29 de novembro de 2017

TRF concede habeas corpus a fazendeiros acusados de ataque a indígenas

Ataque à comunidade Tey Kuê, em Caarapó, deixou um morto e 8 feridos
Indígenas velam corpo de Clodiodi _ Foto Cimi (ver vídeo)

A 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) concedeu, por unanimidade, habeas corpus a cinco fazendeiros acusados de envolvimento em ataque a indígenas em Caarapó, ocorrido em junho do ano passado. Jesus Camacho, Virgilio Mettifogo, Eduardo Yoshio Tominaga, Nelson Buainain Filho e Dionei Guedes foram soltos e deverão cumprir medidas cautelares.
O ataque à comunidade Tey Kuê, na Fazenda Yvu, deixou um morto e oito feridos . As prisões aconteceram agosto do ano passado. Na época, a Polícia Federal cumpriu mandados de prisão e de busca de apreensão expedidos pela Justiça Federal de Dourados.
Ler Dossiê do Cimi sobre o massacre e veja vídeos   aqui (Amazônia Legal em Foco)
Na ação, foram encontradas diversas armas como um rifle calibre .38, uma pistola calibre. 380 e sete espingardas de diversos calibres.
Conforme a decisão, os proprietários rurais deverão comparecer trimestralmente em juízo para informar e justificar suas atividades e estão proibidos de acessar o local onde houve o caso, de manter contato com vítimas, com testemunhas ligadas a ela e um com o outro e de ausentar-se por mais de oito dias do local onde residem, além de entregarem os passaportes.
Conforme o relator, desembargador Federal Fausto de Sanctis, não será necessário o monitoramento por meio de tornozeleira eletrônica, tendo em vista que os acusados não obstruíram o andamento do processo e não descumpriram determinações da justiça, já que compareceram espontaneamente para o cumprimento da ordem de prisão.
CONFRONTO
No dia 12 de junho, índios da comunidade Tey Kuê, da etnia Guarani-Kaiowá, ocuparam a Fazenda Yvu. No dia seguinte, agentes da Polícia Federal foram notificados da ocupação por fazendeiros que os levaram até o local.
Os policiais não encontraram reféns e foram informados pelos indígenas de que o proprietário poderia, em 24h, retirar o gado e seus pertences do local. Sem mandado de reintegração de posse, os PFs retornaram a Dourados.
Os proprietários rurais e mais 200 ou 300 pessoas ainda não identificadas, munidas de armas de fogo e rojões, se organizaram para expulsar os índios do local em 14 de junho.
De acordo com testemunhas, foram mais de 40 caminhonetes que cercaram os índios, com auxílio de uma pá carregadeira, e começaram a disparar em direção à comunidade.
De um grupo de 40 a 50 índios, oito ficaram feridos e Clodioude Aquileu Rodrigues morreu.
Leia Mais

15 de novembro de 2017

Envolvido na morte do índio Galdino não pode seguir carreira policial, diz MPF

Órgão, no entanto, admite a possibilidade de ingresso em outros cargos da Administração Pública
Monumento em homenagem ao índio Galdino, em Brasília (foto _ blogdaFunai/Rodrigo Piubelli)



No entendimento do Ministério Público Federal (MPF), um dos envolvidos no assassinato do índio Galdino não pode seguir carreira policial. A manifestação se deu no Recurso Especial 1.593.717/DF (que corre em segredo de justiça), em que o recorrente pede para assumir o cargo de Agente da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), em razão de sua aprovação em concurso público realizado em 2013. No parecer, enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o MPF até admite a possibilidade de futura posse dele em outro cargo na Administração Pública, nas esferas federal, estadual e municipal, para o qual seja considerado apto em exame psiquiátrico.
O subprocurador-geral da República Brasilino Pereira dos Santos opinou pelo desprovimento do recurso com base no edital do concurso e também em precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do próprio STJ. Para o subprocurador, “os atos infracionais podem, sim, ser levados em consideração na avaliação da personalidade do candidato a exercer a função de agente da polícia”.
Brasilino Pereira dos Santos destaca que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a investigação social, prevista em edital, não se resume em analisar a vida pregressa do candidato quanto às infrações penais que tenha praticado, mas também à conduta moral e social no decorrer de sua vida, para investigar o padrão de comportamento do candidato à carreira policial. “O cargo em disputa reverte-se de peculiaridades e especifidades inerentes à função de policial e, de modo geral, aos cargos atinentes à área de segurança pública”, pondera o subprocurador.
Punição perpétua – No recurso especial, o recorrente alega que já teria cumprido a pena pela infração cometida, sendo, portanto, ilícito o que chama de punição “contínua e perpétua”. Para o MPF, no entanto, a análise da personalidade dos candidatos pela Comissão de Sindicância de Vida Pregressa e Investigação Social faz parte do processo seletivo. E, nesta etapa, o jovem foi reprovado por incompatibilidade entre a conduta praticada no passado e os requisitos indispensáveis para o exercício de atividades policiais.
O subprocurador-geral da República ressalta, ainda, que a posse do candidato – condenado por ato infracional análogo ao crime de homicídio doloso com requintes de crueldade – poderia desencadear condutas discriminatórias dentro dos quadros da polícia, com a possibilidade de resultar em reprovável assédio moral.
Comoção – O candidato aprovado no concurso da PCDF e outros quatro jovens foram condenados em 2001 por haverem queimado vivo o índio Galdino, que dormia em uma parada de ônibus, em Brasília. O crime ocorreu em 20 de abril de 1997 e causou grande comoção social. À época, o jovem, ora candidato à carreira policial, tinha 17 anos de idade.
Após ser aprovado no concurso da Polícia Civil e reprovado na sindicância de vida pregressa, o candidato recorreu ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), que negou provimento ao recurso. Contra o acórdão do TJDF, o recorrente interpôs recurso especial perante o STJ, no qual o MPF foi intimado para se manifestar.
O recurso especial encontra-se ainda pendente de julgamento.

14 de novembro de 2017

Vozes do Direito indígena refletem sobre cenário atual

Foto _ Reproduzida
Por Sucena Shkrada Resk
Compreender os conceitos de bem-viver, de patrimônios imaterial e espiritual, do significado holístico da terra, do ecossistema e do território e do planeta como casa (mãe “pachamama”) e local sagrado, é o grande desafio das visões herméticas dos Estados que ainda se estabelecem na lógica de commodities e de uma cultura colonizadora por séculos. Este universo que abriga polos opostos resulta atualmente na cobrança cada vez maior de respeito ao direito internacional de ‘consulta prévia, livre e informada e autodeterminação’ de povos indígenas, tribais e tradicionais, que tem ecoado por diferentes partes do mundo, como também das efetivações dos processos de demarcações de terras indígenas, que cabem ao Estado.
Os consentimentos ou não deveriam ser pressupostos para a construção de represas, barragens, oleodutos, estradas, atividades mineradoras e extrativas que tenham impacto sobre comunidades indígenas e tribais. A realidade, entretanto, é outra.
Enquanto lideranças e advogados indígenas da Amazônia ao sul do Brasil tratavam desta pauta ontem (13/11), em evento (ver vídeo abaixo) promovido pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e parceiros, em São Paulo; a quilômetros de distância, no México, outros atores também se debruçavam sobre esta agenda, em encontro da Oxfam.
Essas vozes indígenas reverberam que diferentes povos estão preparados para a defesa dos seus direitos e expressam a importância de que a pauta seja incorporada como algo benéfico à toda sociedade (indígenas e não-indígenas), que resulte em forças agregadas. E esses direitos vão além do papel, são seculares.
Protocolos de consulta indígenas
Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), ao ser perguntada pelo Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk, expôs ontem que uma das principais reações de povos indígenas a essa situação de desrespeito às diretrizes da Convenção OIT 169, são as criações de protocolos de consulta específicos de cada povo. “Cada um tem um modo de vida próprio, tronco linguístico e cosmovisão diferentes e essas características são colocadas nos documentos”, esclareceu.
A experiência de apropriação desta ferramenta que tem se revelado importante para a defesa no campo jurídico já tem se intensificado desde 2016, por meio de iniciativas dos povos Mundurukude 16 povos do Território Indígena do Xingudos Juruna –  (Yudjá), dos Krenak, entre outros.
Para a advogada indígena Lucia Fernanda Jófej Kaingáng, da coordenação do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI) é necessário haver ações mais contundentes no país, devido às violações de direitos contínuas. Como Angela, destaca a importância estratégica dos protocolos de consulta. A aplicação desse dispositivo é visto como significativo instrumento no campo da jurisprudência.
“Nós, enquanto movimento indígena, estamos trazendo à tona e clamando para a sociedade que veja também esta pauta, como sobrevivência dos povos…A nossa luta não é isolada. Não são somente as terras que estão sendo atacadas, mas nossas vidas. Estão nos matando gradativamente quando constroem grandes hidrelétricas, quando contaminam nossos rios, assassinam lideranças…”, diz Angela Kaxuyana.
Contexto mundial
No último mês, um grupo de lideranças e advogados indígenas tem percorrido a Europa, para denunciar os casos de violações aos direitos indígenas no país, segundo Luiz Eloy Terena, advogado indígena, que assessora juridicamente a Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Brasil (APIB).  Ele explica que está ganhando projeção uma corrente importante de reconhecimento quanto ao crime de ecocídio. “O rio, a floresta, os animais são sujeitos de direito. (Ao serem violados), se configura um crime contra a humanidade…”. Com este entendimento, se estabelece que ao se violar os direitos indígenas, todos indistintamente somos afetados.
Para Eder Terena, vereador de município em MS, o movimento indígena está se fortalecendo cada vez mais, neste campo de defesa de direitos e para quebrar um estigma preconceituoso cultural histórico de que o “indígena é incapaz”. “Tem uma leva de acadêmicos indígenas que passam pela universidade para lutar de igual para igual (aliando os conhecimentos provenientes da sabedoria indígena ancestral)”, diz.
Victoria Tauli-Corpuz, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos Indígenas, apresentou um parecer abrangente, após visita ao Brasil, a respeito deste processo de violações constatados no país. Em um dos trechos, diz: “…Preocupa-me sobretudo a apresentação distorcida da mídia e de outros atores que retratam os povos indígenas como detentores de grandes extensões de terra em comparação com suas populações, quando na verdade é o setor do agronegócio que detém um percentual desproporcional do território brasileiro”.
“…A expansão de indústrias extrativistas, do agronegócios e de megaprojetos de infraestrutura e desenvolvimento, afetando territórios indígenas, permanece sendo uma das grandes ameaças enfrentadas pela maior parte dos povos indígenas. Medidas de conservação continuam a colocar em risco os povos indígenas, assim como os recursos rapidamente crescentes empregados a projetos sobre mudanças climáticas feitos sem a obtenção do seu consentimento livre, prévio e informado. As consequências de tais violações sobre os povos indígenas, como tenho observado em uma ampla gama de países em todo o mundo, continuam resultando em expropriação de terras, expulsões forçadas, negação à auto-determinação, assim como déficit no acesso a recursos para sua subsistência e perda de locais de importância cultural e espiritual.
Eu estou particularmente alarmada com o número crescente de ataques diretos a lideranças indígenas e membros de comunidades que tentam defender o direito sobre suas terras. Povos indígenas que defendem os seus direitos humanos fundamentais têm sido ameaçados, presos e processados e, nos casos mais graves, têm se tornado vítimas de execuções extrajudiciais.
Apenas no ano passado, eu enviei comunicações expressando preocupação quanto a esse tipo de ataque, entre outros, ao Brasil, à Colômbia, ao Equador, à Guatemala, a Honduras, ao Paraguai, ao Peru, à Etiópia, ao Quênia, à Tanzânia, à Índia, à Indonésia, às Filipinas e aos Estados Unidos da América. Conforme previamente anunciado, eu pretendo analisar detalhadamente este tema em um próximo relatório temático, no ano que vem…”
O desrespeito aos direitos indígenas se caracteriza das mais diferentes formas, como avalia o indígena Paulo Tupiniquim, da direção da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do NE, MG e ES. “Lideranças são criminalizadas ou morrem por defenderem seus territórios…Povos indígenas são massacrados ao terem terras tomadas pelo agronegócio ou pela (pressão) de PLs, PECs…”. Ao mesmo tempo, se dá um sucateamento de órgãos como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Patrimônios imateriais e espirituais
Paulo Tupiniquim ainda destaca a desconsideração aos valores espirituais de cada povo na implementação ou decorrentes de passivos provocados por grandes empreendimentos e citou a situação dos Krenak, na tragédia no rio Doce (MG), que atingiu até o ES, que completou dois anos.
A Universidade Federal de Minas Gerais, neste ano, mapeou as violações aos direitos humanos e impactos ao modo de vida sofrido pelos indígenas, consequência do rompimento da barragem de rejeitos da Samarco. Situação denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Segundo ele, indenizações não substituem os ‘tesouros’ que foram destruídos, tanto no tocante a valores imateriais como de segurança alimentar.
 “Quando a gente preserva as nascentes, está lutando por esse todo, pela mãe Terra…”, afirma Telma Taurepang, liderança da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB), que destacou a união crescente e resistência feminina indígena. Ela critica o avanço do desmantelamento das legislações e da Constituinte. “Do que vale estar no papel, se os mesmos (que são responsáveis pelas leis), não as cumprem”, questiona.
O cacique Darã Tupi-Guarani, da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (ARPIN SUDESTE) e da APIB, também ressalta a necessidade da incidência política indígena nestes espaços. “Precisamos ter cuidado com os tapinhas nas costas…precisamos ocupar espaços políticos…Um pé de soja (nesta lógica perversa) vale hoje mais que uma criança indígena…”, desabafa.
Panela de pressão
Esses exemplos de mobilização, no campo jurídico e de incidência política, se repetem em diferentes países e revelam bastidores de situações de violência (psicológica e física), tendo como aspecto principal a deflagração de disputa por territórios e o processo de vulnerabilização e paralisação na demarcação de terras indígenas frente a interesses de grandes proprietários da área de agronegócios ou empreendimentos, que resultam em significativos passivos socioambientais e de segurança alimentar.  Paralelamente, iniciativas de alterações legislativas pressionam a desestabilização dos direitos.
A Relatoria de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma de Direitos Humanos (Dhesca Brasil) tem exposto documentos que apontam estas questões, de forma mais sistematizada pela relatora Erika Yamada.  O alerta é a configuração vigente de um racismo institucional e ambiental no país.
Nada é por acaso: a imersão se multiplica devido a ineficiência da figura do Estado (das diferentes nações), no cumprimento legal, permeado por sobreposições do mercado e de interesses políticos sobre os direitos indígenas e humanos estabelecidos em legislações e tratados nacionais e internacionais, como a Convenção OIT 169, de 1989, que no caso do Brasil, foi ratificada e se transformou em lei brasileira, somente em 2004, além da Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.
A complexidade é tanta, que existe um documento editado pela FUNAI, em 2013, sobre a “A Convenção da OIT e o Direito de Consulta Livre, Prévia e Informada”, mas que internamente órgãos do próprio Estado, ligados à agenda,  até hoje não colocam efetivamente este exercício em prática, nos planejamentos, nos licenciamentos…
Na Convenção OIT 169, entre suas várias proposições, está o artigo 6º:
1. Na aplicação das disposições da presente convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) criar meios pelos quais esses povos possam participar livremente, ou pelo menos na mesma medida assegurada aos demais cidadãos, em todos os níveis decisórios de instituições eletivas ou órgãos administrativos responsáveis por políticas e programas que lhes afetem;
c) estabelecer meios adequados para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas próprias desses povos e, quando necessário, disponibilizar os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado.
Já em seu artigo 12, há o seguinte texto, que  também merece reflexão, se na prática existe tal procedimento:
Os povos interessados deverão ter proteção contra a violação de seus direitos, e poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente, seja mediante os seus organismos representativos, para assegurar o respeito efetivo desses direitos. Deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes”.
Apesar da Constituição brasileira de 1988, em seus artigos 231 e 232, trazerem à luz o campo dos direitos humanos e indígenas, como também o papel do Estado neste contexto, o que se vê é uma dicotomia permanente que envolve órgãos do Executivo e do legislativo (tramitação de cerca de 30 Projetos Emendas Constitucionais e projetos de lei, entre outros), que ficam na contramão desse processo democrático.
(231) – “São reconhecidos índios, suas organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarca-las, proteger e fazer respeitar seus bens…”.
(232) – “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo…”

Um marco temporal inconstitucional: nenhum direito a menos

Foto _  Guilherme Cavalli / Cimi 


Por Adelar Cupsinski, Alessandra Farias Pereira, Íris Pereira Guedes, Rafael Modesto dos Santos, Roberto Antônio Liebgott* da Assessoria Jurídica do Cimi 

Introdução


O que parte do Poder Judiciário vem chamando de “marco temporal”, nada mais é, pois, que uma interpretação que tende a restringir o alcance do direito à demarcação das terras indígenas, já que vincula este direito à presença física, e não tradicional, das comunidades nos seus territórios ao período de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da nossa atual Constituição Federal. 

Especialistas do Direito e da Antropologia, assim como as próprias comunidades indígenas alertam para o perigo de retrocesso desses direitos. A aplicação do marco temporal como condicionante para a demarcação das terras, esbarraria na previsão dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, assim como conflita com Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos e sobre povos indígenas e tribais. 

Ressalte-se, ainda, que embora o Supremo Tribunal Federal – STF não tenha esgotado o debate sobre a matéria, setores mais conservadores ligados ao ruralismo, aquém de uma interpretação constitucional, tentam impedir a consecução dos procedimentos de demarcação com base na limitada teoria do marco temporal. 

O que se pretende demonstrar, é que não há no ordenamento jurídico elementos que sustente essa incoerência e, muito menos, a jurisprudência da Suprema Corte dá margem para o reducionismo da previsão do Capítulo dos Índios da Carta Política de 1988. 
    
a) A tradicionalidade da terra e a nulidade dos títulos sobre áreas indígenas não admitem a teoria do marco temporal 

Certo de que a Constituição Federal de 1988 garantiu aos povos indígenas uma estrutura política e jurídica próprias e a manutenção de uma organização social calcada na tradicionalidade, nas diferenças e no pluralismo étnico. Deu condições, com isso, de poderem falar na sua língua materna e de manterem laços culturais, usos e costumes originários. Garantiu também o direito às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las num prazo de cinco anos, contados da promulgação em 05 de outubro de 1988.
Segundo o acórdão do caso Raposa Serra do Sol (Petição n. 3.388/RR) , terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são aquelas:

  • [...] demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as "imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar" e ainda aquelas que se revelarem "necessárias à reprodução física e cultural" de cada qual das comunidades étnico-indígenas, "segundo seus usos, costumes e tradições" (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade.
A interpretação acima transcrita, cunhada no caso Raposa Serra do Sol, expurga a tese do marco temporal. Essa previsão definida pelo art. 231, §2º, da CF/88, reconhece aos índios a tradicionalidade da terra, calcada no espaço funcionário de habitação permanente e de atividades produtivas, ou seja, lugares de moradia e aqueles usados para pesca, caça, coleta, roçados, etc; de par com as terras imprescindíveis à preservação dos recursos naturais e ambientais, como são as reservas e matas, garantia do bem estar indígena; e, ainda, as que se revelarem necessárias à reprodução física e cultural, como acidentes geográficos sagrados, cemitérios, canchas de cultos, de festas e as demais oriundas da cultura de cada povo. 

Essas áreas, de acordo com a Carta Magna, são tradicionais. A forma de ocupação não é civil, mas sim constitucional. A tradicionalidade da ocupação se dá pela via da religiosidade, da mitologia, dos usos e costumes e das tradições indígenas, já que necessárias à reprodução física e cultural dos povos. Por isso não há falar em marco temporal, sabendo que a posse é totêmica, permanente, constante, no imaginário indígena e não necessariamente cotidiana e física (art. 231, §2º da CF/88).

Neste sentido, não só devem ser consideradas como terras tradicionalmente ocupadas aquelas onde residem os indígenas, como também aquelas necessárias à sua reprodução física e cultural . José Afonso da Silva explica que a Constituição Federal define que sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, incidem os direitos de propriedade e os direitos originários . O Jurista argumenta que esses direitos são ”direitos fundamentais dos índios”, que podem ser classificados na categoria dos ”direitos fundamentais de solidariedade”, tal como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado .

Significa dizer que terra indígena e posse nativa são conceitos mais amplos que permanência física, mas sim posse anímica, psíquica e tradicional em certo espaço territorial. Na perspectiva de terra tradicionalmente ocupada por esse ou aquele povo indígena, vale dizer, prevalece toda a área necessária à reprodução física e cultural do povo.

A tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições.

Ainda, segundo José Afonso da Silva, não há previsão constitucional para tal orientação do marco temporal, pois ele não se consubstancia com a forma de ocupação tradicional prevista na Carta Magna:

Onde está isso [marco temporal] na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário, se se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa.

    Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal – STF assevera o seguinte sobre o marco temporal:

    É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.

    Veja-se, então, que o marco temporal encontra resistência na própria tradicionalidade inerente aos povos indígenas ou na própria inerência do conceito de terra tradicional prevista no art. 231, §2º da CF/88. Ainda, caso fosse constitucional o marco temporal, teria que respeitar a intenção do STF no julgamento dos Embargos de Declaração na Pet. 3388/RR ao determinar que aquele entendimento não se estende automaticamente a casos similares. 

    Caso existisse a previsão de um marco temporal na Constituição de 1988, certo que antes de aplica-lo ao caso concreto, ter-se-ia que, consubstanciado, ainda, no direito de consulta, perguntar aos povos indígenas se possuem animus, interesse, vontade de ter de volta o território, que, em segundo lugar, esbulhado em algum tempo por não-índios. O esbulho seria, portanto, mais uma exceção que deveria ser analisada em cada caso concreto, caso fosse entendido pelo Supremo como constitucional o marco temporal. 

    O que se tem então de palpável, é a inconstitucionalidade dessa teoria jurídica, já que não encontra razão de existir frente ao arcabouço do art. 231 da CF/88. Além do caput do art. 231, da previsão do seu §2º, bem já mencionados, o §6º também não permite sequer a hipótese de aplicação do marco temporal. Isso se justifica pelo fato do constituinte originário ter proibido a ocupação em 1988, por não-índios, em terras tradicionais ou, se houvessem ocupações tituladas, seriam todas nulas. Seria um marco temporal inverso, em favor do direito dos povos indígenas.

    Veja-se que a Constituição Federal prevê a nulidade e extinção dos títulos cedidos sobre território indígena. Isso significa dizer que a previsão alcança a invalidação dos títulos de terras onde os indígenas não estavam em 05 de outubro de 1988, por força da titulação feita ilegalmente pelo Estado e a consequente expulsão dos índios – a tese do marco temporal, invariavelmente, também é com base na não-presença indígena na data da promulgação da CF/88. Desta forma, no acórdão do caso Raposa Serra do Sol existem, isso sim, posições completamente dissonantes – se a terra tradicional foi titulada em algum tempo no passado, nos conceitos limitadores da posse civil , impossível, então, a presença indígena no território naquela data. Se, por outro lado, o título é nulo, não há que se falar em marco temporal. 

    Então, o §6º do art. 231 reconhece que em 1988 já haviam terras invadidas ou cedidas oficialmente a particulares e nelas os índios estavam impossibilitados de permanecer. Essas terras, portanto, estariam em posse de não-índios, mas, doutra banda, os títulos são invalidados por força do instituto da “extinção” e “nulidade”, insculpidos no mencionado §6º e, por esse motivo, deveriam ser devolvidas para os povos indígenas. 

    Destarte, não caberia, então, a tese do marco temporal diante do §6º do art. 231 da CF/88, seja pela falta de lógica de intepretação, seja pelo conflito aparente da norma constitucional. Do contrário, essa hermenêutica, sem dizer o direito avocado, derrogaria o art. 231, na parte do §6º, o que é juridicamente impossível. 

    A tese do marco temporal é, portanto, uma ficção, uma exegese sem sustentação, é inconstitucional e conflita com a previsão dos parágrafos 2º e 6º e com o caput do art. 231 da Constituição Federal.

    A conclusão é que o marco temporal, como criação ilógica ou uma interpretação política desarrazoada e a nulidade dos títulos como realidade constitucional, prevista no §6º do art. 231 da CF/88, não coexistem. Esta expurga aquela. Isso porque se haviam áreas tituladas no período da constituinte, não havia ocupação indígena à data da promulgação da Constituição por força do esbulho e, por outro lado, são nulos esses títulos e as terras, por isso mesmo, são tradicionais.

    b) O marco temporal e as decisões do Pleno com predominância hierárquica sobre decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal

    Sabido, ademais, que a teoria do marco temporal foi inaugurado com o julgamento do caso Raposa Serra do Sol em 2009. Depois, no ano de 2012, foi julgada a Ação Cível Originária nº 312, referente à Terra Indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. 

    Ambas decisões sobre demarcação de terras indígenas tiveram posições conflitantes, mesmo que resultaram na devolução das terras aos povos indígenas. Na ACO 312 foi usada a tese do indigenato, que contrapõe a tese do marco temporal e se aparelha à complexa previsão dos artigos 231 e 232 da Carta Política de 1988 e da Convenção 169 da Organização internacional do Trabalho – OIT, internalizada no ano de 2004 e considerada pelo ordenamento pátrio como norma supralegal. 

    Se a intepretação do marco temporal é retirada do tempo verbal da palavra ‘ocupam’ contida no art. 231, caput, a intepretação do indigenato abrange todo o arcabouço jurídico constitucional indígena. Inclusive, remonta os primeiros institutos jurídicos sobre direitos territoriais indígenas e alcança o respeito às instituições políticas e jurídicas do universo multicultural e pluriétnico dos povos tradicionais.

    Diante desses dois casos emblemáticos, a Suprema Corte, por meio da Segunda Turma, vem aplicando, em alguns casos e de forma contraditória, o reducionismo da teoria do marco temporal em detrimento do indigenato ou da previsão constitucional do direito indígena . Por outro lado, o Pleno não permitiu a extensão do marco temporal a casos similares ao da Raposa Serra do Sol , mantendo posição dissonante e hierárquica em relação às decisões da segunda Turma. 

    Isso significa dizer que está havendo uma inversão de princípios e até mesmo de hierarquia jurídica no STF, onde as decisões da Segunda Turma suprimem a posição do Pleno. 

    Ademais, o marco temporal não tem respaldo na jurisprudência, na Constituição Federal e muito menos no colegiado do Pleno do STF. Por outra banda, o indigenato, direito anterior à constituição do Estado brasileiro, e as garantias étnicas, especialmente o direito à terra e a demarcação, são normas cogentes e já sedimentadas pela Suprema Corte como dever do Estado e prioridade constitucional.

    c)    Conclusão

    Nos tempos atuais, a construção da nação brasileira baseada na democracia, igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, plural e sem preconceitos está em conflito. No caso dos povos indígenas, a teoria do marco temporal tenta forçar a desconstrução de direitos arduamente conquistados e construídos no decorrer dos últimos cinco séculos. 

    Neste aspecto, a existência dos índios já seria suficiente para afastar a teoria do marco temporal, pois a permanência e o futuro de um povo indígena está condicionada a um espaço fundiário. Caso contrário, o direito perde sua eficácia, sua finalidade e proeminência e a morte dos povos indígenas é a morte do próprio direito. 

    Artigo de

    Adelar Cupsinski
    Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
    Alessandra Farias Pereira
    Bacharel em Direito e assessora do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
    Íris Pereira Guedes
    Pesquisadora nas áreas de Direitos Humanos, Direito Internacional Público, Direitos Indigenistas, Estado, Democracia e Administração Pública e Social. Bolsista CAPES/CNPQ no Mestrado em Direito – UNIRITTER.
    Rafael Modesto dos Santos
    Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
    Roberto Antônio Liebgott
    Bacharel em Direito, formado no Curso de Filosofia e missionário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

    Leia Mais

    Simpósios de Geografia Agrária fortalecem debate sobre lutas dos povos indígenas

    Indígenas denunciam a comissário da OEA crescente violência contra suas comunidades e exigem do Governo andamento nas demarcações

    "O Estado brasileiro tem claras obrigações com vocês, povos indígenasVenho até vocês para ouvir suas demandas e leva-las as instâncias internacional, além de apresentar questionamentos ao governo brasileiro".

     James Cavallaro, Comissário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) e relator para o Brasil
    Fotos _ Guilherme Cavalli / Cimi



    "O Estado brasileiro tem claras obrigações com vocês, povos indígenas”. Em reunião com lideranças indígenas ontem, domingo (12), o comissário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) James Cavallaro apresentou-se, e após poucas palavras, se postou em escuta. "Venho até vocês para ouvir suas demandas e leva-las as instâncias internacional, além de apresentar questionamentos ao governo brasileiro". 

    O encontro de Cavallaro com os indígenas integra a agenda iniciada no último 23, quando uma delegação de indígenas do Brasil esteve em Montevideu, Uruguai, para o 165º Período de Sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O grupo de indígenas participou da Audiência Pública sobre as Violações dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas no Brasil. Por não comparecer alegando problemas no voo, a sabatina ao governo brasileiro ocorrerá hoje a tarde. Entre 2013 e 2015 – últimos dois períodos de sessões da Comissão Interamericana -, o Brasil se comprometeu a enfrentar as fontes das ameaças aos povos indígenas – o que significaria a demarcação dos territórios. Contudo, o Estado não avançou nos processos de demarcação. 

    Na reunião de ontem, Luis Salvador, liderança Kaingang do Rio Grande do Sul, questionou a omissão das políticas governamentais diante eclosão da violência contra comunidades tradicionais e do campo. “Vivemos um eterno massacre, violências que duram 517 anos. O atual governo mostra-se hábil em conduzir iniciativas contra nós, povos indígenas”, ressaltou. Cacique da Terra Indígena Rio dos Índios, município de Vicente Dutra (RS), Luis apresentou a morosidade do Estado na demarcação dos territórios tradicionais. 

    “Aguardamos 32 anos para que nossa terra seja demarcada. Enquanto esperamos, vivemos sob ameaça e racismos de deputados que não cansam de dizer que somos “tudo o que não presta”, comentou ao recordar dos frequentes discursos do deputado estadual Luis Carlos Heinze (PP/RS).


    Marco Temporal, parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), Proposta de Emenda a Constituição (PEC) 215, desmonte da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), constantes violências, massacres e criminalizações das lideranças indígenas. As violações de direitos humanos contra os povos indígenas trazidas a pauta na reunião de domingo serão abordadas hoje (13) na presença da presidência da FUNAI e do Governo brasileiro. Participaram da reunião lideranças dos povos Guarani Kaiowá e Ñhandeva (MS), Kaingang (RS), Pataxó e Tupinambá de Olivença (BA), Akroá-Gamella (MA) e Karipuna (RO). 

    Estado Genocida
     
    "Os povos indígenas, principalmente os que estão no Mato Grosso do Sul (MS), vivem em estado de calamidade. Sem demarcação, crianças, idosos, muitas famílias estão na beira da estrada, cobertos por lonas pretas”. A dura realidade que seu povo enfrenta no MS devido à desigualdade territorial foi um dos principais eixos da fala da liderança Eliseu Lopes. São 74 terras tradicionais sem providência no estado. O integrande da Aty Guasu, grande assembleia Guarani, relatou a responsabilidade do governo federal diante da violência praticada contra os povos originários. "A política de extermínio é um projeto. O Brasil é um estado que se ergueu com sangue indígena. O Brasil precisa se responsabilizar por sua política de morte dos nossos povos”. 

    Os dados de violência contra povos indígenas referentes ao estado do Mato Grosso do Sul são os mais alarmantes. Em  2016 foram registrados 45 casos de violência contra indígenas, com 16 tentativas de assassinatos e 15 consumações. Por omissão e morosidade na regularização de terras, registrou-se 102 violências contra o patrimônio. 

    Concomitantemente a reunião, indígenas de cinco povos ocupam a sede da Funai em São Luís (MA) exigindo demarcações de terras. Caw Akroá-Gamella deixou a ocupação para, junto ao comissário da OEA, expor as sistemáticas violações que seu povo vem sofrendo. “Em abril sofremos um ataque na tentativa de nos massacrar. Hoje as investigações para condenar os responsáveis por esse ato estão paradas. É um Estado que viola e se faz omisso na hora de investigar”, denunciou. 

    Em 30 de abril, um grupo Akroá-Gamella acabou brutalmente atacado no Povoado de Bahias, município de Viana (MA). Enquanto se retiravam da área tradicional retomada, sofreram uma investida de dezenas de homens armados com facões, paus e armas de fogo. O caso foi denunciado na Audiência Pública na CIDH sobre as Violações dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas no Brasil.

    “Mesmo sob ameaças, continuamos nos organizando para que nossos direitos sejam respeitados. Nosso território é tradicional e continuaremos na luta por ele”, comentou Caw ao garantir que a ocupação seguirá até que tenham a garantia de demarcação. 

    Petição entregue a OEA

    No final do encontro, lideranças da Aty Guasu entregaram a James uma petição sobre e a Terra Indígena Guyraroká. O documento denuncia a decisão da 2° Turma da Corte do Supremo Tribunal Federal (STF) que anula o reconhecimento tradicional da Terra Indígena. 


    O Ministério da Justiça (MJ) reconheceu em 2009 a tradicionalidade da TI após relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho da Funai. Ainda sim, o posseiro da região pediu a nulidade dos atos no MJ. O Superior Tribunal Judicial (STJ) considerou inadequada a ação movida pelo fazendeiro, seguido pelo relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandoswski. No entanto, o ministro Gilmar Mendes contestou a decisão, acompanhado pelos ministros Celso de Mello e Carmem Lúcia.


    Com três votos a um declararam que o particular tinha o direito sobre a terra. Em nenhum momento a comunidade indígena foi ouvida durante o processo. Diante o contexto, Aty Guasu, grande assembleia do povo Guarani juntamente outras organizações indigenistas encaminharam a Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma petição que pede posicionamento da corte. 

    A época o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com embargos de declaração com pedido de concessão de efeitos modificativos contra decisão da 2ª Turma do STF. Também, o Ministério Público Federal (MPF) apontou omissão e contradição no julgamento pela não participação da comunidade indígena. 

    Expulsos da área em 1930 quando o Estado brasileiro começou a ceder para particulares a terra sagrado Kaiowá, os indígenas vagaram, mas nunca deixaram de ter vínculo espiritual com seu tekoha – lugar onde se é, o território tradicional Guarani Kaiowá, voltando mais tarde. Reconhecido na cosmologia Guarani como “Tempo de Direito", os anos 2000 marcaram para o povo o momento de retornar a Guyraroká.


    "Fomos expulsos de nosso território sagrado. Hoje dizem que aquele lugar não é nosso. Como não se eu nasci e caminhei toda minha vida lá? Morava lá antes mesmo de falar português", contou Tito Vilhalva, 99 anos, cacique da aldeia Guyraroká. 


    Confinados em uma pequena porção do território, os indígenas vivem hoje em barracões de lona e sofrem com a falta de assistência na área da saúde, dificuldades para plantar, além das constantes ameaças e mortes promovidas por ações de fazendeiros locais.

    Loteamento e retirada de madeira em TI 

    "Os grandes empreendimentos matam os povos indígenas. É hidrelétrica, hidrovias, ferrovias e estradas. Construções, retirada da mata para exploração da madeira e da mineração. São iniciativas que se igualam a apontar uma arma para nossa cabeça". Adriano Karipuna, do povo Karipuna, vive sob ameaça por denunciar a realidade vivida pelo seu povo. A liderança, incansavelmente, denuncia as práticas de retirada de madeira e loteamento dentro do território indígena, localizada nos municípios de Porto Velho e Nova Mamoré, com 153 mil hectares, homologada em 1998. 

    "No último mês encontramos 78 loteamentos dentro de nosso território tradicional. São práticas consentidas pelo governo do estado de Rondônia", garante. Adriano expõe atividades que advertem risco ao território, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O fichário online de terras, feito de maneira auto declaratória, permite acessos a financiamentos para construções. O problema é que muitos dos CARs declaram posse em terras indígenas. 

    Segundo Adriano, outra prática que "mascara” a exploração e o transito livre de madeira ilegal é o plano de manejo emitido pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam). Madeira é retirada das TIs e áreas de preservação ambiental da região (TIs Karipuna e Karitiana, Floresta Nacional do Bom Futuro, Resex Jaci-Paraná e Parque Estadual de Guajará-Mirim).

    "Esse é o Estado que convém com a exploração e que busca políticas para flexibilizar as leis ambientais em troca de permanecer no poder. Enquanto isso, sofremos ameaças por invasores que fazem de nossos territórios um lugar de exploração", expôs Adriano. 

    Criação do GIEI

    Na capital uruguaia, as organizações indígenas e indigenistas signatárias da audiência solicitaram como encaminhamento a criação de um grupo interdisciplinar de especialistas independentes (GIEI) para os direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. O Requerimento pauta-se no contínuo processo de extermínio e na ineficiência das políticas indigenistas do país. Em 2014 a CIDH e o Governo mexicano criaram mecanismo semelhante para acompanhar as investigações frente ao desaparecimento de 43 estudantes no México.

    Caberá ao GIEI, constituído pelo Estado brasileiro com orientação da CIDH, acompanhar os processos demarcatórios de TI; identificar e investigar obstáculos contra as demarcações; monitorar o cumprimento da plena e irrestrita participação dos Povos Indígenas nos processos que os afetam; oferecer assistência técnica internacional para capacitação dos agentes do Estado a fim de apresentar os padrões internacionais de direitos indígenas; cobrar o andamento das investigações penais relativas aos massacres e atentados contra os povos indígenas; estabelecer medidas reparatórias e cronograma de implementação para atenção as comunidades, vítimas e famílias afetadas pelas violações. 

    A solicitação para a criação do GIEI foi feita pela Defensoria Pública da União (DPU), Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Juízes pela Democracia, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Aty Guasu, Ordem dos Advogados do Maranhão, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIOCB) e Comissão Pastoral da Terra (CPT).