15 de agosto de 2017

Marco temporal: STF pode barrar abusos contra indígenas e quilombolas

Nelson Jr./SCO/STF
Cármen Lúcia, a presidente do STF, em encontro com indígenas em junho passado. O que fará o STF?

O julgamento que começa nesta quarta-feira é essencial para romper com as práticas de discriminação racial no País


Por Erika Yamada* em Carta Capital

O Supremo Tribunal Federal (STF) começa nesta quarta-feira 16 o julgamento de quatro ações que podem aprofundar o quadro de violações e retrocessos sobre os direitos territoriais e socioambientais no Brasil.
As ações versam sobre: a constitucionalidade do decreto que estabelece procedimentos de demarcação de territórios quilombolas (ADIn3239); a nulidade de títulos de particulares que ocupavam a terra indígena Ventarra/RS (ACO469); e o direito do estado do Mato Grosso ser indenizado por alegada desapropriação de terras em razão da demarcação pela União das terras indígenas Parque Indígena do Xingu (ACO362) e Nambiquara/MT (ACO366).
Uma avaliação geral aponta que, ainda que os julgamentos resultem positivos para manter o status quo das respectivas áreas demarcadas, podem prejudicar procedimentos administrativos de demarcação de indígenas que aguardam conclusões, e futuros casos judiciais.
O receio é de que, tal como o parecer assinado por Michel Temer no mês de julho – que orienta a administração a aplicar condicionantes do caso Raposa Serra do Sol restritivas de direitos a todos os casos de demarcação de terras indígenas – os julgamentos do STF sejam peças de um perverso quebra-cabeças de interesses encomendado para consolidar a chamada tese do marco temporal no Brasil.
Essa tese visa restringir genericamente o direito constitucional de demarcação de terras e territórios tradicionais de povos indígenas e comunidades quilombolas, caso não comprovem a ocupação das áreas reivindicadas na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Isso desconsidera os processos de esbulho territoriais sofridos por estas comunidades, muitas vezes pela mão do Estado.
Renomados juristas e acadêmicos já esclareceram que tal restrição não está prevista na Constituição de 1988 e, de fato, contraria o histórico de reconhecimento dos direitos territoriais indígenas já previstos no ordenamento jurídico nacional desde pelo menos 1934.
Após sua visita ao Brasil em 2016, Victoria Tauli-Corpuz, relatora especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, afirmou que a aplicação da tese do marco temporal pelo Judiciário e especialmente pelo STF violava e viola os direitos humanos dos povos indígenas.
Para a relatora, aplicar o marco temporal sem considerar como ou por que os povos indígenas foram retirados de suas terras significaria impor restrições de direitos humanos para os povos indígenas. “Com o marco temporal, o Estado contraria a sua Constituição, expulsa os povos indígenas de suas próprias terras, impede o gozo de direitos básicos e alimenta a violência contra eles”, afirmou Tauli-Corpuz.
O pleito pela redução dos direitos mais fundamentais dessas populações – com impacto direto sobre a identidade cultural, a qualidade de vida e a própria sobrevivência física de indígenas e quilombolas – ganha, no entanto, cada vez mais força por meio de pressão da bancada ruralista e evangélica em cima do atual governo.
Essas bancadas são proponentes e defensoras de projetos de leis e emendas constitucionais que exatamente visam reduzir direitos constitucionais de povos indígenas e quilombolas abrindo terras para a grilagem e a descontrolada exploração de recursos naturais. Por isso, para os movimentos indígena e quilombola, o julgamento dessas ações esta semana não é um mero acaso.
Ainda assim, há esperança de que o STF reafirme sua independência e decida pela defesa dos preceitos constitucionais, inclusive para frear o ritmo com que o Estado avança na contramão de seus compromissos e obrigações internacionais de direitos humanos.
Nas últimas décadas, tanto a Corte como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabeleceram farta jurisprudência sobre o reconhecimento dos direitos territoriais de povos indígenas e quilombolas baseadas em instrumentos internacionais vinculantes como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Em suma, para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, os países devem contar com legislação e procedimentos administrativos adequados para garantir a titulação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas ou quilombolas.
De acordo com a jurisprudência internacional, essa ocupação não se define por um marco temporal mas pela relação física, cultural, espiritual e ecológica que as comunidades mantêm com seus territórios e difere-se portanto radicalmente da definição de posse civil.


Indígenas em ato em frente ao STF, também em junho passado
Particularmente, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem avançado no reconhecimento e proteção dos direitos territoriais indígenas e tribais como direitos fundamentais, ou direitos humanos de caráter coletivo, que se relacionam inclusive com o direito à não discriminação, o direito à identidade cultural, o direito à vida, e à proteção contra deslocamentos forçados de indígenas e quilombolas, dentre outros.
Entendimentos similares já foram manifestados no Brasil, tanto jurisprudência do próprio STF – desde o ilustre voto do ministro Ilmar Galvão (1961) – como nos avançados procedimentos administrativos de identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas (1992 e 1996).
Esses procedimentos ainda em vigor se fundamentam em estudos circunstanciados e multidisciplinares conduzidos pela Funai, além de considerar o direito ao contraditório de outros sujeitos interessados no processo administrativo.
demarcação conduzida pela Funai, portanto, abarca aspectos históricos, antropológicos, ambientais, ecológicos, sociais, culturais e econômicos visando garantir por um lado a reparação do esbulho territorial provocado por políticas assimilacionistas no passado, e por outro a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas de acordo com seus modos de vida e organização numa perspectiva de futuro.
Por isso mesmo, muitos países das Américas se inspiraram no modelo de reconhecimento e demarcação de terras indígenas no Brasil, inclusive para implementar decisões do próprio Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como é o caso da Nicarágua, de Belize e do Paraguai.
Não seria exagero afirmar que um eventual retrocesso no âmbito do STF abalaria os direitos dos povos indígenas também numa escala regional e internacional. Agora, caso o STF aplique a tese do marco temporal nos casos em pauta esta semana, estará falhando com seus compromissos e obrigações internacionais de direitos humanos.
Nesse sentido, o governo brasileiro recebeu na semana passada um comunicado da Comissão Interamericana de Direitos Humanos reafirmando seu entendimento sobre a proteção dos direitos territoriais como uma questão de direitos humanos e questionando sobre a situação das demarcações de territórios quilombolas no País.
Alguns meses antes, questionamentos semelhantes foram apresentados a representantes de Estados em audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a situação das terras indígenas. Vale lembrar que em junho de 2017 o STF, juntamente com juízes e presidentes de outros tribunais constitucionais da América Latina, firmou uma carta para publicamente “expressar a relevância da jurisprudência da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos no desenvolvimento dos direitos fundamentais”.
Na América Latina, cortes constitucionais se destacam cada vez mais no reconhecimento, pelo menos formal, dos direitos dos povos indígenas em linha com os padrões internacionais de direitos humanos.
As cortes supremas de Belize, Colômbia e México, por exemplo, já incorporaram em sua jurisprudência o uso da Declaração da ONU para casos envolvendo terras indígenas e o uso de recursos naturais. No Chile e na Argentina, casos envolvendo o direito territorial de comunidades Mapuche foram resolvidos pelas cortes nacionais fazendo referência ao entendimento da obrigação de demarcar e proteger terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas e que garantam a identidade e a cultura do povo, independentemente de um marco temporal.
Essas decisões de países vizinhos reconhecem o processo histórico de esbulho praticado contra comunidades indígenas que impediu a posse (civil) sem nunca cortar a relação desses povos com as suas terras. Nas Américas como um todo, consolidou-se o entendimento de que o reconhecimento e a demarcação de terras e territórios indígenas e quilombolas corresponde a uma ação de reparação e reconciliação dos Estados com essas populações e com seu próprio passado de atrocidades, violências e graves discriminações.
Por isso, entendemos que não aplicar o marco temporal para casos indígenas e quilombolas é uma exigência para se romper com práticas de discriminação racial no Brasil e promover um paradigma de conciliação com os povos indígenas. Afinal, o que o marco temporal faz alem de impedir as demarcações de terras indígenas e quilombolas é negar o direito de existir e de ter identidades culturais diferenciadas. Em meio a atos de reza e resistência, os povos indígenas e a sociedade nacional ainda deposita no STF a esperança de que sejam encontradas soluções para os históricos conflitos territoriais no Brasil, de maneira a reafirmar e não retirar direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas.

*Erika Yamada é relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca. É perita do Mecanismo de Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. As opiniões expressas aqui são pessoais e não refletem um posicionamento do Mecanismo.
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