8 de janeiro de 2015

Dona Maria e o retorno dos encantados


Eliane Brum, em Desacontecimentos
 
Primeiro uma breve apresentação:
 
   Vivemos um dos momentos mais difíceis para os povos indígenas desde a redemocratização do país. Este ano de 2015 não será fácil, basta prestar atenção nas declarações de Kátia Abreu, ministra da Agricultura do segundo mandato de Dilma Rousseff, a presidente que menos demarcou áreas indígenas no período democrático. Kátia Abreu afirmou, em entrevista à Folha de S. Paulo, publicada na segunda-feira (5/1): “Os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção”. Esta, para ela, seria a razão dos conflitos. Não vamos discutir aqui a asneira histórica cometida pela ministra, a total subversão da lógica e o flerte com o ridículo. Mas, se o nonsense é absoluto, a intenção não é inocente, muito pelo contrário. Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “os povos indígenas são especialistas em fim de mundo porque o mundo deles acabou em 1500” . Impingir àqueles cujo mundo devastamos o rótulo de “invasores” é de uma má fé calculada. E é diante desse cenário que precisam se mover aqueles que lutam pelos direitos humanos (e de todas as espécies vivas) e que sabem que, se ainda existe floresta em pé, é por conta dos povos indígenas e das populações quilombolas, ribeirinhas e agroextrativistas.
   Entre as várias estratégias para matar os povos indígenas, uma das principais é não escutá-los. Não escutá-los como determina a Constituição e tratados internacionais, não escutá-los como quem tem algo a dizer sobre si. Não existe “o” indígena, mas uma enorme diversidade, riquíssima, na complexidade como cada um dos mais de 230 povos – na época do “descobrimento” seriam mais de mil –  dá sentidos ao que chamamos de mundo e se vê dentro do mundo – ou dos mundos. Mas estes povos são silenciados também pela simplificação às vezes apenas burra, em geral mal intencionada, de fazê-los parecerem um só, chapados como “entraves ao desenvolvimento”. Precisamos escutá-los. Seremos melhores se os escutarmos. Teremos alguma chance diante do enorme desafio representado pelas mudanças climáticas se os escutarmos.
   É pensando nisso que abro meu site para Daniela Alarcon, antropóloga e jornalista que desde 2010 tem escutado os Tupinambá de Olivença. Junto com a documentarista Fernanda Ligabue, elas buscam recursos para fazer um documentário sobre a luta desse povo para viver, trazendo a narrativa desse Brasil para outros Brasis. Daniela vai nos contar aqui sobre dona Maria e as mulheres Tupinambá. Se acharem que o relato vale a pena, multipliquem-no. Sejamos, nas palavras de outro povo indígena, os Guarani Kaiowá, “palavra que age”.
Boa escuta!
Eliane Brum
“Se eu soubesse escrever, nem o diabo poderia comigo”
Por Daniela Alarcon

   – Minha mãe me pariu chorando e xingando, morando na rua do brega. Um pouco antes, meu pai foi lá e deu um pouco de dinheiro para ela. Ela xingou e enfiou num furo da casa, que era de pau-a-pique. Mãe trabalhava para ele numa quinta de café. Ele só conseguiu se deitar com ela depois de lhe dar um corte de tecido enfeitiçado. Quando eu tinha seis anos – eu lembro –, fui aonde ele estava e ele me deu um frasco amarelo desse tamainho, de perfume, de óleo, que ele tirou da vitrine da barbearia dele. E disse que não podia me registrar. Minha mãe falou que não era para eu ter recebido. Um frasco desse tamainho… Depois que eu pari Magnólia, fui na casa dele. Ele ficou todo assim, disse que eu podia pedir o que eu queria. Eu disse que não queria nada: eu nasci nua, já estou vestida.
   Filha de uma índia Kariri-Sapuyá, povo que habita o sul da Bahia, dona Maria da Glória de Jesus nasceu em 1955. Sua mãe, Hilda Rosa de Jesus (Nita), nasceu em torno do início da década de 1940, na Reserva Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, estabelecida em 1926, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), precursor da Fundação Nacional do Índio (Funai). Nessa região, próxima à chamada “costa do descobrimento”, a longa história de contato entre índios e não índios expressa-se em inúmeras uniões interétnicas, geralmente entre mulheres indígenas e homens não indígenas. São disseminadas as histórias sobre índias “amansadas” por brancos, muitas das quais criaram sozinhas os filhos dessas relações. No caso de dona Maria, o abandono paterno evidencia-se pelo sobrenome: “de Jesus”. “Minha história de negro, eu não sei contar. Já minha história de índio, eu sei.”
Dona Maria, com glória e Jesus (Daniela Alarcon/Arquivo Pessoal)
Dona Maria, com glória e Jesus (Daniela Alarcon/Arquivo Pessoal)
   Lencinho amarrado na cabeça, uma calça sob a saia, para proteger as pernas dos mosquitos e dos arranhões, dona Maria está sentada em um tamborete de madeira na parte externa da cozinha. Pouco mais de meio-dia, já cruzou a mata para arrancar mandioca para dar aos burros; deu mais uma pernada até a roça de abacaxi que mantêm com duas amigas; e, na volta, trouxe ervas para preparar um banho de folha para um neto adoentado. Agora, atrasa o preparo do almoço, porque se levantou para me contar, com o corpo todo, o que um radialista conhecido dissera em seu programa, no dia anterior: que os moradores da região precisavam se defender dos “falsos índios”, gente de “cabelo ruim” que queria se passar por indígena para “ter mais direitos que os outros” e “roubar terras”.
   Os povos indígenas que vivem no sul da Bahia – os Tupinambá, Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe (etnônimo englobante que inclui seis etnias, entre as quais os Kariri-Sapuyá) – pensam-se, muitas vezes, como “índios misturados”. Isto é, como índios cujos fenótipos desafiam o imaginário vigente sobre como um índio “deve ser”. Transmitindo sua história oralmente, vêm resistindo há séculos, de forma mais ou menos silenciosa, ao avanço dos brancos sobre suas vidas. Sobreviveram a massacres e grandes febres; desenvolveram intrincadas estratégias para resistir subterraneamente no interior dos aldeamentos jesuíticos; e, quando a correlação de forças lhes era sumamente desfavorável, no tempo dos coronéis de cacau, recuaram. Alguns tiveram de partir, outros se mantiveram em diminutos pedaços de terra, prensados pelos fazendeiros. No final dos anos 80, com os direitos territoriais indígenas reconhecidos pela Constituição Federal e com a economia cacaueira em severa decadência – em decorrência, entre outros fatores, da vassoura-de-bruxa, praga que se alastrou na região –, teve início um novo capítulo da luta dos povos indígenas do sul da Bahia por seus direitos.
Terra, resistência e encantamento
   Hoje, dona Maria tem papel proeminente em um dos mais vigorosos processos de recuperação territorial em curso no país, que se desenrola na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, em porções de Buerarema, Ilhéus e Una. Casada desde os 15 anos de idade com seu Lírio, como é conhecido Rosemiro Ferreira da Silva, o pajé da aldeia Serra do Padeiro, ela atua na mobilização dos mais de mil indígenas que vivem ali. Já assistiu à prisão de três filhos, em decorrência da luta pela terra: Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau, alvo de ameaças de morte e três vezes encarcerado; Givaldo Ferreira da Silva, que, assim como Babau, foi mantido em uma penitenciária de segurança máxima; e Glicéria Jesus da Silva, que ficou dois meses e meio presa, junto a seu bebê de colo.
   A ilegalidade das prisões foi denunciada, reiteradamente, pelo Ministério Público Federal. Isso não impediu que se construísse, na imprensa, uma virulenta narrativa sobre o “Lampião do sul da Bahia” e os “bandidos que se dizem índios”. A mais recente prisão de Babau, em 2014, convenientemente ocorreu às vésperas de uma viagem que faria ao Vaticano, para denunciar ao papa as violações aos direitos indígenas cometidas pelo governo brasileiro. A prisão de Glicéria, por sua vez, em 2010, aconteceu um dia depois de ela denunciar ao presidente Lula os ataques diários que a Polícia Federal vinha promovendo em sua aldeia.
   Dona Maria se sobressalta, às vezes. “Tem dias em que eu acordo com um preconceito ruim, como se estivesse derramando fel dentro de mim.” Mas continua em luta pela terra que, conforme as premonições dos velhos e as mensagens trazidas pelos encantados na casa do santo, sempre foi dos índios e a eles haverá de voltar. Os encantados ou caboclos – entidades não humanas que possuem domínios territoriais específicos e têm capacidade de se deslocar, transmitir recados e mesmo “baixar” em alguns indígenas – são centrais na cosmologia dos Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro. Sua morada é a formação rochosa que se destaca na paisagem e dá nome à aldeia. Para os indígenas, a existência de vínculos específicos entre eles próprios, o território e esses seres é a dimensão mais profunda de sua identidade étnica. No processo de recuperação territorial, eles têm jogado papel central, instando os índios a lutar pela terra, ensinando-lhes estratégias e, sobretudo, protegendo-os.

Há mais de quatro décadas, seu Lírio e dona Maria – que aqui aparecem em retratos tomados de 1966 a 2013 – resistem às pressões de não índios sobre o sítio onde vivem, na aldeia Serra do Padeiro. (Daniela Alarcon/Arquivo Pessoal).
   A demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, com aproximadamente 47 mil hectares de extensão, teve início em 2004. Não restam dúvidas sobre a tradicionalidade da ocupação tupinambá. Contudo, violando todos os prazos legais, o Estado ainda não concluiu o processo. De 2004 para cá, os Tupinambá da Serra do Padeiro realizaram mais de 70 “retomadas de terra”, ações de recuperação de áreas em posse de não índios. A despeito dos pistoleiros, e da atuação enviesada do Judiciário e da imprensa, não perderam a posse de nenhuma. Com a recuperação das fazendas, afastaram o espectro da fome, voltando a se dedicar às atividades que desenvolviam tradicionalmente (agricultura em pequena escala, caça, pesca e coleta), e vêm assistindo ao retorno dos parentes que andavam esparramados pelo mundo, assim como dos bichos e encantados que haviam recuado.
   Alguns indígenas dizem ter passado a ver, nos últimos tempos, certas visagens que nunca haviam presenciado antes, mas que conheciam por meio de relatos dos pais. Em maio de 2012, eu estava na aldeia quando o pajé incorporou um encantado que ninguém – nem ele mesmo – conhecia. Com fala e gestos mansos – ao contrário do impetuoso encantado Tupinambá, que costuma aparecer em situações de enfrentamento –, Marombá disse aos presentes que iria “cantar para as pessoas ficarem sabendo das coisas”. Mais tarde, complementou: “o caboclo Marombá vai ajudar vocês a viver, a levantar a aldeia”. É difícil descrever a efusividade com que os indígenas o saudaram. Ou a alegria quando duas irmãs indígenas, que viviam em situação precária no interior de São Paulo, finalmente puderam retornar à aldeia, de onde haviam partido anos antes. O retorno mais se assemelhou a um resgate, já que, na cidade, elas espiritaram, isto é, enlouqueceram. “Os encantados não gostam que a gente fique longe da aldeia”, explicaram-me. Logo após a retomada de uma fazenda, seus parentes – que até então não podiam acolhê-las, pois careciam de terras para o sustento – buscaram-nas para viver ali. Junto aos filhos, somavam onze pessoas.
As mulheres, a violência e uma bruxa de deus
   Na história das irmãs, de dona Maria, de sua mãe, de suas filhas, sobressaem características da violência específica que, no marco da expropriação territorial, abateu-se sobre as mulheres indígenas do Nordeste, conjugando discriminações de etnia, gênero e classe social. “Os velhos, os troncos velhos (antepassados de referência, considerados os sustentáculos da identidade indígena) contavam muita história das índias. As índias é que eram mais agredidas. Porque você sabe que os índios machos eram mais para matar, para perseguir, mas as índias mulheres… eles sempre queriam se aproximar das índias. Levavam para botar para ser empregada, botavam para outro canto, outro estado, outro lugar”, lembra dona Maria. Muitos relatos aludem também às índias que vagavam “desamparadas”. “Menino nas costas, menino andando, menino doente.” “Onde passava, ela dava um menino.” Algumas foram forçadas a se prostituir, ao passo que outras terminaram por se envolver em relacionamentos indesejados com não índios, marcados, quase sempre, pela violência.
   Nita, a mãe de dona Maria, deixou cedo a reserva Caramuru-Catarina-Paraguaçu, que se encontrava tomada por não índios. Aonde havia trabalho, ela ia. Isso explica por que dona Maria nasceu em Nova Canaã, no sudoeste da Bahia. “Trabalhei desde que nasci. Mãe trabalhava em fazenda de café, me levava para a roça e tinha que me deixar lá, com os jatiuns (mosquitos) me mordendo.” Em seguida, Nita passou a lavar roupa de ganho e dona Maria se encarregava dos panos menores. Mais tarde, as duas trabalharam quebrando pedras, em uma jazida de mármore azul que foi explorada no interior da reserva indígena. Depois de muito perambular, chegaram à Baixa Verde, perto da Serra do Padeiro, onde vivia seu Lírio, filho do rezador mais afamado da região, João Ferreira da Silva, ou João de Nô. Ainda em vida, João de Nô deixou ao casal um pedaço de terra ao pé da serra, a morada dos encantados. Um pedido: que não a vendessem. E uma profecia, de que dona Maria se lembra bem:
   – O velho João cansou de dizer: “Aqui nessa região ainda vem época de o rico desejar ser pobre”. Porque, quando viesse a vassoura-de-bruxa, os ricos iam perder tudo e os pobres já não tinham nada mesmo… A melhor coisa do mundo que deus deu foi a vassoura-de-bruxa: deus mandou a bruxa para poder salvar o pobre. Só fala que foi desgraça quem não conhece da terra, quem não quer viver na terra. Porque o pobre, de primeiro, era mangado, pobre era pisado, tinha que trabalhar ali e se matar. E pobre não tinha direito de terra. Se fosse no tempo em que não tinha a vassoura-de-bruxa, os índios estavam se apoderando de terra? Uma peste que estavam! Ô, meu deus, os ricos mandavam matar tudo!
   O avanço da fronteira agrícola no sul da Bahia, impulsionado pelo cacau, tivera início no final do século 19, mas a pressão sobre a porção mais interior do território tupinambá, onde se situa a aldeia Serra do Padeiro, só se intensificaria a partir de meados do século 20. Começaram a chegar “cartas de advogado”, dizendo que seu Lírio, dona Maria e os filhos tinham de deixar a área. Junto com as cartas, vieram as tocaias, em beira de estrada, atrás das árvores, de pedras grandes. “Quando o velho João morreu, o povo atacou mesmo. Juntaram de unha e dente, pistoleiro, tiro, e a gente… Eu, com uma ruma de menino pequeno, a barriga grande na boca, barrigona, e era tanta infernação. Mas a gente lutou muito, rezou muito, chamou muito por deus e pelos encantados, e hoje nós estamos aqui. Mas não parou a guerra ainda, não. Para nós estarmos aqui, a luta é grande, é pesada.”
   Na época em que eu vivia ao pé do seu fogão, fazendo pesquisa de campo para minha dissertação de mestrado, dedicada às retomadas, dona Maria crescia os olhos sobre os meus cadernos. Com a memória treinada, desde menina, para reter versos de roda, histórias e cantigas, ela tornou-se uma narradora exímia e, sendo muito curiosa, seu estoque de histórias só fazia crescer. Mas a passagem do tempo arrastava pedaços de narrativas, o que a inquietava sobremaneira. “Se eu soubesse ler, eu ia sentar e escrever tudo que já passou pela gente nessas áreas de retomada. Toda hora que eu lembrasse, eu ia lá e escrevia o que eu lembrei”. Mas, em seguida, ponderou: “Se bem que… se eu soubesse escrever, nem o diabo poderia comigo”.



   Para que mais gente possa escutar as palavras de dona Maria e de seus companheiros engajados no retorno da terra, conhecendo a justeza e a beleza de sua luta, estou às voltas – junto aos Tupinambá e à documentarista e cinegrafista Fernanda Ligabue – com a produção de um documentário de curta-metragem. Para viabilizar sua conclusão, criamos uma campanha de financiamento coletivo e convidamos você a colaborar, ajudando-nos a pressionar pela demarcação da TI Tupinambá de Olivença. Porque, como diz dona Maria:
   – Terra, o povo pensa que é para comercializar, são os olhos grandes. Mas terra é para viver bem, terra é para se viver bem nela.
Colabore aqui.
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