Por Tania Pacheco,
Combate Racismo Ambiental
O Juiz Titular Federal em Campo Grande, Renato Toniasso, julgou procedente ação de reintegração de posse movida por João Proença de Queiroz contra os Terena da Terra Indígena Cachoeirinha, responsáveis pela retomada da Aldeia Mãe Terra, a mais antiga de todas as realizadas pela etnia. Juntamente com as lideranças Terena Zacarias Rodrigues, Ramão Vieira de Souza e Filinto, foram também condenadas a Funai e a União, inclusive ao pagamento dos honorários dos advogados do processo, calculados em R$ 10 mil reais.
Na sentença, embora cite o parecer de Carlos Ayres Britto em relação a Raposa Serra do Sol, indicando que o consideraria em qualquer decisão a ser eventualmente tomada, o juiz também responsabiliza o Poder Executivo pela procrastinação nas decisões relativas aos Territórios Indígenas. Afirma ele:
Aliás, nesse sentido, é de bom alvitre que os indígenas tenham em mente que a celeridade na resolução dos seus problemas fundiários depende muito mais do Poder Executivo Federal do que do Poder Judiciário. Se o Governo Federal resolver instaurar os processos demarcatórios que preencherem os requisitos legais e se mantiver dentro da lei, os processos de demarcação tenderão a andar de forma mais célere.
O fato de o processo administrativo de demarcação e ampliação da Terra Indígena Cachoeirinha estar em fase adiantada (publicação da Portaria Ministerial nº. 791, em 20/04/2007) não permite que os índios tomem a posse da área demarca[n]da, antes do seu desfecho, o que se dará apenas mediante decreto homologatório do Presidente da República, nos termos do artigo 5º, do Decreto nº. 1.775/96 . No presente caso, considerando que a questão foi levada a juízo, os indígenas deveriam aguardar uma decisão definitiva a respeito.
O Poder Judiciário não pode demarcar terras indígenas e nem adquirir terras particulares para ampliar aldeias – isso é tarefa da Administração. O que lhe cabe é dizer o Direito, nos casos em que é chamado a intervir. Mas isso deve se dar de modo uniforme e nos termos da legislação de regência, qualquer que seja a parte envolvida.
Datada de 1º de outubro, a decisão determina “a reintegração do autor na posse do imóvel rural denominado Fazenda Santa Vitória (…), e, bem assim, que os indígenas que ocupam esse imóvel, de lá se retirem com todos os seus pertences. O cumprimento do disposto na presente sentença deve se dar após a estabilização deste julgado”. Abaixo, a íntegra da sentença.
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Ação ordinária nº. 0010230-51.2005.403.6000
Autor: João Proença de Queiroz
Réus: Fundação Nacional do Índio – FUNAI, União Federal, Zacarias Rodrigues, Ramão Vieira de Souza e Filinto
Autor: João Proença de Queiroz
Réus: Fundação Nacional do Índio – FUNAI, União Federal, Zacarias Rodrigues, Ramão Vieira de Souza e Filinto
SENTENÇA
Trata-se de Ação de Reintegração de Posse, através da qual o autor, qualificado nos autos, pleiteia a sua reintegração na posse do imóvel rural denominado “Fazenda Santa Vitória”, determinando-se que os indígenas que o ocupam, de lá se retirem, com todos os seus pertences. Como fundamentos do pedido, alega que é legítimo proprietário e possuidor, a justo título, desse imóvel, localizado no Município de Miranda, MS, sendo que o mesmo foi parcialmente abrangido pela demarcação da Terra Indígena Cachoeirinha, de ocupação, no que se refere aos seus limites originais, do grupo tribal Terena (despacho nº. 54 da Presidência da FUNAI – DOU de 24/06/2003).
Aduz exercer posse mansa e pacífica sobre o imóvel há décadas, sendo que, em 28/11/2005, referido bem foi invadido por cerca de 50 indígenas da etnia Terena, liderados pelo Cacique Zacarias Rodrigues. Esses índios lá se instalaram em barracas de lona, construídas nas proximidades da sede da fazenda, com seus familiares, crianças, animais e demais pertences, e estariam adotando atitudes intimidatórias em relação a si e aos seus familiares. Nesse sentido, teriam lhe comunicado que iriam iniciar o cultivo de plantações. Argui que, diante do flagrante esbulho possessório ali ocorrido, não lhe resta alternativa senão buscar proteção jurisdicional (art. 5º, XXII, CF), o que faz através da presente ação. Com a inicial vieram os documentos de fls. 14-307.
Os réus foram intimados para se manifestar sobre o pedido de medida liminar. A União pediu a designação de audiência de justificação (fls. 317-318) e a FUNAI, o indeferimento do pleito, alegando preliminar de ilegitimidade passiva e necessidade de emenda à inicial para a citação da comunidade indígena e regular intimação do MPF (fls. 320-328). Manifestação do parquet federal às fls. 330-341: pela extinção do processo sem julgamento do mérito, caso não fosse promovida a regularização do polo passivo (através da citação dos indígenas), bem como pelo indeferimento do pedido liminar.
Intimado para promover a regularização do polo passivo da ação (de início composto apenas pela União e pela FUNAI), o autor requereu a citação dos Caciques Zacarias Rodrigues, Ramão Vieira de Souza e Filinto, bem como “de todos os indígenas invasores da propriedade” – fl. 343.
O pedido de medida liminar foi deferido; bem assim o de emenda da inicial, para a regularização do polo passivo da lide, quando restou reconhecida a existência de conexão dos presentes autos, com os de nº. 2005.60.00.009841-0 (fls. 345-347). Contra essa decisão, o MPF interpôs Agravo de Instrumento, conforme noticiado às fls. 356-380. O autor requereu reforço policial para o cumprimento da decisão liminar, uma vez que a primeira tentativa nesse sentido restara infrutífera (fls. 403-404). O pedido foi deferido (fl. 410), mas antes do cumprimento daquela decisão, houve o deferimento de efeito suspensivo ao recurso de Agravo de Instrumento interposto pelo MPF (fls. 415-419 e 432-435).
A FUNAI apresentou Agravo Retido (fls. 421-430). A Comunidade Indígena de Cachoeirinha apresentou contestação, defendendo que “a ocupação tradicional Terena de Cachoeirinha na área em litígio é anterior à titulação em favor dos Autores, pelo Estado” e que a posse indígena sobre essa terra é um direito congênito, primário e garantido Constitucionalmente (art. 231), bem como pela Lei nº. 6.001/73 (arts. 22 a 25), “não se confundindo com a posse emanada do Código Civil brasileiro e, até mesmo, do direito agrário”. Termina enfatizando que “o esbulho vem e vinha sendo feito pelo Autor e seus antecessores na posse tradicional dos índios de etnia Terena da Terra Indígena Cachoeirinha” e, em vista do caráter dúplice da ação possessória, pede a reintegração da Comunidade Indígena de Cachoeirinha na posse da área que ocupa há mais de 6 anos, na Fazenda Santa Vitória, bem como indenização pelos prejuízos sofridos – fls. 439-470. Juntou documentos às fls. 471-498.
Em contestação (fls. 506-522), a União afirma que os índios têm a melhor posse e que ela tem o melhor domínio. Assim, “as terras são indígenas e para os índios devem ser asseguradas”. Trouxe os documentos de fls. 523-714. A FUNAI, por sua vez, contestou a ação alegando preliminar de ilegitimidade passiva (sustenta ser mera tutora dos índios). No mérito, diz que não participou, incentivou ou estimulou a turbação ou o esbulho possessório em questão, enfatizando que tem sido zelosa na condução do seu poder de polícia junto às comunidades indígenas e que a petição inicial em nenhum momento alegou sua omissão a esse respeito. Destaca que não deve ser penalizada quanto às atitudes de seus tutelados, uma vez que não possui poder de comando sobre os indígenas (fls. 716-724).
Juntada de comunicação de provimento ao Agravo de Instrumento interposto pelo MPF (fls. 728 e 1125-1127). Réplica às fls. 732-745. Foi designada audiência de instrução (fls. 747, 884-893). A FUNAI fez juntar aos autos cópia do laudo antropológico integrante do procedimento administrativo nº. 08620.0981/82-65, que cuida da Identificação e Delimitação da Terra Indígena Cachoeirinha/MS (fls. 758-875), e, bem assim, cópia da Portaria nº. 791, de 19/04/2007, que declarou como sendo de posse permanente do grupo indígena Terena, a Terra Indígena Cachoeirinha. Essa portaria teria sido publicada no DOU em 20/04/2007 (fls. 913-916).
Intimado a se manifestar sobre os novos documentos trazidos pela FUNAI (fl. 918), o autor defendeu: que os mesmos são irrelevantes, para o deslinde da questão, uma vez que citada demarcação abrange apenas parte da sua terra (400 ha foram invadidos desmotivadamente); que em ação possessória não se discute domínio; e que referida Portaria decorre de processo administrativo viciado (ausência do devido processo legal e ampla defesa). Por fim, requereu a separação desta ação, da de nº. 2005.60.00.009841-0 – fls. 923-926.
O MPF manifestou-se às fls. 931-939. Aduz que a Portaria Ministerial nº. 791/07 constitui elemento imprescindível para a construção do convencimento acerca de quem tem a melhor posse sobre as terras em apreço, pois quaisquer títulos dominiais relativos à área demarcada como Terra Indígena Cachoeirinha devem ser considerados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos. Conclui pugnando pela improcedência do pedido inicial.
Restou deferido o pedido do autor e determinada a separação da presente ação, da de nº. 2005.60.00.009841-0, com a redistribuição destes autos para a 2ª. Vara Federal desta Subseção Judiciária (fls. 941-942). Contra essa decisão a FUNAI interpôs Recurso de Agravo de Instrumento (fls. 948-961). Às fls. 963-965 o autor apresentou memorial. O Juízo da 2ª Vara suscitou conflito negativo de competência em relação a esta ação (fls. 975-981), mas, em razão do provimento ao Agravo de Instrumento da FUNAI (fls. 1007-1010), esse pretenso conflito perdeu sua eficácia e foi determinada a remessa dos presentes autos a esta Vara (fl. 1.011). Todavia, como os autos ainda se encontravam na 2ª. Vara, o autor informou que interpusera Agravo Regimental, nos termos do artigo 557 do CPC, contra a decisão do E. TRF3, que dera provimento ao Agravo de Instrumento proposto pela FUNAI, e pediu que se aguardasse o julgamento desse recurso para, se fosse o caso, encaminharem-se os mesmos a esta 1ª. Vara (fls. 1027-1035). O seu pedido foi deferido (fl. 1036).
O MPF apresentou aditamento ao seu parecer, para fazer colacionar aos autos documentos que entendeu serem imprescindíveis para a formação de convencimento do Juízo acerca de qual a melhor solução para a questão posta (fotos e DVD que demonstram a existência, na área debatida, de uma verdadeira aldeia indígena) – fls. 983-1004.
Ainda na 2ª. Vara o autor pediu a juntada de precedentes do E. TRF3 e reiterou o pleito de procedência do pedido da ação (fls. 1046-1116). Em consequência disso os autos foram remetidos para esta Vara Federal (fl. 1117). Os autores desistiram da ação de nº. 2005.60.00.009841-0, e o processo foi extinto, com o arquivamento dos autos. É o relatório do necessário.
Decido.
No tocante à alegada ilegitimidade passiva da FUNAI, entendo que, nos termos dos artigos 35 e 36 do Estatuto do Índio (Lei nº. 6.001/73), essa fundação indigenista e a União são substitutas processuais dos índios e, juntamente com a comunidade indígena, são parte legítima para figurar no polo passivo da presente demanda, pois todas elas podem sofrer consequências jurídico-materiais em caso de se dar pela procedência do pedido da presente ação. Assim, rejeito a preliminar.
Quanto ao mérito, considero, inicialmente, que o direito em geral mostra-se adensado na razão inversa da extensão dos fundamentos usados para a sua defesa: quanto mais for necessário argumentar, para se tentar demonstrá-lo, menos provável será a sua existência. No entender de muitos, seria ele prático e, sobretudo lógico; fruto do bom senso e, por isso, facilmente perceptível ao homem chamado “comum”, não versado nas ciências jurídicas. Mas este último atributo, na fina ironia de Descartes, não é de fácil identificação: “O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm.”
Com todo o respeito aos que pensam de modo diverso, entendo que a proteção da posse, em casos da espécie – quando de qualquer dos lados da lide estiverem índios e/ou não índios – deve, sim, ser analisada a partir da legislação infraconstitucional, nos termos do disposto nos artigos 1.210 do Código Civil e 926 e seguintes do Código de Processo Civil (Grifei). A posse sui generis defendida pelo MPF (Para os silvícolas, a posse da terra possui um significado cultural muito mais relevante que a dos não-índios, especialmente quando na área nasceram, cresceram e morreram seus ascendentes. A terra é um liame que conecta a sociedade indígena em torno de um fim comum – fl. 340), além de se identificar mais como domínio, deve ser tratada no plano normativo, para a fixação do direito de uso dos indígenas, ainda que com particularidades em relação ao direito dominial dos não índios (e isso foi feito, v. g., na Constituição Federal, em seu Capítulo VIII).
No plano efetivo, a proteção do direito de posse tem que ser igualitária. Afinal, posse é fato, e, em sendo assim, tanto vale para índio como para não índio. Não podem existir posses sobrepostas, meia posse ou posse fragilizada, assim como não podem ser relativizadas, por exemplo, a presença física de alguém (a pessoa está ou não está em um lugar), a honestidade etc. Caso não índios invadam terras indígenas e a Justiça seja acionada, o tratamento deverá ser o mesmo dispensado em se tratando de invasão de terras particulares por índios. A tomada à força representa autotutela, o que não é tolerado pelo Direito. Permitir a autotutela, em casos tais, seria liberar o caminho da barbárie, a semear ódios e vinganças, caminho esse do qual a Humanidade luta desde os seus primórdios para se afastar.
A falta de segurança jurídica, a ser gerada pela exegese defendida pelo MPF, pode influir negativamente na atividade econômica, produzindo, inclusive, retrocessos sociais, e, por consequência, maculando o interesse público. A virtude, na espécie, está no meio: em se resguardar igualmente a posse, quer seja de índios ou de não índios (Virtus in medium est) . No presente caso, em se confirmando que a área em questão é de ocupação tradicional indígena, nos termos do artigo 231 da CF, soa-me lógico concluir-se que em algum momento os indígenas perderam a posse sobre ela, uma vez que posse é fato e que os autores detinham a posse do imóvel.
Assim, o direito originário dos indígenas, sobre as terras que lhe são afetadas, conforme já dito, pode até ter um tratamento diferenciado, em relação ao direito de propriedade dos não índios, com[o] querem os réus. Mas esse direito, que é material, ao ser deduzido, mesmo com essa particularidade, há que respeitar o direito de posse de quem quer que esteja ocupando o imóvel – a ser apurado nos termos da lei, sob pena de se instalar no País dois sistemas de proteção possessória: um, geral, para os não índios, nos termos do CPC, mas que cede em se tratando de esbulho praticado por índios; e outro, para os índios, que se vale do direito geral de proteção, em se tratando de esbulho possessório cometido contra áreas indígenas já demarcadas, mas que não respeita a posse alheia quando os esbulhadores são indígenas. Tudo a instalar um verdadeiro caos; com reflexos negativos para toda a sociedade e, inclusive, sobre os próprios índios, que acabam, também conforme já dito, granjeando ódio e ressentimentos, sendo que o ordenamento jurídico posto disponibiliza tratamento uniforme e adequado para essas situações.
Com efeito, o artigo 926 do Código de Processo Civil assegura ao possuidor o direito de ser reintegrado na posse em caso de esbulho, cabendo ao interessado provar, no termos do artigo 927, do mesmo codex, os seguintes requisitos: 1) a sua posse; 2) o esbulho praticado pelo réu; 3) a data desse esbulho; e, 4) a perda da posse, de sua parte. In casu, o autor logrou comprovar a posse do imóvel descrito na inicial, conforme se denota dos seguintes documentos: certidão do 1º Tabelionato de Registro de Imóveis e Anexos (fls. 16-31); declaração anual do produtor rural – DAP (f ls. 156-157); documentos de arrecadação de receitas federais – Darfs (fls. 158-163); declaração de ITR (fls. 164-170); e, conta de energia (fl. 171).
No mais, a Certidão da Matrícula nº. 17, juntada às fls. 16-31, fundamenta a plausibilidade do argumento de que a cadeia dominial do imóvel Fazenda Santa Vitória remonta aos anos de 1976; muito anterior, portanto, à data de 5 de outubro de 1988, fixada como marco temporal de ocupação, pela jurisprudência do STF, no conhecido caso Raposa Serra do Sol, tal como explicitado em trechos da ementa do acórdão na PET nº. 3388, Relator o Ministro Carlos Ayres Britto, DJ 25.9.2009:
“11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”.
Dos documentos de fls. 299-302, resta evidenciado o esbulho perpetrado por indígenas, e, bem assim, a data que tal fato ocorreu (28/11/2005). Esses documentos também demonstram a perda da posse pelo autor, bem como a tensão existente no local. Os réus e mesmo o MPF não negam esses fatos. Pelo contrário. Até os admitem, expressamente, na cota ministerial de fl. 343, e na manifestação da FUNAI às fls. 716-724.
Ao argumentar que os indígenas estariam ocupando em retomada, terras que a Constituição lhes assegura (fl. 340), o MPF está admitindo o exercício da autotutela. Então é de se perguntar se os chamados “fazendeiros” entenderem que terras no interior de alguma aldeia lhes pertencem, poderão eles, por força própria, retomar essas áreas? O parecer fala também que as áreas que estariam sendo retomadas pelos indígenas são “imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais fundamentais para o bem-estar da população indígena”, não havendo como não incidir no caso os mandamentos constitucionais previstos no artigo 231 da Constituição Federal de 1988 – fl. 337.
Esse dispositivo materializa norma de cunho programático, mais voltada para a Administração, e que não pode sobrepujar cânones jurídicos também expressos na Carta Política e consolidados na prática da vida diária, como o direito de propriedade e a proteção à posse. Se há necessidade de se ampliar as reservas indígenas, o Poder Executivo Federal deve agir: poderá, é claro, demarcar áreas indígenas ocupadas irregularmente por não índios, mas terá que fazê-lo dentro dos parâmetros da lei, respeitando eventuais direitos de propriedade e de posse já estabelecidos. Poderá, também, desapropriar as áreas necessárias para tanto, caso não as encontre pela sistemática anterior.
Aliás, nesse sentido, é de bom alvitre que os indígenas tenham em mente que a celeridade na resolução dos seus problemas fundiários depende muito mais do Poder Executivo Federal do que do Poder Judiciário. Se o Governo Federal resolver instaurar os processos demarcatórios que preencherem os requisitos legais e se mantiver dentro da lei, os processos de demarcação tenderão a andar de forma mais célere.
O fato de o processo administrativo de demarcação e ampliação da Terra Indígena Cachoeirinha estar em fase adiantada (publicação da Portaria Ministerial nº. 791, em 20/04/2007) não permite que os índios tomem a posse da área demarca[n]da, antes do seu desfecho, o que se dará apenas mediante decreto homologatório do Presidente da República, nos termos do artigo 5º, do Decreto nº. 1.775/96 . No presente caso, considerando que a questão foi levada a juízo, os indígenas deveriam aguardar uma decisão definitiva a respeito.
O Poder Judiciário não pode demarcar terras indígenas e nem adquirir terras particulares para ampliar aldeias – isso é tarefa da Administração. O que lhe cabe é dizer o Direito, nos casos em que é chamado a intervir. Mas isso deve se dar de modo uniforme e nos termos da legislação de regência, qualquer que seja a parte envolvida.
DISPOSITIVO:
Diante do que restou exposto, julgo procedente o pedido material da presente ação, para o fim de determinar a reintegração do autor na posse do imóvel rural denominado Fazenda Santa Vitória, de sua propriedade, descrito na inicial, e, bem assim, que os indígenas que ocupam esse imóvel, de lá se retirem com todos os seus pertences. O cumprimento do disposto na presente sentença deve se dar após a estabilização deste julgado.
Declaro resolvido o mérito do dissídio posto, nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil. Custas ex lege. Pelos princípios da sucumbência e da causalidade, condeno os réus ao pagamento dos honorários advocatícios, estes arbitrados em R$ 10.000,00 (dez mil reais) pro rata, nos termos do artigo 20, 4º, do CPC. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Campo Grande, 01 de outubro de 2014.
RENATO TONIASSO – Juiz Federal Titular
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