30 de agosto de 2015

Ruralista comemora ataque contra o Tekoha Ñande Marangatú (MS)

"Pra negociar parece pouquinho índio, mas tem índio guardado nesse mato aí...Hoje tenho orgulho de ser produtor rural. É isso ai moçada, o produtor rural tem que ser unido mesmo porque não adianta esperar lá por cima não!" Voz de ruralista após ataque, ontem, que resultou no assassinato de mais uma liderança indígena na Terra Indígena Ñande Marangatú

Imagens printadas (01)
 

Por Tereza Amaral

O Sublime e o Grotesco

Sob a mão omissa do Estado que insiste em permanecer afastado do genocídio em curso no Mato Grosso do Sul, depois do ataque de ontem - e amparados pelo som sublime do Maracá - os Guarani-Kaiowá aguardavam um "acordo" enquanto a voz grotesca de um fazendeiro, não identificada, comemora o uso da força desproporcional da milícia. Confira no vídeo AQUI.


Fazendeiro fala em tiros e Foto mostra arco e flecha (02)

 
Leia, na íntegra, matéria postada no site do Cimi por Rogério Batalha Rocha, advogado sob manchete de página, a seguir:

Ñande Ru Marangatú: novas violações de direitos

Omissão do Estado brasileiro e milícias de fazendeiros produzem mais mortes.

Como foi falado por lideranças indígenas do estado de Mato Grosso do Sul, durante a cúpula dos povos/Rio+20 realizada na cidade do Rio de Janeiro no dia 21 de junho de 2012, “o Estado brasileiro não mede esforços para mostrar ao mundo um Brasil que não existe”.

Não bastasse os já assegurados direitos indígenas em nossa Constituição Federal de 1988 (artigo 231), para o mundo, o Brasil é signatário da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Autóctones, de 13 de setembro de 2007, que reconheceu importantes direitos em Assembleia da ONU. Fundamentalmente, o Artigo 26 do pacto internacional assegura o reconhecimento e demarcação dos territórios tradicionais indígenas de todo o mundo.

Fez isso perante todos, perante o mundo, alegando não querer deixar equívocos sobre o caminho que o Estado brasileiro pretende seguir na sua relação com seus povos e comunidades indígenas do Brasil.

Porém, a realidade dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul[1], em especial dos povos Kaiowá-Guarani e Terena, já amplamente divulgada em nível nacional e internacional, é tida hoje como uma das piores realidades do mundo no que tange ao desrespeito pelos Estados Nacionais dos direitos humanos fundamentais dos povos indígenas.

Nesse sentido, torna-se vergonhosa e cínica a omissão irresponsável e, diga-se, “criminosa”,dos órgãos do Estado brasileiro, principalmente do Poder Executivo Federal e Judiciário Federal, no sentido de negar incessantemente os direitos fundamentais dos povos, consignados na legislação brasileira e internacional, em não resolverem de uma vez por todas uma demanda histórica que custou a vida de incontáveis indígenas.

Neste cenário de violência, foi registrada na tarde de hoje o assassinato de mais uma liderança indígena na Terra Indígena Ñande Rú Marangatú, no município de Antonio João. Conforme foi noticiado às 16h32min pelo Jornal “Correio do Estado”, de Campo Grande, “Autoridades confirmam morte de indígena em área de conflito no Estado” (disponível em www.correiodoestado.com.br/cidades/autoridades-confirmam-morte-de-indigena-em-area-de-conflito-no/256339/).

Desde o dia 23 de agosto desse ano, os Kaiowá-Guarani vem ocupando várias fazendas incidentes na Terra Indígena Ñande Ru Marangatú. Este período coincide com 10 anos da expulsão dos indígenas dessa terra, após a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal e Tribunal Regional Federal da 3. Região, cujos processos encontram-se até hoje ainda pendentes de julgamentos definitivos.

A demarcação de Ñande Rú Marangatu. Um breve histórico da realidade.

Foto Cimi (03)
A Terra Indígena Ñande Ru Marangatú, localizada no município de Antonio João, vem sendo reivindicada para fins de demarcação há décadas pelo povo Kaiowá-Guarani de Mato Grosso do Sul.

A ocupação da terra indígena pelos Kaiowá remonta tempos imemoriais, sendo que entre o fim da década de 1940 e meados da década de 1950 as famílias começaram a ser drasticamente expulsas de seu território por fazendeiros colonizadores, com a total conivência e apoio do Estado brasileiro. Tais fatos são atestados por laudos antropológicos realizados por perícias determinadas pelo Poder Judiciário.

O procedimento administrativo de identificação e delimitação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu[2] foi iniciado em 09 de abril de 1999, nos termos do previsto no Decreto nº. 1.775/1996 tendo sido concluído no ano 2001, reconhecendo como terra tradicionalmente ocupada pelos Kaiowá a extensão de 9.317 hectares.

Desde janeiro de 1999, cerca de 1.054 indígenas vinham ocupando apenas 26 hectares de sua terra tradicional no local onde se localiza a aldeia “Campestre”, espaço que foi destinado aos índios pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra).

Em 2001, foi movida pelos fazendeiros incidentes na terra indígena Ação Declaratória visando obter do judiciário o pronunciamento de que a terra “não é de ocupação tradicional indígena”. Referida ação ainda encontra-se em tramitação, aguardando-se uma decisão final que deve ser feita pela Justiça Federal.

Em 30 de outubro de 2002 o então Ministro da Justiça, Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, declarou a área Ñande Ru Marangatu como sendo de posse permanente do povo Kaiowá-Guarani sendo que neste mesmo ano, segundo informações da FUNASA coletadas no Sistema de Informação do Programa de Vigilância Nutricional, na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, 22,06% das crianças entre 0 (zero) e 05 (cinco) anos apresentaram um grave quadro de desnutrição (< P3) e 17, 65% apresentaram um quadro de risco nutricional (P3 – P10, peso abaixo do ideal).

Em 2003, o índice de desnutrição já considerada grave na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu subiu para 27, 54% e o de risco nutricional subiu para 26, 09%. Em 2004, tanto o índice de desnutrição grave como o de risco nutricional na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu foi de 18, 01%.

Em agosto de 2004, foi contratado pela FUNAI a empresa responsável em realizar a demarcação física dos limites da terra (concluída em janeiro de 2005) e em outubro deste mesmo ano os Kaiowá ocuparam cerca de 500 hectares de parte de sua terra tradicional no local onde incidem as fazendas “Fronteira”, “Itá Brasília”, “Piqueri Santa Cleusa” e “Morro Alto”.

Em 04 de novembro de 2004, foi determinado pela Justiça Federal de Ponta Porã, a partir de Ação de Reintegração de Posse movida por fazendeiros, a retirada compulsória dos indígenas Kaiowá de parte da Terra Indígena Ñande Rú Mrangatú.

Foram interpostos recursos pelo Ministério Público Federal e Funai no TRF3, em São Paulo[3], tendo sido determinado em 02 de março de 2005 a suspensão do cumprimento da liminar expedida pela Justiça Federal de Ponta Porã

Em 28 de março de 2005, após o período de 05 anos, 11 meses e 19 dias do Processo Administrativo de Demarcação da Terra Indígena, o então Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, expediu Decreto de Homologação da demarcação administrativa da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu.

Subsequentemente à homologação, a então Presidenta do TRF3.ª, suspendeu o cumprimento de decisão liminar proferida pelo Julgador Federal da Subseção Judiciária de Ponta Porã/MS.

Em julho de 2005 foi impetrado pelos fazendeiros incidentes na terra indígena um Mandado de Segurança[4] n. 25463 contra o Decreto de Homologação assinado pelo então  Presidente Lula.

Em 21 de julho de 2005 foi decidido pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, pela suspensão dos efeitos da homologação da terra indígena.

Em 02 de dezembro de 2005, a Presidente do Tribunal Regional da 3.ª Região (TRF 3.) reconsiderou, em parte, a sua decisão de suspensão de liminar, proferida no mesmo processo n.º 2005.03.00.006650-0, para determinar que os Kaiowá sejam retirados de parte de sua terra tradicional onde incide a fazenda “Morro Alto”, para que voltem a ficar 26 hectares ocupados desde janeiro de 1999 na antiga “Aldeia Campestre”. O MPF e a FUNAI pediram no Supremo Tribunal Federal a suspensão do despejo, porém o pedido foi negado.

No dia 15 de dezembro de 2005, sob forte aparato bélico, a Polícia Federal despejou os Kaiowá de sua terra tradicional recém ocupada, conforme a determinação do Poder Judiciário Federal. A partir daí, os Kaiowá passam a viver acampados nas margens da rodovia MS-384 que liga os municípios de Antonio João e Bela Vista.

No dia 24 de dezembro de 2005, quando os índios ainda estavam acampados à beira da estrada, seu acampamento sofreu um ataque e o Kaiowá-Guarani Dorvalino Rocha foi assassinado com um tiro à queima-roupa por seguranças contratados por fazendeiros da região, próximo à fazenda Fronteira, de propriedade de Pio Queiroz Silva.

Em 2006, duas crianças Kaiowá-Guarani – Celiandra Peralta, de um ano e um mês, e Osvaldo Barbosa, de 15 dias, morreram por causas relacionadas às péssimas condições de vida às margens da rodovia MS-384.

Os Kaiowá-Guarani de Ñande Ru Marangatu passaram seis meses acampados à beira da MS 384.  Após reintegração de posse em dezembro de 2005 foi promovido o asfaltamento da estrada pelo Governo do estado de MS e o grupo  de 500 pessoas foram removidas para uma pequena parte de sua terra de cerca de 100 hectares a partir de uma acordo judicial intermediado pelo MPF.

No dia 25 de julho de 2007, o indígena Hilário Fernandes, liderança religiosa da aldeia “Campestre”, foi atropelado por volta das 19 horas às margens da rodovia MS 384. Em protesto, cerca de 400 pessoas mantiveram a estrada fechada desde o meio-dia do dia 26/07. O motorista do carro que atropelou Hilário não prestou socorro. Houve testemunhas do acidente.

Desde esse período, muitas reuniões com autoridades do Governo Federal e do Supremo Tribunal Federal foram feitas visando uma solução definitiva para a demarcação da área. Muitas promessas foram feitas por ambos os setores mas até hoje nada foi feito.

Resistência e autodemarcação.

A Terra Indígena Ñande Rú Marangatú trata-se de uma das áreas mais conflitivas do estado de Mato Grosso do Sul. Vale lembrar que na noite de 25 de novembro de 1983, na aldeia “Campestre”, Marçal de Souza Tupã’i foi covardemente assassinado. Tratava-se de uma das lideranças indígenas mais importantes e conhecidas no Brasil por sua luta pela demarcação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu tendo se encontrado com o papa João Paulo II, clamando pela sua interferência no apoio para a demarcação da terra.

O Supremo Tribunal Federal há 10 anos não toma uma decisão definitiva no Mandado de Segurança impetrado pelos fazendeiros e que suspendeu o Decreto de Homologação assinado em 2005 por Lula. Com isso, o procedimento administrativo de demarcação não poderá ser concluído com a consequente retirada dos fazendeiros da área e os indígenas vem amargurando a demora com altos índices de violações de direitos constantemente noticiados e denunciados.

É diante dessa vergonhosa e mentirosa política indigenista do Estado brasileiro que os povos indígenas de Mato Grosso do Sul tomam suas decisões de retomarem suas terras e promoverem a autodemarcação de seu território.

As organizações indígenas já manifestaram inúmeras vezes que não poderão mais aguardar a “boa vontade” do Estado brasileiro em cumprir com a legislação nacional e internacional pois sabem que isso nunca acontecerá sem muita luta e sacrifícios de suas lideranças. A organização do movimento indígena vem sendo cada vez mais fortalecida e as decisões de suas assembleias é de que os povos indígenas não irão abrir mão de seus territórios tradicionais e estarão dispostos em fazer as demarcações por conta própria.

Neste cenário sabemos que o aparato de guerra articulado por setores do agronegócio e amparados por agentes do Estado brasileiro estará de prontidão.  Nesta dura realidade, os que sempre acabam mais sofrendo com o conflito são os povos indígenas.

 O Estado brasileiro é sem dúvida alguma o responsável direto pelas vidas perdidas neste cenário de violações incomensurável. O Governos Lula e Dilma se mostraram contrários à garantia dos direitos indígenas do Brasil e de Mato Grosso do Sul e mentem incessantemente para a sociedade que resolverão os problemas territoriais no estado, garantindo a posse das terras aos povos indígenas. Apoiaram de forma explícita aquilo que há de pior dentre os diversos setores contrários aos direitos indígenas e nada fizeram para garantir a posse das terras pelos Kaiowá-Guarani. A política indigenista implementada pelos governos do PT, diga-se infelizmente, se mostrou pior do que de Governos anteriores como Collor, Itamar e FHC.

Trata-se de uma realidade nefasta nas políticas estatais voltadas para os povos indígenas do Brasil. O Executivo, Legislativo e Judiciário se revelam totalmente imbricados em tentar suprimir os direitos territoriais garantidos pela legislação nacional e internacional.

Deve-se entender que não restou outra alternativa aos Kaiowá-Guarani senão a retomada por conta própria de seus territórios, além da contínua construção de uma maior organização do movimento indígena. A responsabilidade pelas violações cometidas pelo Estado brasileiro e seus agentes, já manchados pelo sangue desses povos, deve ser constatada e as penalidades previstas pelo descumprimento dos tratados os quais o Brasil é signatário devem ser aplicadas, numa somatória de esforços da população de bem para a garantia de direitos a esses povos.

Campo Grande, MS, 29 de agosto de 2015.



[1] Segundo os dados preliminares publicados no ano de 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), das 817.963 pessoas que foram entrevistadas e autodeclaradas indígenas no Brasil, o estado de Mato Grosso do Sul concentra 73.295 indivíduos desta população. Trata-se da segunda maior população indígena do país, atrás somente do estado do Amazonas, com 168.680 habitantes indígenas. Segundo informações da FUNAI, esta população está dividida em 08 povos. Em Mato Grosso do Sul, destes povos, o povo Kaiowá e Guarani é o mais numeroso, com aproximadamente 50 mil pessoas, segundo os dados disponíveis pela FUNAI (2010).
[2] Processo administrativo n. 08620.001861/2000-28.
[3] Suspensão de Liminar autuado sob o n.º 2005.03.00.006650-0.
[4] MS n. 25463 – STF.

Foto indígenas (02) _  Álvaro Rezende / Correio do Estado

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