23 de julho de 2017

Lideranças, MPF e a ONU reagem contra parecer de Temer que trava demarcações

Para os entrevistados as restrições do STF violam Constituição Federal e ultrapassam limites do Direito 
Foto _ Ana Mendes/Amazônia Real


Ana Mendes, Elaíze Farias, Fábio Pontes e Freud Antunes em Amazônia Real
Lideranças indígenas, o Ministério Público Federal, representantes das ONU e de organizações que defendem os direitos dos povos tradicionais entrevistados pela reportagem da Amazônia Real nesta quinta-feira (20) avaliam como “gravíssimo” o parecer sobre demarcação de terras indígenas da Advocacia-geral da União aprovado pelo presidente Michel Temer (PMDB). O parecer, que pode barrar os processos de demarcações em andamento, foi divulgado na quarta-feira (19). A medida determina que a administração pública federal adote o marco temporal do Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2009 estabeleceu 19 restrições ao julgar a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR). O parecer pode ser objeto de eventual questionamento no STF.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) informou que enviou nesta sexta-feira (21) uma representação à Procuradora-Geral da República (PGR) pedindo providências contra a efetividade da Ação 3388/RR do caso Raposa Serra do Sol, que resultou no estabelecimento das condicionantes (leia a nota do CIR na íntegra).  A representação foi encaminhada diretamente ao Procurador-Geral, Rodrigo Janot. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) divulgou nota dizendo que “a aplicação daquelas condicionantes a outras situações resulta em graves restrições aos direitos dos povos indígenas” (leia a nota).
Entre as condicionantes estabelecidas para demarcação e ocupação de terras indígenas pelo STF estão a que diz que “os povos indígenas têm direito à posse de seus territórios tradicionais, desde que a comunidade esteja ocupando efetivamente o local até o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal”, e a que tirou o direito dos índios à consulta prévia sobre os projetos de interesse púbico como hidrelétricas, rodovias, hidrovias, mineração, entre outros, defendidos pelos deputados e senadores da bancada ruralista do Congresso Nacional. Leia aqui.
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), atualmente 241 terras indígenas estão em processo de demarcação. O trâmite do reconhecimento do território tradicional começa com o estudo, delimitação, declaração até a homologação da terra pelo presidente da República. Esses processos podem ser todos revistos com o parecer de Temer.
Um deles é a identificação da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1 dos índios Guarani Kaiowá, em Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Segundo Fábio Turibo Guarani Kaiowá, 20 anos, estudante de Teko Arandu (licenciatura) na Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal de Dourados, as restrições do marco temporal adotadas pelo parecer de Temer só trarão mais sofrimento aos Guarani Kaiowá, que estão retomando terras tradicionais.
“Então, estamos com os dias contados em relação ao marco temporal. Aqui no estado do Mato Grosso do Sul a gente já tem um ataque muito forte em relação aos Guarani Kaiowá. O genocídio é grande, a gente sente como o ruralista nos ataca. Dentro disso tem o Estado, os deputados federais, senadores, que envolvem a questão do latifúndio. Tudo isso abrange a relação aos Guarani Kaiowá com o sofrimento. O marco temporal vem especificamente fazendo isso, que é uma tese que já foi aplicada em algumas áreas, um exemplo a Terra Indígena Guyraroká. A gente precisa da terra, a gente vai resistir”, disse Fábio Turibo. Leia: O marco temporal do STF fere a concepção da posse imemorial prevista na Constituição

Indígenas Yawanawa durante o ritual Mariri, no Acre. Foto _ Odair Leal/Amazônia Real

No Acre, o parecer  de Michel Temer causou reação das lideranças. O coordenador da Associação Sociocultural Yawanawa, Tashka Yawanawa disse que “os povos indígenas habitam em seus territórios desde tempos imemoriais, não desde 1988, e é um direto inalienável de posse.”
“As leis que estão querendo mudar é simplesmente para agradar os ruralistas. Eles não têm moral de questionar os povos indígenas que possui direitos sobre as terras. Espero que possa ser revisto e que um dia o Brasil possa pedir desculpa por essa afronta”, afirma o coordenador.
Segundo Sebastião Manchinery, líder indígena independente do Acre, os processos de demarcações no estado estão parados pelo governo federal desde 2006, pois houve um entendimento com o governo estadual – à época era Jorge Viana (PT) o governador – para não demarcar terras tanto no Vale do Juruá quanto no Vale do Purus, áreas de grande interesse da mineração e da exploração de petróleo.
“Esse parecer deslegitima, ele desconsidera e será um grande retrocesso para o Brasil você não reconhecer a existência dos povos indígenas anteriormente e se isso não é reconhecido. Obviamente vai requerer para o país a instabilidade dos direitos e questionamento por outros governos e sistemas internacionais com relação a criminalização, não só com os povos indígenas, com os quilombolas, mas com a população em geral”, afirmou Sabá Manchinery.
ONU prevê conflitos
Políciais investigam ataque aos índios Gamela, no Maranhão. Foto _ Ana Mendes/Amazônia Real)
A perita da Organizações das Nações Unidas (ONU) para povos indígenas, Erika Yamada, disse à Amazônia Real que o parecer de Michel Temer é um ato inconstitucional que não deveria se sustentar e que pode dar causa a reclamações internacionais na OIT (Organização Internacional do Trabalho, na OEA (Organização dos Estados Americanos) e no Comitê de Eliminação a Discriminação da ONU.
“Ele ultrapassa todos os limites do direito administrativo porque, no fundo, o presidente assina um parecer que é uma tentativa de legislar, de alterar a própria Constituição de 1988. A gente está num cenário gravíssimo em que não se fala de PEC 215, mas tem concretizada uma medida muito pior porque ela tenta alterar a Constituição fora de um processo de emenda constitucional. E certamente antidemocrático”, disse Erika Yamada, que é também relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca, uma rede nacional de articulação de organizações da sociedade civil.
A perita da ONU diz que o parecer viola múltiplos direitos protegidos pela Constituição Federal e por instrumentos e jurisprudência internacionais dos direitos humanos. Ela diz que a medida concretiza violações ao direito a terra, vai impedir que demarcações sejam realizadas e viola direito de consulta, visto que o parecer foi publicado e adotado sem qualquer diálogo com os indígenas.
“O conteúdo desse parecer estabelece restrições que não estão previstas em nenhuma legislação, nem na convenção da 169 da OIT, referente a povos indígenas, nem nas declarações da ONU e da OEA sobre os direitos dos povos indígenas. Ele contraria a ampla jurisprudência do sistema interamericano dos direitos humanos com relação a esse direito”, alertou.
Érika criticou também a forma como o parecer trata as diferentes realidades e identidades culturais dos povos indígenas, cujas garantias estão previstas na Constituição.
“Ele tenta tratar os povos indígenas como se eles vivessem uma única realidade que pudesse ser normatizada de maneira geral a partir de um caso concreto, que é o caso Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Atrelado a isso, um dos aspectos muito grave dessa medida é que se consolida uma posição de negação do acesso a medidas reparatórias para os povos indígenas e do acesso à justiça, que também é um direito fundamental de qualquer cidadão no estado democrático de direito”, explicou.
Ao assinar o parecer, diz Erika Yamada, Michel Temer coloca o Brasil na contramão do compromisso dos Estados e do compromisso que o Brasil assumiu frente a outros países, que foi de reconhecer e de reparar violações cometidas contra os povos indígenas.
“Ao aplicar na esfera administrativa, seja na Funai seja restringindo a defesa judicial de comunidades que têm ações que precisam ser defendida pela AGU e pela Procuradora Federal, está negando a defesa judicial de direitos que estão contidos na Constituição Federal”, disse.
Diferente do que argumenta o governo de Michel Temer, que alega que o parecer vai pacificar a questão fundiária das terras indígenas, o parecer vai ser causa de mais conflitos, segundo a perita.
“A insegurança jurídica vem do fato do judiciário não conseguir reafirmar os direitos que estão previstos na legislação existente, especialmente na constituição. Esse parecer não vai e não deveria resolver os casos judiciais. A outra fonte de conflito é o extremismo da negação do direito, especialmente do direito territorial, que nega a possibilidade da existência e da presença indígena por parte de políticos que têm ganhado cada vez mais força dentro desse governo ilegítimo”, explicou.

Violação de direitos

Índios Guarani Kaiowá foram atacados por fazendeiros em 2016. Foto _  Ana Mendes/Amazônia Real)

O procurador da República Julio Araújo, que coordena o Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar do Ministério Público Federal e atuou no Amazonas, disse que o parecer tenta neutralizar um entendimento manifestado no caso Raposa Serra do Sol e esquece que a sua expansão para outros casos é objeto de grandes discussões na administração pública federal – inclusive na autarquia que conduz a política indigenista – e no próprio Supremo Tribunal Federal.


Ele afirmou que há uma clara violação de direitos, que não surpreende pelas intenções, mas pela falta de compromisso com a Constituição de 1988. 
“Ao supostamente alegar que vai pacificar o conflito, o parecer posiciona-se pelo esvaziamento do artigo 231 da Constituição e pela negação dos direitos dos índios a seus territórios, pois desconsidera a historicidade dos conflitos e a proteção que as terras indígenas merecem, independentemente de processos demarcatórios, em plena igualdade com a propriedade privada. Com isso, tende a agravar os conflitos de terras, que só vêm aumentando nos últimos tempos”, disse o procurador.


Ações serão julgadas em agosto no STF

O advogado indígena Luiz Henrique Eloy, da etnia Terena, disse à Amazônia Real que o parecer de Michel Temer antecipa o posicionamento do governo federal sobre o marco temporal, uma série de condicionantes estabelecidos pelo STF durante o julgamento da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, pois em 16 de agosto próximo haverá julgamento pelos ministros de ações judiciais envolvendo quatro territórios indígenas. As ações são referentes ao Parque Nacional do Xingu, às Reservas Indígenas Nambikwara e Parecis, no Mato Grosso, e à Terra Indígena Ventarra, no Rio Grande do Sul, do povo Kaingang.

“A ministra Carmem Lúcia colocou na agenda do STF o julgamento de três ações judiciais que discutem matéria relativa à tradicionalidade de terras indígenas. Tudo indica que poderão ser tomadas decisões determinantes quanto ao alcance do conceito de “terra tradicionalmente ocupada”. A tese do marco temporal pode ser consagrada ou, como esperamos, esfacelada ou ao menos enfraquecida”, disse o advogado.

Brecha para conflitos



Índio Gamela, Francisco Jansen Mendonça da Luz, ferido em ataque de pistoleiros no 
Maranhão.


Foto _ Ana Mendes/CIMI)




A coordenadora do Programa de Política e Direitos Socioambientais do Instituto Socioambiental (ISA), Adriana Ramos, afirma que ao fragilizar os direitos das populações indígenas, o governo Temer fortalece ações violentas no campo.


“Toda vez que o governo toma uma decisão que vai no sentido de fragilizar o direito dos povos indígenas, ele abre a brecha para aumentar os conflitos locais. Ele está atendendo à demanda de parlamentares que instigam o conflito, que estimulam a violência física contra os índios. É uma sinalização de que estamos caminhando para a perda de direitos”, afirma.
Segundo Adriana Ramos, ao recorrer a uma canetada para “regulamentar” o marco temporal, o Executivo passa por cima do STF, que rejeitou súmula vinculante para tratar do tema por não haver consenso entre os ministros da Corte.
“É mais um dos absurdos que a gente vê acontecer neste vale-tudo que virou a manutenção do presidente [Temer no poder]. É uma forçação de barra em cima de uma questão que o próprio Supremo Tribunal Federal já tinha afirmado que não tinha consenso. O Supremo rejeitou uma proposta de súmula vinculante sobre esse assunto alegando que era um tema ainda em debate”, ressalta.  
“Então não faz o menor sentido querer decidir dessa maneira, numa canetada, passando por cima dos direitos indígenas, num flagrante atendimento aos parlamentares da bancada ruralista neste contexto de negociações de votos do presidente para se manter no poder”, completa Adriana.
De acordo com coordenadora, o ISA estuda medidas legais para contestar o parecer presidencial, como pedir para que a Procuradoria Geral da República questione, junto ao Supremo, a legitimidade do ato.
No campo político, a proposta é unir entidades de representação do movimento indígena para denunciar o caso ante os organismos internacionais. “Estamos articulando com todas as organizações indigenistas e indígenas uma manifestação coletiva para ser divulgada nacional e internacionalmente denunciando que o governo está colocando os direitos indígenas como moeda de troca para sua permanência”, diz a coordenadora do instituto Adriana Ramos.
Supremo não se manifesta




Liderança Guarani Kaiowá em protesto em frente ao Supremo Tribunal Federal em 2016
Foto_ Ana Mendes/Amazônia Real
Amazônia Real procurou a assessoria de comunicação do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, para que o órgão se pronunciasse a despeito das 19 condicionantes, já que as restrições podem ser modificadas ainda no Plenário da Corte na atual composição de ministros.
A assessoria disse que o “Plenário do STF, ao julgar um processo a ele submetido, pode manter ou alterar qualquer entendimento anteriormente firmado, pois é o colegiado máximo do Tribunal. O Plenário, portanto, tem liberdade para analisar as teses trazidas a consideração dos ministros, podendo ratificar ou alterar sua jurisprudência”, disse a assessoria, que informou que o STF não se manifestará sobre o parecer do presidente Michel Temer.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi procurada para falar sobre o parecer, que vai interferir no processo de demarcação da autarquia ligada ao Ministério da Justiça. Entre outras questões, a reportagem quis saber se os processos de demarcação em curso atualmente na fundação, após a assinatura do parecer de Michel Temer, foram interrompidos.
A assessoria disse que o presidente do órgão, Franklimberg Ribeiro de Freitas, só poderia se manifestar sobre a medida após retornar de viagem, que acontece no final da noite desta quinta-feira. Freitas estava em Mato Grosso, onde participou de reunião com indígenas Munduruku que ocuparam o canteiro de obras da usina São Manoel, no rio Teles Pires.

MPF diz que parecer barra demarcação

Em nota divulgada na noite desta quinta-feira (20), o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou contra o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), aprovado pelo presidente Michel Temer, sobre os processos de demarcação de terras indígenas. Mas não informou se vai ingressar com uma ação no STF contra o parecer. 
Na nota, o MPF  diz os índios nada podem esperar da Administração e que a certeza dos índios e a esperança de seu futuro estão nas mãos da Justiça.

“O Supremo Tribunal Federal terá agora em agosto nova e plural oportunidade de debater vários desses temas”

Segundo a assessoria de imprensa da PGR (Procuradoria Geral da República), para a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6ª CCR), a posição do presidente da República demonstra que “o atual governo faz o que os antecessores já faziam: não demarca, não reconhece e não protege terras indígenas”.
Para o MPF, o parecer divulgado na quinta-feira orienta a administração federal a vincular as condicionantes estabelecidas no caso Raposa Serra do Sol para outros processos demarcatório, mesmo tendo o Supremo Tribunal Federal expressamente reconhecido que a decisão tomada na PET 3388 [ação do governo de Roraima que contestou a homologação da Raposa Serra do Sol] não é dotada de eficácia vinculante para outras terras indígenas. (Colaborou Fernando Mendonça).


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