25 de janeiro de 2014

Não morreremos educadamente: Trecho do Diário de Marcio Pinheiro no MS


Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixaram Deus tão triste
Índios (Legião Urbana)



Por  Marcio Pimenta, Fotógrafo e Documentarista
Nos últimos dias estive em uma expedição pelo Mato Grosso do Sul fotografando o modo de vida dos índios Guarani Kaiowá nas aldeias Teykue, Pindoroky e Jaguapiru. Foi uma viagem absolutamente transformadora e um reencontro com o meu estilo de trabalho. Da forma como gosto de sentir o que está em volta de mim e… click! Deixo para vocês um trecho do meu diário de viagem.
“O de sempre: pesadelos durante a noite, o último a acordar na aldeia (e já sentindo um certo orgulho disso) e café da manhã com café preto, téréré e uma fatia de bolo de milho.
Fico em silêncio enquanto reviso as fotografias já tomadas. Estou no quinto dia de viagem e não tenho nenhuma foto, absolutamente nenhuma, da qual me orgulhe. A expedição está quase no fim e eu não tenho a maldita foto. E o cenário não era nada animador. Na agenda do dia visita a algumas lideranças da aldeia, seguido de um encontro com o Pajé e, por fim, conhecer a retomada Tekoha Pindoroky. Aqui, um parêntese necessário, “retomada” significa ocupar as terras que um dia pertenceram aos seus ancestrais.
Eu sabia que somente a visita a Tekoha Pindoroky poderia render alguma fotografia interessante, do contrário eu teria que: 1) cancelar o almoço em Curitiba onde faria a apresentação das fotografias para um grupo de empreendedores; 2) reconsideraria o pedido de uma índia que desejava que eu ficasse mais tempo na aldeia e; 3) apagaria da minha memória os planos de passar o próximo fim de semana mergulhado em uma banheira bebendo algumas garrafas de vinho branco chileno.
Julguei que o encontro com o Pajé seria uma ocasião importante, e estava decidido a me apresentar com elegância. Retirei da mochila a minha ultima camisa limpa, uma Hering branca. Perguntei a Jari (avó da aldeia) se estava bonito e elegante. Ela balançou a cabeça acenando que sim. Tenho sérias dúvidas quanto a resposta dela, pois para tudo que eu lhe perguntava ela me respondia sempre com a mesma graciosidade. De qualquer maneira decidi acreditar nela e subi na motocicleta.
Percorri 15 km por uma estrada de terra vermelha e quente como o planeta Marte. Ao chegar ao local notei que misteriosamente a minha camisa branca e limpa agora tinha um forte tom de vermelho e suada como se estivesse acabado de jogar os 90 minutos de uma partida de futebol.
Talvez, por isso, o Pajé não tenha se impressionado muito com a minha roupa, e para falar a verdade, nem eu com a dele. Em termos fotográficos o encontro foi um desastre. Mas eu ainda tinha a visita a retomada Tekoha Pindoroky. Minha ultima chance. Era agora ou teria que cancelar o almoço, reconsiderar o pedido da índia e dar adeus a minha banheira e vinhos brancos.
Em 19 de fevereiro de 2013 um garoto saiu junto com o seu irmão para pescar em um rio que ficava localizado dentro das terras de um fazendeiro. Eles estavam fazendo o que qualquer garoto de 15 anos faria: não se importavam com cercas ou qualquer outro limite imposto pelos adultos. Ao contrário, quando temos 15 anos, infrigir regras só torna a brincadeira ainda mais interessante.
Mas ele era índio. Podia ser branco, negro, escolham a etnia que quiserem. Mas ele era índio.
O primeiro tiro lhe acertou a orelha. Deitado com a metade do corpo na água e a outra metade nas margens do rio, gritava de dor e desespero. Era noite. Seu irmão que o acompanhava, conseguiu fugir pela mata. A ultima luz que ele viu foi a de uma lanterna que apontava diretamente para ele. E foi desta luz que veio o segundo tiro que lhe acertou a garganta.
Estava morto.
Três dias depois os índios se organizaram e retomaram a fazenda. O fazendeiro que havia matado o garoto teve tempo para fugir com quase todos os móveis da casa.
Uma cruz foi firmada pouco acima das margens do rio.
Edenílson foi privado da sua adolescência, do sorriso, das brincadeiras, da família, da vida. A covardia e a estupidez falaram mais alto naquela noite.
Visito a sede da fazenda agora ocupada pelos índios. Está vazia. Nenhum móvel. Apenas uma bicicleta abandonada, dois cães vira-latas circulam entre os cômodos, duas cozinhas com fogões a lenha e uma cisterna de onde retiram água através de uma bomba elétrica. As paredes estão completamente sujas de terra com marcas de mãos e pés.
Vou fazendo as fotografias de todo aquele vazio. A bicicleta, os cães, uma das cozinhas. Decido entrar no que parecia ser a antiga sala de visitas. Há brinquedos espalhados pelo chão. Um vulto. E “click”. Não sou eu quem faço a foto, mas ela é quem me toma. A foto perfeita. A foto que é a mais perfeita metáfora. A foto que mostra que Denílson e muitas outras crianças foram privadas por uma barreira estúpida de viver a infância. Para ver a foto, clique aqui.
Nunca dou títulos para as minhas fotografias. Mas esta eu a chamo intimamente de “O fantasma”.
Um fantasma que lentamente irá assombrar governos, empresas nacionais e estrangeiras, latifundiários, órgãos da imprensa, e uma sociedade entorpecida pela conveniencia de se afirmar como pacífica e educada.
Não morreremos educadamente.
Atyma!
Para ver a galeria completa de imagens da expedição, clique aqui.
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