Cada povo e comunidade tem um jeito de pensar, se organizar e tomar suas decisões e nós exigimos respeito a essas diferenças.

Não fizemos o nosso Protocolo de Consulta para ser "recolhido" por um grupo de estudo que vai criar um Plano de Consulta para impor mais uma vez projetos de morte sobre nossas cabeças. Nós, Munduruku, sabemos o que é o nosso bem viver e temos propostas alternativas ao monocultivo e exploração de minério venenosos e assassinos dos pariwat.

Exigimos ser ouvidos antes que os projetos sejam pensados pelos Governos e empresas. Nosso Protocolo de Consulta é o único procedimento que aceitamos.

Nós, Munduruku, povos indígenas e ribeirinhos do Tapajós, já mostramos mais de uma vez que não deixaremos nenhum político nos enganar.

Cancelamos o licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, audiência sobre Concessão Florestal, cancelamos a audiência sobre a Ferrogrão e estamos muito atentos à tentativa de imposição de hidrelétricas no rio Cupari e de retomar o projeto da UHE Jatobá.

Não participamos da concepção disso que os pariwat chamam de "desenvolvimento" para a nossa região e se os políticos e empresas continuam nos excluindo desse processo e planejando nosso extermínio, declaramos que continuaremos em guerra.

Vamos lutar até o último Munduruku contra a destruição do Tapajós e de nossas florestas.


Sawe!Sawe!

Leia Convenção 169 da OIT aqui.

2 de fevereiro de 2018

Incêndio criminoso destrói três casas na Terra Indígena Rio Branco (RO)


Incêndio ocorreu na última segunda-feira, 29, na aldeia Anderé, Terra Indígena (TI) Rio Branco, Alta Floresta do Oeste (RO). Indígenas do povo Makurap acreditam que o fogo tenha sido provocado por madeireiros que moram próximo à área.
Foto _ Rota Comando
POR GUILHERME CAVALLI, ASCOM/CIMI
Incêndio criminoso destruiu três casas na última segunda-feira, 29, na aldeia Anderé, Terra Indígena (TI) Rio Branco, Alta Floresta do Oeste (RO). Indígenas do povo Makurap acreditam que o fogo tenha sido provocado por madeireiros que moram próximo à área. “A gente não merece isso. Não sabemos o porquê de toda essa violência”, lamenta liderança indígena. Ainda, um gerador de energia responsável pelo abastecimento de luz e água da comunidade desapareceu após incêndio. Os indígenas encontraram perfurações na caixa d’agua feitas com arma de fogo. No momento da destruição todos os moradores estavam fora da aldeia, ao coletar castanhas. “A gente acredita que estavam observando e aproveitaram o momento que não tinha ninguém na aldeia”.
Para liderança da TI, o ato demonstra hostilidade contra as populações tradicionais que vivem no norte do Estado. “Já existiram alguns conflitos entre indígenas e não indígenas. Eles querem explorar em nossas aldeias. Tem muitos madeireiros e pescadores que rondam por aqui. Reclamamos que não queríamos mais eles em nossas terras. Não devem ter gostado e se vingaram”, comenta. A terra tradicional é habitada pelos povos Aikanã, Arikapú, Aruá, Djeoromitxí, Kanoê, Makurap e Tupari.
“Além de duas casas, eles queimaram também a nossa casa de chica. Era um lugar sagrado”, lamenta outro indígena. “Ontem fomos até a Fundação Nacional do Índio, em Ji Paraná, para colocar o que aconteceu. O mínimo que esperamos é que seja feita alguma coisa, também que protejam a gente”.
Os Makurap foram historicamente sitiados e violentados por projetos de exploração. No ciclo da borracha, o território tradicional desses grupos foi invadido por seringais. Na história do povo esse regime é conhecido como momento de depopulação em razão de epidemias.
Loteamento em Terra Indígena
Em agosto, lideranças da Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas (Opiroma) e da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (Agir) denunciaram em Brasília as invasões e desmatamento que ocorrem constantemente em suas terras.
“Nós temos loteamentos feitos dentro das Terras Indígenas Uru Eu Au Au, Karitiana, Karipuna, entre outras terras indígenas”, comentou José Luís Kassupá, coordenador da Opiroma. “Há mais de trinta anos estamos lutando para retirar os invasores de dentro das terras indígenas. Hoje o marco temporal legaliza isso e outras questões também, como as invasões, o desmatamento dentro das terras indígenas”.
Em fevereiro de 2017, uma reportagem do portal Amazônia Real apurou que as Secretarias de Agricultura (Seagri) e de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) do governo do estado de Rondônia atuaram ativamente na distribuição de lotes dentro da área demarcada, participando inclusive de reuniões realizadas dentro da terra indígena, junto com o vice-prefeito do município de Ariquemes (RO), Lucas Follador, e um representante do senador Acir Gurgacz (PDT-RO).
Em levantamento realizado pela Associação Jupaú e pela Associação Etnoambiental Kanindé e entregue ao Ministério Público Federal (MPF) em janeiro de 2017, constatou-se que há 313 Cadastros Ambientais Rurais (CAR) sobrepostos a terras indígenas no estado de Rondônia. A grande maioria – 275 – sobrepõe-se à TI Uru Eu Wau Wau, mas há também 15 registros de sobreposição à TI Massaco; 12 na TI Karipuna; 6 na TI Kaxarari; 2 na TI Karitiana; além de um na TI Sagarana, um na TI Sete de Setembro, um na TI Aripuanã e um na TI Lage e Ribeirão.
O registro no CAR pode ser feito pelos proprietários e, embora não seja um documento fundiário, há diversas denúncias de casos em que o CAR tem sido utilizado para legalizar áreas griladas, empregado como uma espécie de comprovação de ocupações ilegais.
Rondônia e o desmatamento
O avanço agressivo da exploração madeireira e grilagem das terras indígenas é uma prática da expansão da fronteira agrícola.
“Os invasores – madeireiros e grileiros – agem a luz do dia, sem que nenhum órgão de controle e fiscalização tome providencias para coibir tais ilegalidades”, denunciou em outubro uma nota do Conselho Indigenista Missionário Regional Rondônia. O texto aponta o marasmo governamental como atitude conivente com os crimes ambientais e contra as comunidades tradicionais que habitam a região.
“A omissão faz com que o Estado de Rondônia se caracterize como terra de ninguém, um campo aberto para a expansão de grupos econômicos inescrupulosos. Promove-se o esbulho possessório dentro das TI e Unidades de Conservação Ambiental”.
Há menos de 30 anos, Rondônia tinha 2% de áreas desmatadas. Hoje encontra-se como campeão da devastação na região Amazônica – 9 milhões de hectares, mais de um terço da área total do estado. Os dados são de 2007 e foram organizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre os principais motivos para o desmatamento está o crescimento da indústria madeireira e as queimadas que são feitas para o desenvolvimento da pecuária e da agricultura.
De acordo com o estudo “O Fim da floresta?  A devastação das Unidades de Conservação e Terras Indígenas no Estado de Rondônia”, o modelo econômico de exploração dos recursos naturais é um dos principais fatores que causam o aumento do desmatamento.
Mapa: Grupo de Trabalho Amazônico (GTA).
Dois projetos se evidenciam no mapa ao lado. Com aproximadamente um quarto pintado de roxo – cor utilizada para identificar as áreas de desmatamento, a cartografia permite compreender a ampliação das práticas madeireiras sobre as Terras Indígenas e de conservação.
“O cenário indigenista vivido no estado de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso do Sul e Sul do Amazonas é preocupante, devido aos constantes retrocessos nos direitos indígenas, de modo especial as contínuas invasões dos territórios por grupos econômicos inescrupuloso”, expressa a nota divulgada também em agosto pelo Regional Noroeste da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
O avanço da fronteira agrícola eleva também as violências contra comunidades indígenas, tradicionais e para pequenos agricultores. O relatório Conflitos no Campo – Brasil 2016, produzido anualmente pela Comissão Pastoral da Terra, mapeou 162 casos de violência no estado.
“[…] exploração predatória de madeira, a pecuária extensiva e a concentração fundiária, com reflexos no crescimento desordenado das cidades e o aumento da violência, têm contribuído para a intensificação de pressões sobre as unidades de conservação, terras indígenas e outras áreas protegidas no estado”, afirma o estudo produzido pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA).

STF marca julgamento de ação sobre Reserva Parabubure: agropecuária quer indenização de 1 milhão de cruzeiros

Ação teve início em 1979. Para a Assessoria Jurídica do Cimi, o indigenato reconhece a ocupação tradicional, consolida direitos originários e anula títulos expedidos de forma ilegal
Crianças Xavante _ Foto Reproduzida/CIMI

Por ADELAR CUPSINSKI, RAFAEL MODESTO E VANESSA RODRIGUES DE ARAÚJO – ASSESSORIA JURÍDICA/CIMI
O Supremo Tribunal Federal (STF) pautou para o próximo dia 8 de fevereiro o julgamento da Ação Civil Originária (ACO) 304. Os autores da ação, a Agropecuária Serra Negra e o Estado de Mato Grosso, alegam que a origem da propriedade Fazenda Divina Graça, a qual integra a Reserva Indígena Parabubure, situada no Vale do Rio Couto Magalhães, teve início com o título de domínio expedido pelo Estado no ano de 1960. Por essa razão, reivindicam o pagamento de indenização à União Federal e à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) correspondente ao valor da gleba de terras, com área de 353,40 hectares.
A ação teve início em 1979 como Ação Ordinária de Indenização. Contudo, por tratar-se de um conflito federativo entre União e o Estado de Mato Grosso, a ação foi encaminhada ao STF, onde tramita desde 1981.
A Funai, na condição de ré, expôs que os limites da Reserva Indígena Parabubure, definidos pelo Decreto 84.337/79, incidem sobre terras de posse tradicional dos índios Xavante. Diante desse quadro, pediu o reconhecimento da nulidade do ato de alienação de terras pelo Estado de Mato Grosso devido ao vício original presente no documento de aquisição, visto que este foi expedido pelo Estado, que não detinha o poder de dispor.
Este não é o primeiro caso em que o Estado se intitulou dono de área por considerá-la terra devoluta e a alienou para terceiros. No ano de 2017, no dia 16 de agosto, duas Ações Civis Originárias foram julgadas, pelo pleno do STF: as ACO’s 366 e 362. O julgamento de ambas ações teve como objeto de litígio a concessão de títulos incidentes em terras indígenas pelo Estado de Mato Grosso. Na ocasião, o STF, de forma unânime, declarou como nulo e extintos os efeitos jurídicos desses títulos.
O primeiro ponto que exige reflexão transita no questionamento sobre o argumento que vem sendo utilizado pelos autores da ação em defesa da legalidade dos títulos de propriedade expedidos pelos Estados. Ainda cabe indagar, neste contexto, que via jurídica seria capaz de comprovar a tradicionalidade dessas terras e consequentemente promover a anulação de títulos expedidos ilegalmente?  
Alienação de terra pelo Estado e a Expedição de Títulos de Propriedade
A defesa que gira ao redor da alienação de terras pelo Estado e da expedição de título de propriedade advém de uma má interpretação da Constituição de 1891, a qual expõe no artigo 64 o seguinte teor:
Art 64. “Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”
Apoiados neste texto constitucional, os autores da ACOs 366, 362 – já julgadas pelo Pleno do STF – e da ACO 304 – em fase de julgamento – classificaram as terras indígenas como devolutas. Contudo, as terras indígenas ocupadas tradicionalmente por indígenas não podem ser caracterizadas como devolutas, pois são terras de ocupação tradicional, logo, não há o que se falar em indenização por desapropriação indireta.
Este entendimento já pacificado pelo STF destaca como principal argumento a comprovação da ocupação histórica e tradicional indígena; tanto pela via jurídica quanto antropológica.
Em termos doutrinários, a tribuna sempre recorre à teoria do Professor João Mendes Júnior, de que as terras do indigenato, desde o alvará de 1º de abril de 1680 e, depois, a Lei de 1850 e o Decreto de 1854, já eram áreas destinadas aos indígenas.
“(…) as terras do indigenato, sendo terras congenitamente possuídas, não são devolutas, isto é, são originariamente reservadas, na forma do Alvará de 1º de abril de 1680 e por dedução da própria Lei de 1850 e do art. 24, §1º, do Decreto nº 1854 (…)” (Os indígenas do Brasil, seus direitos individuais e políticos, 1012, p. 62)
No âmbito normativo, o STF recorreu ao arcabouço do indigenato anterior e posterior à República. O indigenato é a única fonte jurídica que comprova a ocupação tradicional indígena. Do mesmo modo, que o laudo antropológico constitui a única fonte antropológica capaz de reconhecer e atestar sobre as terras de ocupação tradicional. Os dois juntos consignam a principal via de embate contra a tese do marco temporal que visa a imposição temporal sobre o reconhecimento das terras indígenas, qual seja a data da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Indigenato – período anterior à República
A teoria do indigenato comporta normas formuladas no período da legislação colonial, imperial e republicana. Esse aparato jurídico foi revisitado pelo STF no julgamento das ACO’s 366 e 362. Destacamos aqui o posicionamento de quatro ministros que, apoiados na teoria do indigenato, acuradamente fundamentaram seus votos.
O ministro Alexandre de Moraes, subsidiado pelo voto da ministra Ellen Grace, salientou que desde o Alvará de 1º abril de 1680 e, posteriormente, a Lei n° 601/1850 (Lei de Terras) e o Decreto n° 1318/1854, já protegiam os direitos territoriais dos povos indígenas.
Por sua vez a ministra Cármen Lúcia, presidente da Corte Suprema, salientou em seu voto que:
“Desde 1680, o alvará que tratava das sesmarias concedidas pela Coroa (1º.4.1680) reconhecia e ressalvava o senhorio “primário e natural” dos indígenas sobre as terras por eles ocupadas. Posteriormente, a chamada Lei Pombalina, de 1755, na linha do estabelecido pelo Alvará de 1º.4.1680, aprimorou sensivelmente a tutela legal dos direitos indígenas, por ordem da Coroa portuguesa, entre os quais o de “inteiro domínio e pacífica posse das terras … para gozarem delas por si e todos seus herdeiros”.
No mesmo sentido, o ministro Roberto Barroso ponderou:
“A Constituição de 1891, em seu artigo 83, manteve em vigor as leis anteriores à sua promulgação que não fossem explícitas ou implicitamente contrárias ao sistema de Governo firmado e aos princípios consagrados. Uma dessas leis era a Lei nº 601 de 18.09.1850 (Lei de Terras), cujo art. 3º definia as terras devolutas e cujo art. 12 permitia ao Governo Imperial reservar, dessas terras, aquelas que julgasse necessárias para a colonização dos indígenas. Todavia, o cipoal normativo daquela época, que incluía até mesmo um Alvará Régio de 01.04.1680, tornava pouco clara a relação jurídica existente entre os indígenas e as terras que lhes serviam de habitat”.
O ministro Edson Fachin também acolheu essa tese argumentativa ao proferir:
“O direito dos indígenas à posse e uso das terras que ocupam tampouco foi infirmado pela Lei de terras acima citada, e veio também assegurada pelo disposto do artigo 24, § 1º do Decreto nº 1318/1854, que regulamentou referida lei, pois entende que a posse é legitimada ao primeiro ocupante, e já se reconhecia o direito originário dos indígenas às terras em sua posse”.
Indigenato – período da República
No período da República, os direitos indígenas foram consagrados nos textos constitucionais desde a Carta de 1934 até a Constituição de 1988. Os ministros do STF também recorreram a estas cartas para fundamentarem seus votos em reconhecimento à ocupação tradicional da terra.
O ministro Marco Aurélio Mello salienta em seu voto que desde a Carta de 1934 é reconhecida a posse dos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam. Consta no artigo 129 da referida Carta o seguinte teor: “será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”.
A Constituição de 1937 versava no artigo 154 o seguinte entendimento: “será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas”. Já na Carta de 1946, estava previsto que seria “respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem”. Por sua vez, os dispositivos da Carta de 1967 estabeleciam no artigo 4, inciso IV, a inclusão: “entre os bens da União as terras ocupadas pelos silvícolas”.
O ministro Alexandre de Moraes de modo a reforçar o voto do ministro Marco Aurélio salienta que:
“A partir da Constituição de 1934, as constituições passaram a consagrar o direito dos grupos indígenas sobre os imóveis por eles ocupados e o próprio Supremo Tribunal Federal foi definindo que essas áreas de ocupação indígena são de propriedade da União, o que culminou na edição da Súmula 480: “Pertencem ao domínio e administração da União, nos termos dos arts. 4º, IV e 186, da Constituição Federal de 1967, as terras ocupadas por silvícolas”.
Por sua vez, o ministro Fachin expõe:
“A Constituição Federal de 1934 foi a primeira a consagrar o direito dos índios à posse de suas terras, disposição repetida em todos os textos constitucionais posteriores, sendo entendimento pacífico na doutrina que esse reconhecimento constitucional operou a nulidade de pleno direito de qualquer ato de transmissão da posse ou da propriedade dessas áreas a terceiros, como assinalou Pontes de Miranda, em comentário efetuado à Constituição de 1946, cujo conteúdo era idêntico em relação à tutela dos Indígena”.
Na mesma linha, o ministro Barroso assinalou:
“A Constituição de 1934 foi a primeira a enfrentar o tema expressamente, e desde então colocou um ponto final na discussão: protegeu-se a posse das terras onde os povos indígenas estivessem “permanentemente localizados”, proibindo-se sua alienação. Essa previsão foi repetida nas Constituições de 1937 e 1946. A Constituição de 1967 alterou ligeiramente essa redação, garantindo aos povos indígenas a “posse permanente das terras que habitam” e o direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes. Além disso, a CF/67 incluiu as “terras ocupadas pelos silvícolas” dentre os bens da União. A Constituição de 1969 avançou ainda mais na proteção às terras indígenas, declarando “a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tivessem por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras ocupadas pelos silvícolas”, além de afastar o direito a qualquer ação ou indenização daí decorrente”.
Ainda cabe resgatar o voto do ministro Victor Nunes Leal, proferido no RE n° 44.585, que embasou a Súmula 480 do STF. O referido voto aparece nos votos dos ministros Marco Aurélio, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.
“(…) A Constituição Federal diz o seguinte: ‘Art. 216: Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde de achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.’
Aqui não se trata do direito de propriedade comum; o que se reservou foi o território dos índios. Essa área foi transformada num parque indígena, sob a guarda e administração do Serviço de Proteção aos Índios, pois estes não tem a disponibilidade das terras.
O objetivo da Constituição Federal é que ali permaneçam os traços culturais dos antigos habitantes, não só para sobrevivência dessa tribo, como para estudos dos etnólogos e para outros efeitos de natureza cultural ou intelectual. Não está em jogo, propriamente, um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos; trata-se do habitat de um povo.
Se os índios, na data da Constituição Federal, ocupavam determinado território, porque desse território tiravam seus recursos alimentícios, embora sem terem construções ou obras permanentes para testemunhar posse de acordo com o nosso conceito, essa área, na qual e da qual viviam, era necessária à sua subsistência. Essa área, existente na data da Constituição Federal, é que se mandou respeitar. Se ela foi reduzida por lei posterior; se o Estado a diminuiu de dez mil hectares, amanhã a reduziria em outros dez, depois, mais dez, e poderia acabar confinando os índios a um pequeno trato, até ao terreiro da aldeia, porque ali é que a ‘posse’ estaria materializada nas malocas.
Não foi isso que a Constituição quis. O que ela determinou foi que, num verdadeiro parque indígena, com todas as características culturais primitivas, pudessem permanecer os índios, vivendo naquele território, porque a tanto equivale dizer que continuariam na posse do mesmo.
Entendo, portanto, que, embora a demarcação desse território resultasse, originariamente, de uma lei do Estado, a Constituição Federal dispôs sobre o assunto e retirou ao Estado qualquer possibilidade de reduzir a área que, na época da Constituição, era ocupada pelos índios, ocupada no sentido de utilizada por eles como seu ambiente ecológico”.
(RE 44.585, Tribunal Pleno, DJ em 12/10/1961)
Conclusão
A teoria do indigenato comporta marcos normativos fundamentais para o reconhecimento da ocupação tradicional, consolidação dos direitos originários e para anulação de títulos expedidos de forma ilegal pelos Estados ou mesmo pela União Federal. Além disso, juntamente com os laudos antropológicos, atua como principal instrumento de repúdio ao marco temporal.
Restou, a partir do resgate da teoria do indigenato, que o marco temporal não trata de uma discussão sobre disputas de natureza possessória, mas sobre o reconhecimento e legitimação dos direitos coletivos e originários, protegido por leis constitucionais e infraconstitucionais.
O que os povos indígenas e os movimentos sociais indígenas e indigenistas esperam do julgamento da ACO 304, no dia 8 de fevereiro de 2018, é que o STF reconheça, do mesmo modo que reconheceu no julgamento das ACO’s 366 e 362, a teoria do indigenato como princípio fundamental para o reconhecimento da ocupação tradicional das terras indígenas.
Fonte: Assessoria Jurídica - Cimi

1 de fevereiro de 2018

Em cada 10 deputados federais, 6 têm atuação desfavorável ao meio ambiente, indígenas e trabalhadores rurais


Ferramenta desenvolvida pela Repórter Brasil avalia o comportamento socioambiental dos parlamentares eleitos em 2014 a partir de como votam e dos projetos que elaboram.
 Magalhães e Reinaldo Chaves/Repórter Brasil em  CIMI

Pelo menos 313 deputados federais, ou 61% da Câmara, têm atuação parlamentar desfavorável à agenda socioambiental. Eles votam e elaboram projetos que têm impacto negativo para o meio ambiente, povos indígenas e trabalhadores do campo.
Os dados são resultado de levantamento que levou em conta 14 votações nominais e 131 projetos de lei nessa área. Para medir se os projetos e proposições teriam impacto negativo ou positivo, oito organizações do setor socioambiental foram chamadas para fazer uma avaliação de mérito desses projetos. O cruzamento de dados faz parte do Ruralômetro, ferramenta jornalística para consulta sobre os deputados federais produzida pela Repórter Brasil.
Cada deputado foi pontuado dentro de uma escala equivalente ao que seria a temperatura corporal: de 36⁰C a 42⁰C. Quanto pior avaliado, mais alta a sua temperatura – podendo atingir níveis de febre.
Entre os febris, há ministros, ex-ministros, além de pré-candidatos. Dos 313 deputados que tiveram comportamento legislativo desfavorável à agenda socioambiental, quase a metade (49%) é da Frente Parlamentar Agropecuária, a bancada ruralista. Mas nem todos os ruralistas estão mal avaliados.
Há 35 membros da bancada com atuações parlamentares avaliadas como favoráveis à agenda socioambiental. Entre eles, está o deputado Augusto Carvalho (SD-DF), com 36,2°C. Ele é autor do Projeto de Lei 324/2007 que proíbe a administração pública de comprar móveis de madeira rara ou extraída ilegalmente, projeto considerado como favorável pelas organizações avaliadoras.
O deputado pior avaliado é o presidente da bancada ruralista, Nilson Leitão (PSDB-MT), com febre de 42⁰C. Leitão é autor de oito projetos de lei desfavoráveis ao meio ambiente, povos indígenas e trabalhadores rurais. Entre eles, está o polêmico projeto de lei 6442/2016, que permite o pagamento de trabalhadores rurais com comida e moradia.
Ainda entre os febris, estão o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun (MDB-MS), com 40°C e o ministro dos Esportes, Leonardo Picciani (MDB-RJ), com 40,2°C. O pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSC-RJ) tem 38,7⁰C e o aspirante ao governo de São Paulo, Celso Russomanno (PRB-SP), 39,8⁰C.
As entidades consultadas foram o Instituto Socioambiental, a Comissão Pastoral da Terra, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e dos Trabalhadores Assalariados Rurais, o Conselho Indigenista Missionário, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, o Greenpeace e a Fundação Abrinq.
Entre os partidos, quatro têm 100% do quadro febril: MDB, PEN, PHS, PSL. Eles são seguidos por PSD e DEM, com 94% e 89% dos seus políticos com febre, respectivamente. O PSDB tem 75% dos seus deputados federais com mais do que 37,4⁰C.Em alguns casos, a pontuação do partido pode ser explicada pelo seu posicionamento como oposição ou situação ao governo. O PT, por exemplo, teve todos os seus deputados avaliados com temperatura saudável nessa legislatura.
Entre os Estados, o maior percentual de deputados febris está em Goiás, com 88% dos seus representantes com mais de 37,4⁰C. Seguido por Mato Grosso, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins, todos com 87% dos deputados febris.
O ministro Carlos Marun informou, por meio de nota, que como deputado pautou seus “votos pela garantia do Estado de Direito” e que sempre defendeu o bioma Pantanal. O Ministério dos Esportes afirmou que “parece que o levantamento comete um equívoco ao colocar no mesmo patamar de análise deputados que estão no exercício do mandato, enquanto o ministro [Picciani] licenciou-se em maio de 2016 para assumir o Ministério do Esporte.”
Russomanno disse que “procura sempre representar o interesse público, o que inclui defesa do meio ambiente, direitos indígenas, quilombolas”. A assessoria de deputado Bolsonaro informou que ele não responderia por estar em recesso.
Repórter Brasil entrou em contato com os 13 deputados que têm febre acima de 41°. Nilson Leitão, assim como outros nove deputados pior pontuados pelo Ruralômetro, não respondeu aos nossos pedidos de entrevista e nem às perguntas enviadas. Leia aqui íntegra das respostas.
Além da pontuação dos deputados, o Ruralômetro mostra quem recebeu financiamento de campanha, em 2014, de empresas autuadas pelo Ibama ou que foram flagrados com trabalho escravo. Segundo o levantamento, 57% dos eleitos receberam, ao todo, R$ 58,9 milhões em doações de empresas autuadas pelo Ibama por cometerem infrações ambientais. Outros 10% foram financiados com R$ 3,5 milhões doados por empresas autuadas por trabalho escravo.
Para o professor de Ética e Filosofia da Unicamp, Roberto Romano, o estudo revela uma estreita relação entre empresas financiadoras de campanhas e a atuação parlamentar dos deputados. “Trata-se do sucesso de setores interessados, tanto em termos econômicos quanto sociais, em conseguir no Congresso avanços para o seu grupo”, analisa.
Um exemplo que ilustra a análise do pesquisador é o caso do deputado Antônio Balhmann (PDT-CE), eleito em 2014 mas que se licenciou no ano seguinte para assumir um cargo no governo do Ceará. O político recebeu doação eleitoral oficial de R$ 20 mil da produtora de frutas Agrícola Famosa, alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal que proíbe a empresa de pulverizar agrotóxicos na Chapada do Apodi. Poucos meses após eleito, o deputado elaborou um projeto de lei que regulamenta o uso de agrotóxicos em plantações não tradicionais, o que inclui produtoras de frutas.
“Trata-se do sucesso de setores interessados, tanto em termos econômicos quanto sociais, em conseguir no Congresso avanços para o seu grupo”, analisa Roberto Romano.
O ex-deputado afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que o projeto não estimula o uso de agrotóxicos, mas cria legislação e regulamenta o setor. O político, no entanto, reconheceu que, ao elaborar o PL, tinha interesse de “ajudar os produtores de fruticultura com seus problemas e regulamentar e controlar suas atividades.”
“Quando analisamos os projetos de lei no Congresso, vemos que não são projetos que pensam o Brasil, mas pelo menos 40% deles são dedicados a defender interesses de setores específicos”, avalia Andréa Freitas, cientista política e professora da Unicamp. “Não é ruim que tenhamos dentro do Congresso alguém defendendo os ruralistas ou os comerciantes, mas seria importante que tivéssemos representantes defendendo com igual força os pequenos produtores ou os consumidores”.
Votações desde 2015
Nesta legislatura, 2017 foi o ano campeão em votações desfavoráveis ao meio ambiente. Em meados do ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou três polêmicas medidas provisórias que geraram reação de ambientalistas e até de celebridades. Duas delas reduzem a área protegida de Jamanxim, um parque nacional na Amazônia paraense, e a outra amplia o programa de regularização fundiária, que ficou conhecida como ‘MP da Grilagem’. As medidas, segundo organizações de defesa do meio ambiente, devem aumentar o desmatamento e os conflitos no campo.

Um detalhe: as três medidas provisórias foram editadas pelo presidente Michel Temer às vésperas do Natal de 2016 e aprovadas pela Câmara dentro do prazo previsto para que não perdessem validade. No caso Jamanxim, a modelo Gisele Bündchen pediu no Twitter que Temer vetasse as medidas. O presidente seguiu parcialmente os conselhos da modelo: vetou artigos das MPs, mas enviou ao Congresso projeto de lei com conteúdo similar.

“A agenda ruralista ganhou mais poder nos últimos anos, o que coincide com a representação dela no Executivo. Antes, tínhamos o Executivo exercendo uma contra-força”, analisa Adriana Ramos, coordenadora do programa de política e direito socioambiental do ISA (Instituto Socioambiental).
Na questão trabalhista, sob o mandato de Temer, houve duas votações consideradas por organizações de defesa de trabalhadores rurais como desfavoráveis:  terceirização e reforma trabalhista. Porém, no governo Dilma, o Executivo também editou medidas provisórias, depois aprovadas pela Câmara, que retiram direito dos trabalhadores. Caso, por exemplo, da restrição ao seguro-desemprego e da redução do acesso à pensão por morte do INSS.
Essas são algumas das 14 votações que constam na base de dados do Ruralômetro. O estudo considerou apenas votações desta legislatura que têm algum tipo de impacto socioambiental onde houve votação nominal, em que os deputados registram seu voto.
Projetos de lei
Dos 131 projetos de lei cujos autores são deputados eleitos em 2014 que constam na base de dados do Ruralômetro, 87 foram classificados como desfavoráveis e 44 como favoráveis. 26 deles alteram o processo de demarcação de terras indígenas ou pedem a suspensão da homologação de comunidades regularizadas. Outros seis considerados desfavoráveis tratam de mudança nas regras de licenciamento ambiental e três facilitam a liberação de agrotóxicos.
Há ainda um projeto defendido pela bancada ruralista que libera o porte de arma para trabalhadores ou proprietários de áreas rurais e uma Proposta de Emenda à Constituição que permite e regula compra de terras por estrangeiros.
Segundo os analistas ouvidos, para entender o fenômeno em questão é preciso diferenciar a agenda do agronegócio e do ruralismo – entendido como um setor que se preocupa menos com a produtividade, e mais com a propriedade sobre a terra.
“Não é ruim que tenhamos dentro do Congresso alguém defendendo ruralistas ou comerciantes, mas seria importante que tivéssemos representantes defendendo com igual força pequenos produtores ou consumidores”, afirma a cientista política Andréa Freitas
“É uma forma antiga de se pensar o ambiente rural, mais ligada à questão fundiária, à apropriação da terra”, afirma a cientista política Andréa Freitas. Para ela, há uma relação direta entre ser ruralista e atuar favoravelmente a projetos que flexibilizam a questão ambiental. “Há pouca preocupação com a preservação da água, do solo”.
O coordenador de Direito de Propriedade da Frente Parlamentar Agropecuária, Jerônimo Goergen, afirma que a principal bandeira da bancada é “defender quem produz no Brasil”, mas reconhece que a questão da propriedade sobre a terra é uma prioridade. “Das defesas da FPA, a questão fundiária é sem dúvida uma prioridade. Mas como um direito, como uma segurança jurídica”, comentou.
Fonte: Repórter Brasil
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