7 de janeiro de 2018

Marcondes Nambá: Desenhando com o próprio sangue

Fotos _ Reproduzidas do site Taqui Pra Ti 

 “... meu ódio é o melhor de mim / Com ele me salvo /  e dou aos poucos uma esperança mínima”. (Carlos Drummond – A flor e a náusea)
Por José Ribamar Bessa Freire em Taqui Pra Ti
– Faça um desenho mostrando como são tratados, hoje, os índios no Brasil, imaginando que daqui a 400 anos um historiador o encontrará num arquivo junto com outros documentos que atravessaram o tempo.
Dei essa tarefa, em outubro de 2013, aos alunos do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Entre eles, Marcondes Namblá, professor Laklãnõ/Xokleng da Terra Indígena Alto Vale do Itajaí. Ninguém podia imaginar que, quatro anos depois, o desenho seria feito com sua própria vida, isto é, com sua morte. Ele foi assassinado a pauladas, com o crânio fraturado, neste primeiro de janeiro. Tinha 38 anos, cinco filhos, um sorriso doce e cativante de menino e deixa na orfandade as crianças da escola indígena onde ensinava.
O suspeito do crime Gilmar Cesar de Lima, 22 anos, residente em Gaspar (SC), com várias passagens pela polícia, teve prisão preventiva decretada. Segundo o delegado Douglas, a polícia o identificou através das câmeras de monitoramento que flagraram o momento do crime cometido com um porrete. Testemunhas revelam que “Gilmar falou a pessoas que passavam na rua que o indígena teria ‘mexido’ com o cachorro dele”. O caso, para a polícia, se encerra quando o foragido for preso. Para nós, não.
– “A violência contra os povos indígenas é sistemática, diária, individual e coletiva” – denuncia o Núcleo de Estudos dos Povos Indígenas (NEPI) da UFSC, o que é confirmado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em nota na qual denuncia “a onda de intolerância racista contra indígenas no litoral de Santa Catarina, estimulada pelas autoridades municipais que não aceitam o fato de os indígenas frequentarem as praias”.
Efetivamente, agressões, humilhações e discriminação acontecem com muita frequência, inclusive contra crianças, mas só são registradas em caso de morte. Há dois anos, o Brasil acompanhou, estarrecido, o enterro no dia 1º de janeiro de Vítor, bebé kaingang de dois anos, degolado por um jovem de 23 anos na rodoviária de Imbituba (SC) diante da própria mãe. As agressões aumentam, ironicamente, nas festas de Natal, quando muitos índios saem de suas aldeias para vender artesanato aos turistas, ou no caso de Namblá, para vender picolé numa praia em Penha.
Brinquedos e brincadeiras
Por que alguém, pertencente à espécie humana, age como uma besta-fera e mata um semelhante que esboça gesto de carinho a um cachorro? O que ele ganha com isso? Em qual escola estudou? Quem colocou merda nesse cérebro criminoso? Por que ceifou a vida de um pesquisador promissor que em novembro último impressionou o público do III Seminário Crianças e Infâncias Indígenas com a apresentação dos resultados de sua pesquisa? Na ocasião, Namblá revelou à antropóloga Antonella Tassinari seus planos de ingressar no mestrado para continuar investigando a infância indígena.
Esse foi o tema de sua monografia de conclusão de curso em abril de 2015. Ele pesquisou a prática dos banhos nos rios, mostrando como a construção da Barragem Norte transformou o cotidiano das crianças Laklãnõ e prejudicou as brincadeiras infantis que registravam vocabulários específicos na língua nativa e foram abandonados. Preocupado com o destino da língua materna, Namblá estava atento para a circulação de saberes tradicionais e as dimensões identitárias configuradas pelo território. “Ele nos cativou com seu sorriso, entusiasmo e criatividade” – escreveu Antonella.
Os depoimentos de professores e colegas ressaltam a jovialidade e o entusiasmo de Namblá pela vida. Ele era dono de uma “alegria contagiante que nos passava com sua viola e cantorias de sempre na UFSC” nas palavras enlutadas de sua colega, a guarani Kerexu Yxapyry. Ele cantava e encantava.
Guardo dele saudosas lembranças. Depois que ministrei dois módulos para sua turma, continuamos a manter contato permanente, com troca de mensagens pelo facebook. Numa delas, em 18/01/2014, ele escreveu:
– Olá professor. Quero ampliar a minha pesquisa sobre a infância. Na conversa em Foz do Iguaçu vc me falou de um autor que fala disso, gostaria de saber o nome dele.
– Acho que foi o Walter Benjamin – eu respondi
– Ah, é esse mesmo.
Dois depois lhe enviei cópias do “História Cultural do Brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira – Observações sobre uma obra monumental”, ambos de Benjamin. Já em 2015, Namblá comentou a resenha que lhe enviei do livro “A hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter Benjamin” organizada por Rita Ribes.
Continuamos em contato até há alguns meses quando ele escreveu: (07/03/2017):
– Olá, professor! Td bm? Sabe eu to de saída, mas logo que vi vc conectado, lembrei que podes me ajudar, se puder, é claro. To precisando que vc me envie artigos científicos sobre metodologia de ensino de língua portuguesa literatura.
Respondi:
– Oi Namblá, veja nesse site (leonorwerneck.wixsite.com) lá vai encontrar o que te interessa. Acho que vale a pena consultar também a revista “Linha D’Água” da APPL – Associação dos Professores de Língua e Literatura. Também o artigo “Na sala de Aula” de Antônio Cândido.
– Valeu. Vou pesquisar o site sim. Muito obrigado
O desenho
Esse é Marcondes Namblá, assassinado não só por um indivíduo, que foi apenas um instrumento, mas pela sociedade que o armou com o preconceito. Ele e seus 35 colegas de turma, Laklano, Guarani e Kaingang, além da dolorosa experiência pessoal, conheceram a trajetória histórica da violência. Na disciplina Análise e interpretação de textos que ministrei na Licenciatura das Linguagens, em Florianópolis, todos leram trechos da “Nova Crônica e Bom Governo” do índio andino Felipe Guamán Poma de Ayala (1526-1615), ilustrada com 398 desenhos só encontrados em 1908 na Biblioteca Real da Dinamarca.
Foi aí que cada aluno escolheu um desenho para comentar sua atualidade. São imagens fortes do período colonial, de caráter narrativo, que relatam os métodos violentos usados pelos conquistadores, num deles está a imagem do avô do autor, Guamán Chaua, que foi queimado vivo por Pizarro. O desenho de Poma de Ayala selecionado por Namblá foi aquele em que violência física era cometida contra crianças indígenas chicoteadas pelo mestre-escola.
Marcondes Namblá escreveu comentário para avaliação da disciplina, que depois leu no Colóquio sobre Poma de Ayala em Foz do Iguaçu, em outubro de 2014, numa mesa com a participação dos Guarani Joana Mongeló e Teodoro Alves, e dos professores da UNILA Clóvis Brighenti, Giane Lessa e Mário Ramão Villaba.  Em sua homenagem, reproduzo aqui trechos do seu texto:
“A imagem que escolhi retrata os abusos das autoridades políticas e religiosas.  Mas o que eu gostaria de deixar para a posteridade é que a entrada da igreja dentro das terras indígenas sem dúvida é a pior e mais eficiente arma utilizada pelos colonizadores europeus para dominar os povos indígenas brasileiros.
“Sobre o autor, foi a primeira vez que conheci o trabalho através do professor José Bessa, durante uma etapa do curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica – UFSC. É impressionante ler um texto de 500 anos atrás e saber como e o que aconteceu naqueles anos. Podemos descobrir as atrocidades que os espanhóis cometeram com os Incas no Peru. O desenho é interessante, pois ele consegue transmitir com muita precisão o que ele testemunhou durante a sua vivência.

“Outra mensagem que o desenho nos transmite enquanto indígenas é que a cultura oral é muito importante, mas no mundo atual, o registro escrito de tudo o que acontece no dia-a-dia da comunidade, os rituais, a musicalidade, a culinária, os medicamentos tradicionais, o movimento e a luta pela conquista dos nossos direitos é fundamental, para que as gerações posteriores possam conhecer. Por isso defendo o ingresso dos indígenas nas universidades, sabendo que a formação acadêmica pode contribuir para concretizar esse processo”.
Quando seu colega guarani Eduardo Kuaray morreu, em novembro de 2014, escrevi que a morte de um aluno jovem é, para o professor que a ele sobrevive, como a morte de um filho: uma inversão, uma cilada do destino, da história. Assim como existe pai órfão de seu filho, existe professor órfão de seu aluno. Já sinto saudades da troca de mensagens com Namblá. O coração, repleto de vergonha pelo Brasil no qual vivemos, revela a impotência de dar um basta num crime que se arrasta por cinco séculos.
Só nos resta a esperança de que o desenho com sangue de Namblá contribua para combater a intolerância e chegue ao séc. XXV, quando quem será julgado por esses crime não será um pobre infeliz, mas a sociedade que o armou. Com dor, mas com indignação e com a raiva de Drummond.
P.S. – Na terça-feira, 9 de janeiro, às 9 hrs da manhã, o Curso de Licenciatura da UFSC realiza um ato em homenagem a Marcondes Namblá. Agradeço as informações recentes e as fotos postadas por Marina Oliveira, Clóvis Brighenti, Antonella Tassinara e Kerexu Yxapyry.

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