Em nada as
retomadas Guarani e Kaiowá de áreas tradicionais, localizadas dentro dos
limites da Terra Indígena Ñanderu Marangatu, perturbaria a rotina dos
moradores de Antônio João (MS) não fosse uma série de boatos e calúnias
distribuídos através da imprensa e das redes sociais pelo Sindicato
Rural do município, entidade classista dos fazendeiros com propriedades incidentes no território indígena. A população chegou a ser informada de que os Guarani e Kaiowá poderiam atear fogo à cidade, boato sem registros históricos de um dia ter sido cometido pelos indígenas.
Conforme
informações apuradas junto aos Guarani e Kaiowá e servidores da Fundação
Nacional do Índio (Funai), as ações de retomadas estão restritas aos
marcos de demarcação dos 9.300 hectares homologados pela Presidência da
República, cujo decreto está suspenso há uma década e que aguarda
julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). “Não queremos fazer mal
nenhum às pessoas da cidade. Apenas retomar nosso tekoha – lugar onde se
é. Estamos agindo dentro da terra que é nossa”, afirma uma liderança
indígena - não identificada por razões de segurança.
Leia mais: Com homologação suspensa há dez anos, Guarani e Kaiowá retomam cinco áreas em Ñanderu Marangatu
Tais boatos
serviram para gerar uma onda de revolta e medo entre moradores e
fazendeiros, que interditam o principal acesso ao município durante essa
semana. Em nota pública, a presidente do Sindicato Rural, Roseli Maria
Ruiz, afirmou que indígenas circulavam pela cidade com galões contendo
gasolina, referindo-se ao boato de que colocariam fogo em toda a cidade.
O absurdo das calúnias foi tamanho que o bispo de Dourados, Dom
Redovino Rizzardo, respondeu em nota a ruralista. Com os boatos difundidos, um indígena acabou espancado ao ir abastecer a moto num posto.
A Funai
confirma a agressão e seus servidores alertam que tais boatos podem
provocar violências mais graves contra os indígenas. “A boataria tem
gerado pânico. Os indígenas abastecem suas motos e levam gasolina a
outras, como forma de economia. Nada além disso. Frisamos que as ações
de retomada estão restritas à demarcação e não atentam contra a vida de
ninguém tampouco a ordem pública”, ressalta um servidor. Todavia,
mentiras espraiam-se para além dos boatos e provocam confusão.
De acordo com
parte da imprensa sul-mato-grossense, os Guarani e Kaiowá teriam
expulsados 40 famílias de uma vila chamada Campestre. Conforme o
relatório de demarcação, a vila está dentro dos marcos de Ñanderu
Marangatu. Indígenas, Funai e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
afirmam que cerca de 10% dos moradores da ‘vila’ não são indígenas e
nenhuma dessas famílias foi despejada da localidade pelas ações de
retomada.
Na análise de
indígenas e indigenistas, os fazendeiros pretendem criar um ambiente
social contrário aos Guarani e Kaiowá para lançar contra o povo a ira da
população de Antônio João, usando-a como massa de manobra e argumento
para o Sindicato Rural usar junto às autoridades públicas. A reportagem
apurou, junto a fontes que preferiram não se identificar, que os
ruralistas temem entrar com ações de reintegração de posse por conta da
grande população de Ñanderu Marangatu. O despejo seria algo impensável.
Por outro lado, a ação das forças policiais ainda não conseguiu
pacificar a situação, conforme os indígenas, por falta de orientação do
Ministério da Justiça e de uma solução definitiva do governo federal
para se efetivar a homologação, envolvendo o pagamento das benfeitorias.
“Passaram
(Força Nacional) por lá, mas rápido. Dizem que não podem agir sem
ministro da Justiça (José Eduardo Cardozo) orientar”, protesta uma
liderança da Aty Guasu, principal organização política dos Guarani e
Kaiowá. Os indígenas não confiam no Departamento de Operações de
Fronteira (DOF), polícia do governo sul-mato-grossense, denunciando
ataques, intimidações e ameaças do órgão de repressão estadual. “DOF
chega sempre com fazendeiro junto. Fazendeiro sempre diz que DOF está
ali para apoiá-los”, destaca liderança Guarani e Kaiowá. Vídeo divulgado
pelos fazendeiros demonstra não ser mentira – assista aqui.
A Funai
informou aos indígenas que alguns fazendeiros começaram a procurar o
órgão indigenista para a retirada de animais e pertences das áreas
retomadas, demonstrando vontade de buscar uma saída pacífica e nos
termos da lei vigente. “Não queremos nada deles. Podem levar tudo.
Chamam a gente de bandidos, mas não somos não: daqui queremos apenas a
terra que está comprovada ser nossa. Podem até desmontar as casas para
ficar com os tijolos”, enfatiza uma liderança indígena.
Não há
notícias, até o momento, de movimentação do processo no STF que motivou a
suspensão dos efeitos do decreto de homologação de Ñanderu Marangatu,
há uma década. Na ocasião, em setembro de 2005, o então ministro Nelson
Jobim decidiu que o ato presidencial seria suspenso até que ação movida
por fazendeiros contra a homologação fosse julgada pela Corte Suprema. O
processo hoje tem como relator o ministro Gilmar Mendes.
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