10 de abril de 2017

'Demarcação Já' gravada nas vozes de Betânia, Gil, Elza Soares, Ney Matogrosso, Lenine e mais 18 artistas vai tirar o sono de Temer, do Judiciário e Bancada Ruralista

A letra de Carlos Rennó com música de Chico César já foi gravada por 23 artistas. O projeto é resultado de uma parceria do Greenpeace, Instituto Socioambiental, Bem-te-vi e as produtoras Cinedelia, O2 e Estúdio A9 com produção musical da Apolo 9.
Carlos Rennó com  o livro “A Queda do Céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
Foto _ Reproduzida do site bahia.ba/acervo pessoal

Por Tereza Amaral

O índio ao que parece  veio... Em meio a maior investida na usurpação dos direitos indígenas pelos poderes constituídos contaminados pelo agronegócio brasileiro,  ele veio e em forma da música Demarcação Já que será lançada durante a Mobilização Nacional, em Brasília, entre 24 e 28 deste mês.

A estrela que o trouxe? Inúmeras. A começar pelo compositor, o jornalista e produtor cultural Carlos Rennó - autor do livro Voo das Palavras Cantadas - com música do cantor paraibano Chico César e nas vozes  de outros monstros sagrados do cenário musical brasileiro como Maria Betânia, Gilberto Gil, Elza Soares e Ney Matogrosso, dentre outros.

Pela primeira vez na história do país, e para tirar o sono dos injustos que tentaram intimidar até mesmo a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, no último carnaval, intérpretes numa só voz vão exigir o processo de demarcação das Terras Indígenas (TIs) que vem sendo negado, contrariando a Constituição Federal e Tratado Internacional 169 da OITVer artistas por ordem alfabética, a seguir:
Arnaldo Antunes, Céu, Chico César, Criolo, Djuena Tikuna, Dona Onete, Elza Soares, Felipe Cordeiro, Gilberto Gil, Lenine, Letícia Sabatella (atriz), Lirinha, Margareth Menezes, Maria Bethânia, Marlui Miranda, Nando Reis, Ney Matogrosso, Russo Passapusso (Baiana System), Tetê Espindola, Zeca Baleiro, Zeca Pagodinho, Zé Celso Martinez Corrêa e Zélia Duncan.
A letra denuncia violações aos direitos humanos envolvendo etnias diferentes com ataques que vão desde jagunços a serviço do agronegócio, efeitos nocivos da mineração e projetos de hidrelétricas em TIs, alcoolismo, suicídio e segregação, inclusive do deputado federal ruralista Carlos Henzel  que defende milícia, além da omissão do Executivo, Legislativo e Judiciário, dentre outras.

Letra Demarcação Já*

Já que depois de mais de cinco séculos
E de ene ciclos de etnogenocídio,
O índio vive, em meio a mil flagelos,
Já tendo sido morto e renascido,

Tal como o povo kadiwéu e o panará –

Demarcação já!
Demarcação já!

Já que diversos povos vêm sendo atacados,
Sem vir a ver a terra demarcada,
A começar pela primeira no Brasil
Que o branco invadiu já na chegada:

A do tupinambá –

Demarcação já!
Demarcação já!

Já que, tal qual as obras da Transamazônica,
Quando os milicos os chamavam de silvícolas,
Hoje um projeto de outras obras faraônicas,
Correndo junto da expansão agrícola,

Induz a um indicídio, vide o povo kaiowá,

Demarcação já!
Demarcação já!

Já que tem bem mais latifúndio em desmesura
Que terra indígena pelo país afora;
E já que o latifúndio é só monocultura,
Mas a T.I. é polifauna e pluriflora,

Ah!,

Demarcação já!
Demarcação já!

E um tratoriza, motosserra, transgeniza,
E o outro endeusa e diviniza a natureza:
O índio a ama por sagrada que ela é,
E o ruralista, pela grana que ela dá;

Hum... Bah!

Demarcação já!
Demarcação já!

Já que por retrospecto só o autóc-
Tone mantém compacta e muito intacta,
E não impacta, e não infecta, e se
Conecta e tem um pacto com a mata

–Sem a qual a água acabará –,

Demarcação já!
Demarcação já!

Pra que não deixem nem terras indígenas
Nem unidades de conservação
Abertas como chagas cancerígenas
Pelos efeitos da mineração

E de hidrelétricas no ventre da Amazônia, em Rondônia, no Pará...

Demarcação já!
Demarcação já!

Já que "tal qual o negro e o homossexual,
O índio é 'tudo que não presta'", como quer
Quem quer tomar-lhe tudo que lhe resta,
Seu território, herança do ancestral,
E já que o que ele quer é o que é dele já,

Demarcação, "tá"?
Demarcação já!

Pro índio ter a aplicação do Estatuto
Que linde o seu rincão qual um reduto,
E blinde-o contra o branco mau e bruto
Que lhe roubou aquilo que era seu,

Tal como aconteceu, do pampa ao Amapá,

Demarcação lá!
Demarcação já!

Já que é assim que certos brancos agem:
Chamando-os de selvagens, se reagem,
E de não índios, se nem fingem reação
À violência e à violação

De seus direitos, de Humaitá ao Jaraguá;

Demarcação já!
Demarcação já!

Pois índio pode ter iPad, freezer,
TV, caminhonete, "voadeira",
Que nem por isso deixa de ser índio
Nem de querer e ter na sua aldeia
Cuia, canoa, cocar, arco, maracá.

Demarcação já!
Demarcação já!

Pra que o indígena não seja um indigente,
Um alcoólatra, um escravo ou exilado,
Ou acampado à beira duma estrada,
Ou confinado e no final um suicida,

Já velho ou jovem ou – pior – piá.

Demarcação já!
Demarcação já!

Por nós não vermos como natural
A sua morte sociocultural;
Em outros termos, por nos condoermos –
E termos como belo e absoluto

Seu contributo do tupi ao tucupi, do guarani ao guaraná.

Demarcação já!
Demarcação já!

Pois guaranis e makuxis e pataxós
Estão em nós, e somos nós, pois índio é nós;
É quem dentro de nós a gente traz, aliás,
De kaiapós e kaiowás somos xarás,

Xará.

Demarcação já!
Demarcação já!

Pra não perdermos com quem aprender
A comover-nos ao olhar e ver
As árvores, os pássaros e rios,
A chuva, a rocha, a noite, o sol, a arara

E a flor de maracujá,

Demarcação já!
Demarcação já!

Pelo respeito e pelo direito
À diferença e à diversidade
De cada etnia, cada minoria,
De cada espécie da comunidade

De seres vivos que na Terra ainda há,

Demarcação já!
Demarcação já!

Por um mundo melhor ou, pelo menos,
Algum mundo por vir; por um futuro
Melhor ou, oxalá, algum futuro;
Por eles e por nós, por todo mundo,

Que nessa barca junto todo mundo "tá",

Demarcação já!
Demarcação já!

Já que depois que o enxame de Ibirapueras
E de Maracanãs de mata for pro chão,
Os yanomami morrerão deveras,
Mas seus xamãs seu povo vingarão,

E sobre a humanidade o céu cairá,

Demarcação já!
Demarcação já!

Já que, por isso, o plano do krenak encerra
Cantar, dançar, pra suspender o céu;
E indígena sem terra é todos sem a Terra,
É toda a civilização ao léu

Ao deus-dará.

Demarcação já!
Demarcação já!

Sem mais embromação na mesa do Palácio,
Nem mais embaço na gaveta da Justiça,
Nem mais demora nem delonga no processo,
Nem retrocesso nem pendenga no Congresso,

Nem lengalenga, nenhenhém nem blablablá!

Demarcação já!
Demarcação já!

Pra que nas terras finalmente demarcadas,
Ou autodemarcadas pelos índios,
Nem madeireiros, garimpeiros, fazendeiros,
Mandantes nem capangas nem jagunços,
Milícias nem polícias os afrontem.

Vrá!

Demarcação ontem!
Demarcação já!

E deixa o índio, deixa o índio, deixa os índios lá.

*(Letra publicada em Folha de S. Paulo)

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