Crédito da foto _ Ana Mendes/Cimi
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Por Viviane Vazzi Pedro, da Assessoria Jurídica do Cimi Regional Maranhão
O povo indígena Akroá Gamella vem sofrendo com todo o tipo de violência causada pelo racismo, pela negativa de reconhecimento identitário, falta de demarcação do território, de segurança e ausência de políticas públicas específicas. O massacre cometido contra o povo, em 30 de abril de 2017 – o qual foi anunciado, premeditado e incitado publicamente – também se relaciona a uma das facetas da violência: a institucional. O povo denunciava que há alguns anos, hospitais, maternidades e cartórios dos municípios maranhenses de Viana, Matinha e Penalva recusavam-se em promover até mesmo o registro civil das crianças recém nascidas como povo indígena. Essa recusa afronta o direito à autoidentificação, infringe o artigo 231 da Constituição Federal, as regras estabelecidas na Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção 169 da OIT e, também, os próprios artigos 2º e 3º da Resolução Conjunta CNMP/CNJ nº 03/2012.
As referidas instituições insistiam na recusa, não aceitavam a autodeclaração de identidade indígena, exigiam dos pais que apresentassem o Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) como a prova EXCLUSIVA de pertencimento étnico, não admitindo outros meios probatórios e de declaração. Ocorre que a FUNAI, quem deveria expedir o RANI, por sua vez, não o fazia e apresentava pretextos variáveis, ilegais e injustificáveis para sua procrastinação.
No território, havia crianças cujos pais desistiram de tentar efetuar os registros de seus filhos como indígenas e outros que vinham reivindicando esse direito às instituições públicas sem que as crianças tivessem sido registradas. Era o caso, por exemplo, de uma mãe que, desde 2016, tentava sem êxito registrar o seu filho com o sobrenome Gamella. O cartório se negou a colocar o nome da etnia sob o argumento de que não havia prova de que os pais da criança eram Gamella ou mesmo que tinham este sobrenome. Diante da recusa, a mãe acabou cedendo em permitir o registro sem a identificação do povo indígena e sem o sobrenome.
Da mesma maneira, em fevereiro de 2017, o pai de uma recém-nascida também procurou o 2º ofício de Viana (MA) para realizar o registro de nascimento de sua filha, tendo recebido resposta negativa por parte do oficial. Com a recusa, o pai não aceitou fazer o registro de sua filha sem o reconhecimento como Gamella. Por isso, até poucos dias, a criança permanecia sem registro civil de nascimento. Estas várias situações reforçam a tentativa do Estado Brasileiro de negar a cidadania, a identidade e a existência do povo indígena Gamella, causando graves prejuízos às crianças e famílias, que ficam sem nenhuma assistência de políticas públicas e serviços sociais.
Após luta do povo e a atuação do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE), no último dia 27 de setembro, os Akroá Gamella conquistaram uma importante decisão. Após analisar o Mandado de Segurança Coletivo n° 2021/2017, impetrado pelo povo indígena, por intermédio da DPE, contra o Tabelião e Registrador da Serventia Extrajudicial do 2º Ofício (cartório local), a Juíza Titular da 1ª Vara da Comarca de Viana, Odete Maria Pessoa Mota Trovão, deferiu o pedido de liminar. A magistrada determinou que o oficial do Cartório proceda à lavratura do registro de nascimento das crianças recém-nascidas indígenas autorreconhecidas como da etnia Gamella que ainda estão sem registro de nascimento, devendo constar no assento o sobrenome "GAMELLA", a declaração do registrando como indígena e a indicação da respectiva etnia, sem a necessidade de apresentação do RANI, até julgamento final da presente ação.
Antes de apreciar o pedido liminar, a juíza analisou e discorreu sobre uma série de preconceitos e vícios administrativos que são presentes na realidade de muitos indígenas. Ao prestar informações, o Cartório, como a autoridade coautora, procurou justificar a recusa sob os argumentos “de que os pais da criança não tinham sido registrados como indígenas, além de não apresentarem o RANI” e, ainda, “que o pai não portava documento que identificasse sua origem indígena e tampouco apresentava sinais indicativos deste fato, já que, na ocasião, trajava camisa e calça social”.
O oficial do cartório esclareceu que foi orientado pela Funai a somente proceder ao registro de indígena, sem a apresentação do RANI, se a informação sobre a etnia já viesse expressa na declaração de nascido vivo (DNV). A FUNAI ainda teria dito que “o registro de nascimento de indígena não poderia ser lavrado, em virtude das inúmeras fraudes ocorridas, em que pessoas que não são indígenas tentam se passar por índios”. O oficial do ato coautor afirma, ainda, que consultou outros cartórios de registro civil da Comarca de Grajaú e Viana sobre a situação e recebeu a mesma orientação no sentido de “exigir o documento comprobatório da condição de indígena, em nome da segurança jurídica do sistema e da lei de registros públicos e da Resolução nº. 03/2012 do CNMP/CNJ”.
Consta da decisão liminar que os cartórios argumentavam que a exigência de prova da condição de indígena para a lavratura do registro de nascimento é essencial para assegurar a preservação da segurança jurídica e da fé pública registral "no intuito de evitar futuras demandas acerca do ato praticado, inclusive nas disputas envolvendo terras que ocorreram recentemente no Município de Viana".
Em sua bem fundamentada e lastreada decisão, a juíza defende o critério utilizado pela Constituição de 1988 e pela legislação correlata, que reconhece aos povos indígenas "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições", sem estabelecer que eles devam estar circunscritos a um determinado lugar, vivendo em reservas, ou que devam abandonar a sua condição de indígena para tornarem-se cidadãos brasileiros. Cita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Brasil pelo Decreto 5.051/2004, que prevê, em seu artigo 1º, o direito à autoidentificação "como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção". Destaca-se que, por ser um tratado internacional que versa sobre direitos humanos, a Convenção 169 da OIT tem natureza supralegal (STF - RE 466343 - 2008), ou seja, está acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição.
De outro lado, a magistrada observou “que não há definição científica consensual sobre quem é índio. Ser indígena está além da questão racial ou da manutenção dos costumes ancestrais. Os indígenas são aqueles que reivindicam sua relação histórica e social com os grupos que aqui estavam antes da colonização europeia. Desse modo, os índios que vivem nas cidades ou que já incorporaram práticas do meio urbano ao seu cotidiano não perdem identidade nem são considerados menos indígenas. Além disso, identidade e pertencimento étnico não são conceitos estáticos, mas processos dinâmicos de construção individual e social. Dessa forma, não cabe ao Estado reconhecer quem é ou não indígena, mas garantir que sejam respeitados os processos individuais e sociais de construção e formação de identidades étnicas. Exatamente por essa razão a Convenção 169 da OIT não define quem são os povos indígenas ou tribais, mas estabelece o critério da autoidentificação como instrumento para que os próprios sujeitos de direito se identifiquem”.
A decisão ainda esclarece que “a própria Resolução nº. 03/2012 do CNJ/CNMP, (artigo 2º, §§1º, 2º e 3º) assegura o direito de incluir, a pedido do interessado, no assento de nascimento indígena, a identificação da etnia como sobrenome, bem como constar a aldeia de origem do indígena e a de seus pais. Na verdade, infere-se que este deve ser o procedimento adotado como regra geral”. O pedido do RANI é uma exceção prevista no §5º do art. 2º, da mencionada resolução, que assim dispõe: "Em caso de dúvida fundada acerca do pedido de registro, o registrador poderá exigir o RANI ou a presença de representante da FUNAI. Desse modo, não se pode inverter a lógica do sistema e aplicar a exceção como regra geral, como parece ser a conduta adotada pelo impetrado (...)”.
Em tempos de intensificação de ataques e desregulamentação de direitos, esta é uma decisão relevantíssima, não apenas porque protege o direito fundamental do povo Akroá Gamella à sua identificação civil, mas, também, por ser uma decisão pedagógica para cartórios, oficiais de registro e até mesmo para instituições brasileiras, como a própria FUNAI, contribuindo para a luta de crianças e famílias de outros povos indígenas.
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