Por Luciano de Mello Silva
e Luciane Cougo dos Santos*
"Um roteiro de terror e medo, do qual não conseguiremos nos recuperar nunca! Ainda hoje não podemos comentar que desabamos em choro". Eis as nossas percepções em viagem feita aos Aldeamentos Tekoha Kurusu Amba, Pyelito kue e Takwara dos povos indígenas Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
Tal percepção de terror se deve ao fato da opressão e imenso controle que exercem os fazendeiros da região. Acompanhados de uma representante da Aty Guasu, a maior Assembleia Guarani e Kaiowá, os pesquisadores e documentaristas percorreram um roteiro que começou pelo acampamento Kurusu Ambá. Acompanhem leitura imperdível! (TA)
Num dia sombrio colocamos o pé na estrada para levar uma voz de apoio e documentar a luta de um povo que só exige o direito de permanecer na sua terra sagrada. No caminho chega a noticia que os acessos à terra sagrada de Kurusu Ambá estão bloqueados por fazendeiros e pistoleiros.
A tensão é tão grande que nem as equipes de Saúde estavam conseguindo levar assistência aos parentes. Segundo informações, havia uma criança doente e pessoas sem remédio para o tratamento de tuberculose.
Antes de sair do asfalto e entrar na estrada de terra estávamos acompanhados por cinco moradores da aldeia - quatro adultos e uma criança - em duas motos. Eles recuaram e não tentaram entrar no acesso, pois consideraram grande o risco. Segundo nformaram, dava para entrar até as três horas (15:00hrs) da tarde e sair era mais difícil.
Mesmo assim decidimos seguir. Por trilhas de barro a tensão ficou ainda maior e, por diversas vezes, a liderança da Aty Guasu sempre atenta a todos os movimentos falava: “Para! Não volta! Atenção tem carro de fazendeiro nos observando. “Cuidado, vai mais rápido!”. Assim ficamos por aproximadamente 2 horas até chegarmos no destino final.
Fotos _ Luciano Mello Silva |
Monitoramento
Várias caminhonetes eram vistas e nos seguiam a distância. Ao nos aproximarmos da Fazenda Modelo tivemos o primeiro sinal do monitoramento que fazem os fazendeiros: O carro e a placa foram fotografados por um jagunço da Fazenda.
Em seguida fomos recebidos pelos rezadores e pelo pessoal da aldeia com uma recepção calorosa. Entoaram cantos tradicionais de boas vindas acalmando a tensão da chegada. Uma sensação maravilhosa de estar juntos e acolhidos se mistura com uma dor enorme em ver o sofrimento de um povo cheio de sabedoria. Logo recebemos as bênçãos, rodeados pelas crianças, adultos e idosos com seus rostos pintados, de cocar na cabeça e maracás nas mãos.
Mas nossa tranquilidade não durou muito. Durante a recepção, estávamos dançando e cantando os cantos de boas vindas quando, repentinamente, uma pick up branca se aproximou e parou a uma certa distância, fotografando o grupo que dançava e cantava na estrada, em frente a área em que reinvindicam os Guarani e Kaiowa. Eles passaram bom tempo fotografando e quando eu tentava me aproximar para focar a câmera na placa do carro se afastavam para trás. Mesmo assim ainda conseguimos algumas imagens não muito claras da placa.
Seguimos para o acampamento. Ao chegarmos mais uma demorada e agradável sessão de reza e dança realizada pelos 4 rezadores de Kurusu Amba. E teve início uma série de depoimentos sobre a importância daquela terra para os Guarani e Kaiowa de Kurusu Ambá que afirmaram que não sairão de lá.
Durante o restante da tarde, em volta da fogueira, trocamos informações sobre as violências que a comunidade vem sofrendo ao longo dos últimos anos. Ficamos sabendo da história das famílias que ali viviam antes da chegada da Companhia Colonizadora Mate-Laranjeira. Naquela época, os Barões da companhia marcavam "seus índios" escravizados com seus sobrenomes, e assim, quando houve a criação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), estes sobrenomes foram utilizados para registro dos índígenas. A família Veron, do Tekoha Takwara, que foram escravizados por uma família de franceses e descendentes espanhóis da argentina.
Hoje os Kaiowá estão retornando a uma pequena parte do foi o território de Kurusu Ambá, apenas a área onde era a aldeia antiga e o cemitério. Eles abriram mão, assim, de todo território de caça, conforme lhes garante a constituição federal.
Pudemos confirmar a veracidade dos depoimentos, pois ao realizar uma vistoria na área, ambos, com conhecimento em arqueologia e arqueologia da paisagem pudemos constatar a existência de um cemitério antigo, com pelo menos 2 sepultamentos, provavelmente de caciques e vários marcadores de arqueologia da paisagem utilizados para marcar sepultamentos indígenas antigos.
Estamos manifestando neste texto nossa mais absoluta indignação com o que o ocorre em Kurusu Ambá, uma comunidade refém em sua própria terra, sitiada e cercada pelos latifundiários do local. Nenhuma viatura da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) é permitida chegar na localidade, nem as viaturas da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) levando cestas básicas, ou mesmo o ônibus escolar pode se aproximar da área.
Assassinatos
Conta Ana Terra (nome fictício), uma descende das famílias antigas de KaiowÁ desta localidade, que na primeira tentativa de retornar a terra sagrada Ortiz, que era liderança descendente dos cacique antigos, foi assassinado com seis tiros na boca.
Na segunda tentativa, já com a nova liderança Osvaldo à frente da comunidade também foi frustrada, Osvaldo foi brutalmente assassinato e seu corpo jogado na beira do asfalto para ser atropelado.
A terceira tentativa de retomada foi a mais brutal de todas violências ocorridas em Kurusu Ambá. Os Kaiowa desta vez estavam em seu Território Sagrado e no terceiro dia de permanência no local mais de 20 caminhonetes com pistoleiros chegaram na madrugada e começaram a atirar.
Eles invadiram o aldeamento à procura da liderança, a anciã, Nhandesy - rezadora Kaiowa - Xurite que fugia com seus 3 netos no colo. Ela foi cercada pelos pistoleiros e assassinada com 2 tiros de arma calibre 12 na frente dos netinhos com 8 meses, 2 e 4 anos, caindo de forma protetora às crianças. Morreu protegendo os netos.
Com a noite chegando, em volta da fogueira para espantar o frio, aprendemos e sentimos o convívio em coletivo. Olhando a beleza dos artesanatos e escutando as histórias. Entre uma história e outra veio a chuva, a tosse e o choro das crianças. Ao nosso lado, deitava o neto de Xurite que estava presente no dia de seu assassinato. Ele, uma criança já marcada pela injustiça e pela violência, em seu discurso, mostrava palavras duras, incomuns para uma criança de sua idade, como se fosse um adulto, mas ao mesmo tempo era uma criança assustado, cheia de esperança e anseios na vida.
Durante a tarde lhe ensinei a filmar e ele ficou feliz com a nova habilidade, cheio de sonhos de criança, mas com palavras de guerreiro lutador, marcas deixadas pelo pistoleiro em sua memória.
Jamais esqueceremos aqueles que caminham no local do firmamento na terra (Tradução de Kurusu Amba), e quando o sono se aproximava vinha uma voz alertando: “Levanta que tem carro se aproximando!"
Corri na esperança de ter como fugir para um mato próximo. Mas as luzes não se aproximavam e nem se afastavam... estavam apenas aterrorizando. Os carros avistados ao longe vinham e voltavam, porém não chegavam e nem iam embora.
Até que novamente: "Levanta que tem luz da fazenda mirando aqui!": Era três horas da manhã, ainda não havia dormido, pulei do colchonete assustado também com os latidos do cachorro, o terror estava recomeçando. Com luzes de selibrim, os pistoleiros cercavam e iluminavam pra cima do acampamento. As luzes do selibrim ficaram por toda noite passando por nossa volta, à distância. Não dormimos a noite inteira.
Pela manhã fomos a outra parte de Kurusu Ambá, onde fica a casa de reza e as ocas. Todas feitas nos moldes tradicionais, com lindas ocas, uma grande casa de reza perto da fonte sagrada e do rio. Bebemos água da fonte, nos lavamos no rio, e confraternizamos um pouco. Ali, nos despedimos de Kurusu Ambá, pois já se aproximava o horário em que os fazendeiros bloqueavam as entradas e precisávamos nos apressar ou não conseguiríamos sair nesse dia. Dois dias depois que saímos recebemos a notícia de que suas ocas haviam sido queimadas pelos fazendeiros. Não nos conformamos e nem nunca nos conformaremos.Luciano de Mello Silva é Oceanólogo e Luciane Cougo dos Santos Bióloga
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