31 de janeiro de 2018

Milícia privada: fechamento compulsório e multa de R$ 240 mil para empresa envolvida em morte de indígenas



Povos indígenas de MS: alvo preferencial de empresa
que atuava como milícia privada. Foto _ Ascom/MPF
Companhia de segurança GASPEM deixará de existir. Sequestro de bens vai garantir indenização por danos morais.

POR ASCOM MPF/MS em CIMI
A Justiça atendeu pedido do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS) e determinou a dissolução da empresa GASPEM Segurança Ltda (matriz e filiais), além do cancelamento do registro na Polícia Federal e aplicação de multa de R$ 240 mil por danos morais. Para garantir o pagamento da multa, foi decretada a indisponibilidade de bens, entre dinheiro vivo e aplicações, imóveis e veículos, até o valor total de R$ 240 mil. A sentença já transitou em julgado, ou seja, não cabe mais recurso contra a decisão.
O MPF/MS denunciou a empresa por atuação ilegal em propriedades rurais com conflito fundiário, onde executou ataques contra comunidades indígenas que resultaram em dezenas de feridos e na morte de duas lideranças. Para o MPF, a GASPEM se constituiu em “força paramilitar ou milícia privada”.
A Justiça foi clara ao listar as irregularidades administrativas cometidas pela empresa. “Pelo que consta, a Gaspem descumpria rotineiramente as normas exigidas para o exercício de suas atividades empresariais: uso de autorização de funcionamento vencida, contratação de profissionais sem Carteira Nacional de Vigilantes e sem vínculo formal com a empresa, transporte de arma de fogo sem autorização, prestação de informações falsas sobre postos de trabalho e localização de armas, além de não utilizar armamento menos letal, como determina a lei”, afirma o juiz na sentença.
De acordo com a investigação, a empresa chegava a receber R$ 30 mil para cada desocupação violenta e os seguranças da GASPEM eram contratados para intimidar e aterrorizar as comunidades – atuações que desviam a finalidade da empresa, constituída para “prestar segurança privada em imóveis urbanos, rurais e eventos”.
No entendimento do Ministério Público Federal, a GASPEM, além do desvio de finalidade, tinha atividade “indiscutivelmente” ilícita.
“Trata-se de um grupo organizado que dissemina violência contra os Guarani-Kaiowá do cone sul de Mato Grosso do Sul através de pessoas brutais nominadas ‘vigilantes’, na maioria das vezes sem qualificação para o exercício da atividade, portando armamento pesado e munições, a fim de praticarem atos contrários ao ordenamento jurídico e à segurança pública”.
Existem diversas investigações em curso sobre atos violentos cometidos por funcionários da GASPEM, quando de despejos forçados de indígenas ocupantes de propriedades rurais:
– Ação penal nº 0000152-46.2006.403.6005, que apura a morte do indígena Dorvalino Rocha, na zona rural de Antonio João, em 24/12/2005. Contratado pela GASPEM como auxiliar de escritório, João Carlos Gimenez Britez confessou ter sido o autor dos disparos que mataram o indígena Dorvalino Rocha.
– Ação penal 0003088-82.2008.403.6002, onde consta que em 30/03/2008 seguranças da GASPEM, trabalhando na Fazenda do Inho, em Rio Brilhante, teriam provocado lesões corporais no indígena Agostácio Locário Zuca.
– Inquérito Policial DPF nº 214/2008, que investiga possível desobediência de ordem judicial por seguranças da GASPEM, contratados pela Fazenda Serrano, em Dourados, ao impedirem acesso médico e distribuição de alimentos aos indígenas do acampamento Curral do Arame, em 02/10/2008.
-Inquérito Policial DPF nº 175/2009, que averigua suposta agressão e expulsão de indígenas do acampamento Curral do Arame, e a destruição de seus barracos e pertences pessoais em 17/09/2009.
Barracos indígenas destruídos no acampamento Curral do Arame. Foto: Ascom MPF/MS
– Autos sigilosos nº 0000021-29.2010.403.6006, que revelam que em 09/12/2009 cerca de 30 homens, liderados por prepostos da GASPEM, agrediram e expulsaram de forma violenta os índios que acampavam às margens da estrada vicinal Sete Placas, em Iguatemi.
– Autos sigilosos 0003280-98.2011.403.6005, no qual vigilantes da GASPEM teriam constituído uma quadrilha armada para cometer lesão corporal, incêndio e homicídio, para expulsar violentamente índios que ocupavam propriedades privadas.
– Ação penal nº 0000643-40.2012.403.6006, que apura fatos ocorridos em 23/08/2011, na região de Naviraí, em que funcionários da GASPEM teriam amarrado, lesionado e transportado indígenas a locais distantes de uma ocupação, além de atearem fogo nos barracos.
– Ação penal nº 0001927-86.2012.403.6005, que apura o ataque a indígenas ocorrido em 18/11/2011, em Aral Moreira, supostamente cometido por funcionários da GASPEM, do qual resultou a morte do indígena Nízio Gomes.
MPF denunciou 19 pessoas pela morte do cacique guarani Nízio Gomes. Foto: Ascom MPF/MS
A sentença afirma que “a participação da GASPEM nos conflitos fundiários é incontroverso. Constam dos autos diversas solicitações à Polícia Federal para o transporte de armas e munições da sede até os imóveis rurais reivindicados pelos indígenas”.
Referência processual na Justiça Federal de Dourados: 0000977-52.2013.403.6002
Fonte: ASCOM MPF/MS

Crise de suicídios indígenas no Brasil: o que nós sabemos sobre a psicologia indígena?

O marido de Mara, Onildo, se enforcou numa
 árvore dois dias antes dessa foto ser tirada; sua filha
 ouve a conversa
 Ilma Gomes é uma rezadeira Guarani-Kaiowa que chora o suicídio de 17 adolescentes. FOTOS _ A.V. Elkaim
Maria Benites olha para a foto de um dos
seus filhos que ela perdeu para o suicídio

Por Vilma Reis  com informações do HuffPost Brasil e The Globe and Mail na Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco

No início de 2018 o Ministério Público Federal e as Defensorias Públicas da União e do Estado de Mato Grosso do Sul ajuizaram ação civil pública para obrigar a implementação de política pública destinada à saúde mental da população da Reserva Indígena de Dourados, a com mais alto índice de suicídio no Brasil: em 2015, enquanto a taxa brasileira foi de 9,6 suicídios por 100 mil habitantes, a mesma taxa entre os indígenas foi de 89,92, a maioria entre 15 e 29 anos. Entre 2012 e 2014, o Brasil teve taxa média de 29,2 homicídios por cem mil habitantes. A taxa para os indígenas da reserva foi de 101,18 por cem mil habitantes. O número é quase 400% superior aos não indígenas do Mato Grosso do Sul, de acordo com a ação. Embora representem apenas 6,79% da população de Dourados, os indígenas responderam por 67% das internações de menores por delitos. 
Araci Samori de Amambai  perdeu seu marido, Nivaldo Chara Martim, 42, e seu filho Michel, 15, para o suicídio
Diante destes números a Abrasco ouviu Luiza Garnelo, membro do Grupo Temático Saúde Indígena da Abrasco e pesquisadora da Fiocruz. Luiza é bacharel em Medicina e Filosofia e doutora em Ciências Sociais/Antropologia.
Para Luiza, dar visibilidade a essa temática é absolutamente relevante no contexto da análise da violência em saúde, tal como concebida pela saúde coletiva no Brasil: – “Os poucos trabalhos disponíveis sobre o tema mostram taxas alarmantes, pari passu a ausência de uma política adequadamente traçada para iniciar o enfrentamento de tais problemas no âmbito do subsistema de saúde indígena.

Arsenio Vasques criou seu neto Enildo e o viu se enforcar aos 16 anos anos
Nilcilene e Vera Lúcia ouvem enquanto
enquanto sua avó Maria Benites fala sobre
dois de seus filhos que se suicidaram
As razões habitualmente levantadas como correlacionadas ao suicídio indígena apontam problemas ligados à violenta história da colonização, invasão de terras, discriminação e desigualdades relativas aos modos de vida do mundo não indígena, abuso de álcool e diversos processos sociais que redundariam num clima propício a auto agressão indígena, resultando em suicídios. São questões certamente relevantes que expressam iniquidades sociais, que incidem de modo mais profundo e agudo sobre as minorias étnicas que vivem em território brasileiro e que podem e devem ser objeto de preocupação e de investigação desse delicado problema de saúde.
Entretanto, uma adequada abordagem do problema demanda também a preocupação com um componente que não tem sido objeto de preocupação das autoridades de saúde e da maioria dos pesquisadores nesse campo. Trata-se da investigação de dimensões internas dessas sociedades, tais como o regime do parentesco, as dimensões mito cosmológicas que instituem os fundamentos das subjetividades indígenas, as relações intergeracionais, os conflitos que dilaceram a vida de jovens indígenas – população em que são maiores os índices de suicídio – frente à impossível conciliação entre as exigências de escolarização e profissionalização demandada pelo mundo moderno e os papeis sociais propriamente indígenas, marcados pelo limitado espaço para a individualização que parece ser uma característica inerente ao sucesso no mundo do branco, em detrimento da família e do grupo social.
Nesse contexto não sabemos, de fato, que dimensões qualitativas envolvem o ato suicida, já que todos os grupos estão sujeitos a pressões e violências advindas do mundo do branco, mas nem todos se suicidam e algumas etnias sofrem com maiores taxas de suicídio do que outras. Quais seriam as contradições e impasses existenciais que impeliriam jovens indígenas ao suicídio? Que problemas eles enfrentam e que, consideram de tal forma insolúvel que o caminho a trilhar lhes parece ser a morte? Ou seja, o estudo das dimensões sociais, econômicas e fundiárias certamente deve ser parte integrante da investigação desses eventos, mas não se deve descurar de investigar o lado interno desses eventos, sob pena de reduzirmos os povos indígenas a meras caixas de ressonância que respondem às pressões externas de modo mais ou menos mecânico e mais ou menos desesperado na forma de autoagressão.
Por fim, cabe uma reflexão sobre a organização de serviços de saúde nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, muitos dos quais contam com psicólogos que devem se responsabilizar pela “saúde mental” da população atendida. Nesse âmbito, em que pese a boa vontade e motivação da maior parte deles, faz-se necessário perguntar o que seria “saúde mental” do ponto de vista indígena, ou seja, de um ponto de vista não etnocêntrico? O que sabemos nós sobre a psicologia indígena? Quais seriam os modos de sofrimento e expressões derivadas em grupos culturalmente diferenciados que não partilhem a lógica da razão ocidental disseminada há pouco mais de dois séculos pela psicologia e psicanálise, que mais do que descrever, produziram um constructo do que seja a razão ocidental?
Que fundamentos temos para as ações de saúde mental, cujas teorias são essencialmente ligadas à organização das sociedades ocidentais modernas e pouco conhecimento acumularam sobre mundos, imaginários e sentimentos não ocidentais que instituem a base do que chamamos de saúde mental. Em suma, há que se problematizar também se a atenção dita diferenciada que é preconizada pela política nacional de saúde das populações indígenas dispõe, no seu componente de saúde mental, de fundamentos que permitam aos profissionais abordar os modos de ser, de viver e de sofrer dos indígenas nos cuidados ofertados em sua rede de serviços, assegurando-se de que os mesmos não padeçam dos males do etnocentrismo que é, na base, parte inerente dos determinantes sociais e culturais do adoecimento dos grupos que a própria política se propôs a assistir“, pontua Luiza.

29 de janeiro de 2018

Ordem de despejo contra retomadas poderá repetir massacre de Caarapó, temem Guarani e Kaiowá

Decreto de Morte, como nomeia a carta divulgada pelos indígenas, autoriza despejo de retomadas Guarani e Kaiowá próximo a tekoha onde ocorreu o Massacre de Caarapó.
Ato contra reintegração de posse das tekoha Ñamoy Guavira’y e Jeroky Guasu em 2016. Foto: Rafael de Abreu

POR GUILHERME CAVALLI, ASCOM CIMI
Essa notícia pode se confundir com tantas outras. Isso porque o procedimento se repete incansavelmente. A reintegração de posse emitida pelo 1ª Vara da Justiça Federal de Dourados (MS) há três meses ordena o despejo das comunidades tradicionais Pindoroki, Nhamõe Guavyray e Guapoy Guasu, dos povos Guarani e Kaiowá. A cena que se desenha na região guarda semelhanças da ocorrida em 2016. Na ocasião, fazendeiros se reuniram e atacaram o acampamento da retomada tekoha Toro Paso, apoiados por jagunços, pistoleiros uniformizados e encapuzados. O massacre de Caarapó vitimou Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, cinco Guarani e Kaiowá foram baleados e seis outros feridos. Hoje a tekoha Toro Paso passou a se chamar  Kunumi Poty Verá, nome guarani de Clodiodi. Em português significa Guerreiro Iluminado.
O Decreto de Morte, como nomeia a carta divulgada pelos indígenas em apoio a retomada, emitido há três meses determina a desocupação da fazenda Santa Maria, município de Caarapó, na terra indígena Dourados Amambai Pegua 1. No interior da TI em questão, estão diversos tekoha retomados pelos Guarani e Kaiowá nas últimas décadas – Paí Tavy Terã, Ñandeva, Ñamoy Guavira’y, Jeroky Guasu, Tey’Jusu, Kunumi Vera, Guapo’y, Pindo Roky e Itagua.
A partir da decisão de reintegração de posse foram enviados Ofícios ao Corpo de Bombeiro com solicitação de que uma ambulância e equipe médica acompanhasse a ação de despejo. Com argumentos de um possível clima de “animosidade”, se prevê na decisão judicial a possibilidade de novo massacre.
A Reintegração
Datada em 24 de outubro e assinado pelo juiz federal Moises Anderson Costa Rodrigues, o documento estabelece a retirada dos indígenas em “improrrogáveis 90 dias”. A data “venceu” na última quarta-feira. Indígenas temem violência. O processo (0000738-09.2017.4.03.6002) foi movido pela  Agropecuária Penteado, arrendatária da Fazenda Santa Maria, e  tem como réu a União Federal, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A atualização mais recente do processo ocorreu no dia 15 de janeiro e aguarda manifestação do Ministério Público Federal (MPF).
Em carta de apoio aos Guarani e Kaiowá das retomadas que se encontram ameaçadas de despejo, indígenas do Mato Grosso do Sul denunciam o “projeto de morte do Governo” que ordena “desocupação forçada” a ser cumpridas pela Polícia Federal e Militar.  “Há muito tempo estamos esperando que o estado nos reconheça como gente, muitos de nós já morreram esperando a demarcação efetiva de nossas terras tradicionais e o cumprimento de nossos direitos garantidos na Constituição federal”, declaram. “A única resposta que ouvimos até agora da justiça e do Governo Federal são mais decretos de morte, este despejo com certeza será o segundo Massacre de Caarapó contra o nosso povo”.
A paralisação das demarcações, efeitos do Parecer 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), sustenta a atmosfera de encarceramento dos indígenas em um espaço incapaz de garantir a vida das comunidades, sitiadas na primeira metade do XX pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).  
“Não aceitaremos mais viver confinados como bichos à espera do abate, a exemplo de tantos outros líderes indígenas do nosso e de tantos outros povos deste país, nós seguiremos vivos”. As três retomadas foram realizadas devido à crise humanitária, realidade das Reservas de Dourados, com 16 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena em três mil hectares, e Tey Kue, criada na década de 30 e que confina sete mil indígenas em pequeno espaço. A fazenda que incide nas tekoha – lugar onde se é – Pindoroki, Nhamõe Guavyray e Guapoy Guasu pertence a  Agropecuária Penteado. A propriedade era utilizada para produção de soja.
“O projeto de extermínio do governo é claro, ordens de despejos, bombas de gás, armas de fogo, tropas de choque, só o ajudaram a cumprir mais rápido o seu propósito de nos matar”
No Mato Grosso do Sul 15 indígenas foram assassinados em 2016, mortes que coloca o estado como o mais violento para povos tradicionais, segundo os dados do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas, publicado anualmente pelo Cimi. Na carta anexada abaixo, indígenas acusam o Estado de se responsabiliza pelas mortes devido as políticas “de opressão” adotadas contra os povos tradicionais. “Esse tipo de interpretação não resolverá os conflitos por terra neste Estado, pelo contrário, só aumentarão, mais mortes que aconteceram sempre. Somente a demarcação e devolução destas terras para nós povo Guarani e Kaiowá, sanará estes conflitos”.
Estado do Latifúndio
Na raiz do conflito agrário e violência no campo está a concentração de terras rurais nas mãos de poucos. Conhecido como o grande potencial das fronteiras agrícolas, o MS tem 92% do seu território como propriedade privada, dos quais 83% são latifúndios. “Não queremos as terras dos fazendeiros, não queremos toda a terra do estado de Mato Grosso do Sul, nós só queremos as nossas terras tradicionais, a terra onde nossos antepassados viveram, o restante pode ficar tudo para os ricos, para a bancada ruralista, para o governo, para o capital internacional, para quem mais quiser”. É no MS que se encontra a maior concentração fundiária do país, de acordo com Atlas Agropecuário lançado pela Imaflora em parceria com o GeoLab, da Universidade de São Paulo (USP).
2017: Tekoha Jeroky Guasu, em Caarapó, Dourados Amambai Peguá I. Foto: Rafael de Abreu
No estado mais violento para os povos indígenas existem 102 terras indígenas com pendências para finalização do procedimento demarcatório, 74 em nenhuma providência para demarcação. No Brasil, apenas 30,9% das terras indígenas possuem algum processo administrativo finalizado. São 836 terras indígenas com pendência administrativa para seus procedimentos demarcatórios. Destas 836, um total de 530 terras – o equivalente a 63,3% – não tem quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos indigenistas governamentais. Com a tese do marco temporal e os efeitos do Parecer 01/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), o chamado Parecer Antidemarcação, a postura do Governo Temer é de inércia. É realidade que gera conflito e insegurança em centenas de comunidades.
Violência e Morte em reintegração de posse
Em 2013, na reintegração de posse de uma fazenda incidente sobre a Terra Indígena Burity, no município de Sidrolândia (MS), Oziel Gabriel Terena foi assassinado por um disparo feito pelas forças policiais. Em 12 de junho de 2016, Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza foi morto no tekoha Toro Paso, em Caarapó (MS). “Não recuaremos, aqui morreremos, assim como o nosso irmão Clodiolde”, asseguram em documento. O Ministério Público Federal, dias depois do assassinato de Clodiodi, denunciou 12 indivíduos por formação de milícia privada no MS.
“Atiraram sem trégua, encapuzados de milícia paramilitar”, diz um verso da música Meu Glorioso Clodiodi, do Ruspo (ouça aqui).
Sete casos ocorreram no MS caracterizados como conflitos relativos a direitos territoriais. Em 2016 foram registrados ataques às comunidades indígenas das terras Kurusu Ambá, Dourados Amambaipeguá e Guaiviry, dos povos Guarani e Kaiowá.
Carta da Terra indígena Dourados Amambai Pegua´1 e apoio aos Tekohá Pindoroki, Namõe Guavyray e Guapoy Guasu.
Nós Povos Indígenas Guarani Kaiowá de todos os tekohá (09 Retomadas) e da Reserva indígena Tey Kuê da T.I Dourados Amambai peguá I, estamos reunidos e mobilizados em favor das comunidades tradicionais Pindoroki, Nhamõe Guavyray e Guapoy Guasu e contra a ação de despejo  concedida pelo juiz federal da 1ª instância Moises Anderson Costa Rodrigues a estas três comunidades e todo o povo Guarani e Kaiowá do estado de MS.
Senhor Juiz, povo do Mato grosso do Sul, do Brasil e do Mundo, ouçam a nossa voz, estamos gritando por justiça, há muito tempo estamos esperando que o estado nos reconheça como gente, muitos de nós já morreram esperando a demarcação efetiva de nossas terras tradicionais e o cumprimento de nossos direitos garantidos na Constituição federal, a única resposta que ouvimos até agora da justiça e do governo federal são mais decretos de morte, este despejo com certeza será o segundo Massacre de Caarapó contra o nosso povo.
Diante de tanta violação de direitos Humanos e indígenas deixamos aqui o nosso apelo, a nossa vida e a nossa luta, a nossa resistência é a nossa sobrevivência, morrer por alguma coisa, estamos dispostos a morrer pela nossa terra, pela nossa existência, pelo nosso futuro, por isso lutaremos, o nosso objetivo é reconstruir o nosso jeito de ser e de viver em nossas terras tradicionais. Nossas crianças ainda enfrentaram muitas décadas pela frente e por elas não abriremos mão, não recuaremos, aqui morreremos, assim como o nosso irmão Clodiolde (Assassinado em 14 de junho de 2016 no Massacre de Caarapó) aqui ficaremos.
O sangue de nosso guerreiro Clodiolde banhou a nossa terra, brotando em nós sementes e frutos de luta e resistência em busca da liberdade para o nosso povo Guarani e Kaiowá, não aceitaremos mais viver confinados como bichos a espera do abate, a exemplo de tantos outros lideres indígenas do nosso e de tantos outros povos deste país, nós seguiremos vivos.
O projeto de extermínio do governo é claro, ordens de despejos, bombas de gás, armas de fogo, tropas de choque, só o ajudaram a cumprir mais rápido o seu proposito de nos matar, assim também aconteceu com o nosso parente Oziel Gabriel assassinado em 2013 na T.I Buriti pela policia federal que cumpria a ordem de “reitegração de posse” para os fazendeiros da região.
As ações dos poderosos deste País contra nós povos indígenas não param por ai, decretos, portarias, leis, teses vem sendo fortemente investidas contra nossos direitos. A portaria 303, a pec 215, o marco temporal são provas vivas deste projeto que visa tirar sempre mais direitos.
Com o marco temporal, por exemplo, o governo vem tentando novamente punir os povos indígenas, negando a nossa história. Ora o mesmo governo que nos expulsou de nossos territórios no passado é agora o que quer nos dizer que só tem direto as nossa terras tradicionais os povos que estavam nas mesmas em 5 de outubro de 1988. Por que será que não estávamos lá? O direito do povo guarani Kaiowá a suas terras tradicionais é imemorial, não começa em 88, começa no dia em que nasceu o primeiro índio nestas terras, hoje brasileiras.
Esse tipo de interpretação não resolverá os conflitos por terra neste estado, pelo contrario só aumentarão, mais mortes aconteceram sempre. Somente a demarcação e devolução destas terras para nós povo guarani e Kaiowá, sanará estes conflitos, não queremos as terras dos fazendeiros, não queremos toda a terra do estado de mato grosso do sul, nós só queremos as nossas terras tradicionais, a terra onde nossos antepassados viveram, o restante pode ficar tudo para os ricos, para a bancada ruralista, para o governo, para o capital internacional, para quem mais quiser.
Chega de terror contra nossas comunidades, chega de opressão, chega de massacres, chega de tentar nos desindianizar, chega de tentar nos desterritorializar, este modelo não serviu pra ninguém ate agora, se não aos poderosos deste país, deixem nos viver livres, sendo nós mesmos dentro de nossas terras tradicionais.
Queremos dizer que a terra e nós índios somos um único corpo, que não podemos viver sem a terra e ela sem nós. Se isso acontecer morreremos todos. A terra é o elemento essencial para a nossa sobrevivência, portanto avisamos, se a “justiça” insistir em cumprir mais este decreto de morte, nós povo guarani e Kaiowá da T.I dourados amambai pegua I estaremos prontos e postos pra enfrentar, não temos armas, nem bombas matérias, mais temos a nossa reza e a nossa esperança na justiça. Por nossas crianças não recuaremos, Confiantes, sem medo e sem arrogância estamos preparados, Resistiremos sempre!
Nós povo guarani e Kaiowá não somos proprietários da terra, do contrario nós pertencemos a ela, somos seus filhos, seus frutos, por isso, lutamos por nossa mãe!
Todos aqueles que lutam em defesa da vida, não permitam mais injustiças, não permitam mais  genocídio contra o nosso povo guarani Kaiowá, não permitam mais despejos, a cada índio que morre é um pouco de sua historia que morre também, junte-se a nós.
Pela terra, por mais vida, justiça e liberdade, Resistiremos!
Terra indígena Dourados Amambai pegua I, Aldeia Tey Kuê,
Caarapó/MS 24 de janeiro de 2018.


7 de janeiro de 2018

Marcondes Nambá: Desenhando com o próprio sangue

Fotos _ Reproduzidas do site Taqui Pra Ti 

 “... meu ódio é o melhor de mim / Com ele me salvo /  e dou aos poucos uma esperança mínima”. (Carlos Drummond – A flor e a náusea)
Por José Ribamar Bessa Freire em Taqui Pra Ti
– Faça um desenho mostrando como são tratados, hoje, os índios no Brasil, imaginando que daqui a 400 anos um historiador o encontrará num arquivo junto com outros documentos que atravessaram o tempo.
Dei essa tarefa, em outubro de 2013, aos alunos do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Entre eles, Marcondes Namblá, professor Laklãnõ/Xokleng da Terra Indígena Alto Vale do Itajaí. Ninguém podia imaginar que, quatro anos depois, o desenho seria feito com sua própria vida, isto é, com sua morte. Ele foi assassinado a pauladas, com o crânio fraturado, neste primeiro de janeiro. Tinha 38 anos, cinco filhos, um sorriso doce e cativante de menino e deixa na orfandade as crianças da escola indígena onde ensinava.
O suspeito do crime Gilmar Cesar de Lima, 22 anos, residente em Gaspar (SC), com várias passagens pela polícia, teve prisão preventiva decretada. Segundo o delegado Douglas, a polícia o identificou através das câmeras de monitoramento que flagraram o momento do crime cometido com um porrete. Testemunhas revelam que “Gilmar falou a pessoas que passavam na rua que o indígena teria ‘mexido’ com o cachorro dele”. O caso, para a polícia, se encerra quando o foragido for preso. Para nós, não.
– “A violência contra os povos indígenas é sistemática, diária, individual e coletiva” – denuncia o Núcleo de Estudos dos Povos Indígenas (NEPI) da UFSC, o que é confirmado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em nota na qual denuncia “a onda de intolerância racista contra indígenas no litoral de Santa Catarina, estimulada pelas autoridades municipais que não aceitam o fato de os indígenas frequentarem as praias”.
Efetivamente, agressões, humilhações e discriminação acontecem com muita frequência, inclusive contra crianças, mas só são registradas em caso de morte. Há dois anos, o Brasil acompanhou, estarrecido, o enterro no dia 1º de janeiro de Vítor, bebé kaingang de dois anos, degolado por um jovem de 23 anos na rodoviária de Imbituba (SC) diante da própria mãe. As agressões aumentam, ironicamente, nas festas de Natal, quando muitos índios saem de suas aldeias para vender artesanato aos turistas, ou no caso de Namblá, para vender picolé numa praia em Penha.
Brinquedos e brincadeiras
Por que alguém, pertencente à espécie humana, age como uma besta-fera e mata um semelhante que esboça gesto de carinho a um cachorro? O que ele ganha com isso? Em qual escola estudou? Quem colocou merda nesse cérebro criminoso? Por que ceifou a vida de um pesquisador promissor que em novembro último impressionou o público do III Seminário Crianças e Infâncias Indígenas com a apresentação dos resultados de sua pesquisa? Na ocasião, Namblá revelou à antropóloga Antonella Tassinari seus planos de ingressar no mestrado para continuar investigando a infância indígena.
Esse foi o tema de sua monografia de conclusão de curso em abril de 2015. Ele pesquisou a prática dos banhos nos rios, mostrando como a construção da Barragem Norte transformou o cotidiano das crianças Laklãnõ e prejudicou as brincadeiras infantis que registravam vocabulários específicos na língua nativa e foram abandonados. Preocupado com o destino da língua materna, Namblá estava atento para a circulação de saberes tradicionais e as dimensões identitárias configuradas pelo território. “Ele nos cativou com seu sorriso, entusiasmo e criatividade” – escreveu Antonella.
Os depoimentos de professores e colegas ressaltam a jovialidade e o entusiasmo de Namblá pela vida. Ele era dono de uma “alegria contagiante que nos passava com sua viola e cantorias de sempre na UFSC” nas palavras enlutadas de sua colega, a guarani Kerexu Yxapyry. Ele cantava e encantava.
Guardo dele saudosas lembranças. Depois que ministrei dois módulos para sua turma, continuamos a manter contato permanente, com troca de mensagens pelo facebook. Numa delas, em 18/01/2014, ele escreveu:
– Olá professor. Quero ampliar a minha pesquisa sobre a infância. Na conversa em Foz do Iguaçu vc me falou de um autor que fala disso, gostaria de saber o nome dele.
– Acho que foi o Walter Benjamin – eu respondi
– Ah, é esse mesmo.
Dois depois lhe enviei cópias do “História Cultural do Brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira – Observações sobre uma obra monumental”, ambos de Benjamin. Já em 2015, Namblá comentou a resenha que lhe enviei do livro “A hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin” organizada por Rita Ribes.
Continuamos em contato até há alguns meses quando ele escreveu: (07/03/2017):
– Olá, professor! Td bm? Sabe eu to de saída, mas logo que vi vc conectado, lembrei que podes me ajudar, se puder, é claro. To precisando que vc me envie artigos científicos sobre metodologia de ensino de língua portuguesa literatura.
Respondi:
– Oi Namblá, veja nesse site (leonorwerneck.wixsite.com) lá vai encontrar o que te interessa. Acho que vale a pena consultar também a revista “Linha D’Água” da APPL – Associação dos Professores de Língua e Literatura. Também o artigo “Na sala de Aula” de Antônio Cândido.
– Valeu. Vou pesquisar o site sim. Muito obrigado
O desenho
Esse é Marcondes Namblá, assassinado não só por um indivíduo, que foi apenas um instrumento, mas pela sociedade que o armou com o preconceito. Ele e seus 35 colegas de turma, Laklano, Guarani e Kaingang, além da dolorosa experiência pessoal, conheceram a trajetória histórica da violência. Na disciplina Análise e interpretação de textos que ministrei na Licenciatura das Linguagens, em Florianópolis, todos leram trechos da “Nova Crônica e Bom Governo” do índio andino Felipe Guamán Poma de Ayala (1526-1615), ilustrada com 398 desenhos só encontrados em 1908 na Biblioteca Real da Dinamarca.
Foi aí que cada aluno escolheu um desenho para comentar sua atualidade. São imagens fortes do período colonial, de caráter narrativo, que relatam os métodos violentos usados pelos conquistadores, num deles está a imagem do avô do autor, Guamán Chaua, que foi queimado vivo por Pizarro. O desenho de Poma de Ayala selecionado por Namblá foi aquele em que violência física era cometida contra crianças indígenas chicoteadas pelo mestre-escola.
Marcondes Namblá escreveu comentário para avaliação da disciplina, que depois leu no Colóquio sobre Poma de Ayala em Foz do Iguaçu, em outubro de 2014, numa mesa com a participação dos Guarani Joana Mongeló e Teodoro Alves, e dos professores da UNILA Clóvis Brighenti, Giane Lessa e Mário Ramão Villaba.  Em sua homenagem, reproduzo aqui trechos do seu texto:
“A imagem que escolhi retrata os abusos das autoridades políticas e religiosas.  Mas o que eu gostaria de deixar para a posteridade é que a entrada da igreja dentro das terras indígenas sem dúvida é a pior e mais eficiente arma utilizada pelos colonizadores europeus para dominar os povos indígenas brasileiros.
“Sobre o autor, foi a primeira vez que conheci o trabalho através do professor José Bessa, durante uma etapa do curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica – UFSC. É impressionante ler um texto de 500 anos atrás e saber como e o que aconteceu naqueles anos. Podemos descobrir as atrocidades que os espanhóis cometeram com os Incas no Peru. O desenho é interessante, pois ele consegue transmitir com muita precisão o que ele testemunhou durante a sua vivência.

“Outra mensagem que o desenho nos transmite enquanto indígenas é que a cultura oral é muito importante, mas no mundo atual, o registro escrito de tudo o que acontece no dia-a-dia da comunidade, os rituais, a musicalidade, a culinária, os medicamentos tradicionais, o movimento e a luta pela conquista dos nossos direitos é fundamental, para que as gerações posteriores possam conhecer. Por isso defendo o ingresso dos indígenas nas universidades, sabendo que a formação acadêmica pode contribuir para concretizar esse processo”.
Quando seu colega guarani Eduardo Kuaray morreu, em novembro de 2014, escrevi que a morte de um aluno jovem é, para o professor que a ele sobrevive, como a morte de um filho: uma inversão, uma cilada do destino, da história. Assim como existe pai órfão de seu filho, existe professor órfão de seu aluno. Já sinto saudades da troca de mensagens com Namblá. O coração, repleto de vergonha pelo Brasil no qual vivemos, revela a impotência de dar um basta num crime que se arrasta por cinco séculos.
Só nos resta a esperança de que o desenho com sangue de Namblá contribua para combater a intolerância e chegue ao séc. XXV, quando quem será julgado por esses crime não será um pobre infeliz, mas a sociedade que o armou. Com dor, mas com indignação e com a raiva de Drummond.
P.S. – Na terça-feira, 9 de janeiro, às 9 hrs da manhã, o Curso de Licenciatura da UFSC realiza um ato em homenagem a Marcondes Namblá. Agradeço as informações recentes e as fotos postadas por Marina Oliveira, Clóvis Brighenti, Antonella Tassinara e Kerexu Yxapyry.

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