Nas imediações da cidade de Naviraí, estado de Mato Grosso do Sul, há quase um mês a paz foi recuperada a duras penas pelo grupo Kaiowá e Guarani que retomou parte de seu território sagrado de Santiago Kue/Kurupi, mas a comunidade vem sendo ameaçada diariamente por jagunços e pistoleiros. Frente aos ataques, os indígenas prometem resistir a qualquer custo e afirmam que retomaram seu território definitivamente. Os Guarani-Kaiowá se negam a sofrer novamente o peso e o sofrimento dos acampamentos à margem das rodovias. Enquanto seguem paralisados os procedimentos demarcatórios das terras indígenas, ordens de despejo e práticas de violência por parte dos fazendeiros estão sendo exercidas como via de regra contra os povos originários ao longo de todo o estado.
Após 21 anos vivendo esmagados entre cercas, rodovias e às margens da BR-163, em acampamentos tão improvisados como as suas próprias vidas, cerca de 13 famílias, aproximadamente 130 pessoas, em sua maioria idosos e mulheres, cansaram de esperar os estudos de identificação e delimitação de seu território e ocuparam, no último dia 21 de setembro seu tekoha (a terra tradicional, o lugar onde se é). O fazendeiro da região ameaça frequentemente os indígenas e reitera que o grupo vai “sair por bem ou por mal” da sua dita propriedade. Os Kaiowá enfrentam como podem tanto os tiros e investidas dos jagunços, quanto às precárias condições de vida que levam em decorrência dos mesmos ataques. Sem segurança, a vida dos indígenas segue diariamente sendo ameaçada.
A história recente dos grupos indígenas que buscam regressar ao território de Santiago Kue/Kurupi é marcada por uma sequência de despejos e reocupações ininterruptas, onde a violência acometida contra os Kaiowá, que gerou inclusive a morte de seus antigos rezadores e lideranças, passa a ser superada a cada nova vez pela coragem e perseverança daqueles que vivem para regressar à sua terra. Entre meados da década de 1990 e 2000 esta já é a quarta retomada do povo Kaiowa ao seu território tradicional.
Segundo os indígenas, parte dos grupos e famílias que habitam o território da qual faz parte Santiago Kue/Kurupi foram expulsos em diferentes momentos da história, enquanto outros grupos jamais deixaram o solo da terra tradicional. Trata-se de uma terra onde muitos indígenas foram divididos e açoitados, em diferentes épocas, devido a ataques de homens armados passaram a constituir acampamentos palmilhando rodovias que circundam o seu grande território ancestral, sem jamais ter esquecido ou se desligado dele.
Levi Marques Pereira, antropólogo responsável pelos estudos de identificação e delimitação de Santiago Kue/Kurupi junto à Funai, define em documento encaminhado para o Ministério Público Federal de Dourados, ainda em meados de 2012, que na verdade existe um grande território indígena em questão que pode ser definido como “Tekoha Guasu”. Em linhas gerais, trata-se de muitos grupos e aldeias de um mesmo povo que vive e coexiste coletivamente ou separadamente, em um único território ancestral maior.
Segundo os estudos, fazem parte deste extenso território maior que tem sua extensão dividida entre o que hoje são os municípios de Juti e Naviraí, as aldeias de: Lechucha, Matula, São Lucas, Bonito, Santiago Kue/Kurupi, Kurupa’i, Mboka e Aldeinha. A comunidade de Aldeinha jamais saiu dos limites do Tekoha Guasu e ainda hoje resiste aos fazendeiros no interior de seu território. Os estudos da Funai acabaram por constatar de forma sólida o caráter de tradicionalidade da Tekoha Guasu, porém mesmo existindo inúmeras evidências de caráter histórico e etnográfico que comprovam a presença destes grupos junto a este território, os procedimentos demarcatórios seguem paralisados causando a estas comunidades o esbulho nos acampamentos ao longo das estradas.
Segundo Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre Ministério Publico Federal e a Funai em Brasília no ano de 2007, foi determinado ao órgão indigenista que até o prazo máximo de abril de 2010 fosse publicado no Diário Oficial da União, os resumos dos relatórios de identificação. Porém, até agora, quatro anos depois, os indígenas só receberam de reposta concreta a violência dos fazendeiros.
Violência esta, antiga conhecida do povo de Santiago Kue/Kurupi, que hoje é reforçada pelas políticas anti-indígenas levadas a cabo pelo governo federal e bancada ruralista. Em 2011, o Cimi já denunciava casos de tortura e agressões sofridas por estas comunidades indígenas. Leia aqui:
As constatações de Levi a respeito da Tekoha Guasu são confirmadas pelas vozes dos anciãos dos acampamentos existentes ao longo das rodovias, frutos doloridos das expulsões forçosas sofridas pelo povo Guarani-Kaiowá. Detentores de memória e guardiões da história de seu povo, os rezadores e rezadoras Kaiowá-Guarani quando perguntados pelo seu território ancestral passam a abrir com seus movimentos e palavras, lacunas no tempo e no espaço, redelimitando limites por eles a muito conhecidos. Com gestos precisos e firmes de seus braços já cansados, passam a desenhar no ar um mapa de um mundo de outrora que em suas profundas certezas e esperanças retornarão em breve a ser a “grande cidade dos Guarani”.
“O campo e o mato não são vazios, são nossas cidades, o branco apenas não vê assim”
Clarita Ramires, importante anciã de 72 anos, lembra que: “Santiago Kue sempre foi uma grande aldeia do povo Kaiowá, terra tradicional, com muita gente, mato e bicho. Lugares cheios de histórias”, a anciã ainda recorda a presença de seus ancestrais no território, “Todos os meus avós morreram lá. Quando ainda pequena percebi as primeiras movimentação dos fazendeiros. As cidades cresceram sobre os locais que para nós já existiam. Pouco antes de eu nascer meus pais contaram que a cidades dos não-indígenas ainda nem estava lá. Para nós, todo campo e cantinho de mato tem sua importância, conhecemos todos os cantos e eles têm seus motivos de existir. São nossos cemitérios, nossas igrejas, ruas e praças. O campo e o mato não são vazios, são nossas cidades, o branco apenas não vê assim.”
Partilhando as memórias sobre suas antigas moradas, outros indígenas, velhos e jovens lembram que até o nome dos locais indígenas foram “herdados” pelas cidades dos “brancos”. Naviraí, por exemplo, significa em Guarani algo próximo a um “lugar onde árvores roxas se estendiam junto a pequeno rio”.
Recentemente, junto com a expansão das fronteiras agrícolas e o desenvolvimento dos agrupamentos urbanos locais é que alguns grupos indígenas foram forçados a deixar suas aldeias. Sobre este processo, Clarita recorda que: “Apesar de alguns lugares e cemitérios terem sido destruídos e revirados pelos fazendeiros, nós nunca os esquecemos. Nós andávamos por todo este território. Antigamente os Guarani-Kaiowá não paravam em um só lugar, andávamos aqui, na cabeceira do rio São Lucas, em Kurupi e plantávamos muito. Por onde o Kaiowá passa, ele deixa seu roçado. A polícia e os pistoleiros expulsaram apenas alguns de nós. E quando éramos expulsos, as nossas casas eram queimadas e até os cachorros e pessoas eram mortas. Quando os Karaí vieram colonizar, construir a cidade, só tinha duas casas, mas eles expulsaram todos. Domiros e outros fazendeiros quase mataram a gente. Quando vieram nos escondemos, ficamos no mato observando os fazendeiros, mas sempre que era preciso correr deixávamos tudo para traz, nossas coisinhas, pertences, mas na verdade deixávamos mais que isso, cada vez que corríamos deixamos para traz nosso mundo. Mas deixávamos para buscar mais tarde.”
Solidônio Martinez hoje com 56 anos, expulso da terra ainda criança complementa: “Naquele tempo não tinha fazendeiros como hoje. Os indígenas trabalhavam nas roças das fazendas mais distantes, porém tinham seu tekoha. Mas isso era antigamente, na época de chegada dos fazendeiros recentes, a expulsão começou a ser na força, na marra. Fomos expulsos da cabeceira do São Lucas, mas não todos nós. Muitos de nós tínhamos roça e uma pequena criação de animais. Os fazendeiros tomaram tudo, marcavam nosso gado e nos expulsavam. Nós partíamos com as panelas velhas amarradas na cintura, indo trabalhar nas lavouras ao redor para sustentar os filhos. Os pais iam morrendo e a gente ia ficando por aí. Mas o lugar deles morrer não era para ser na estrada. Na cabeceira do São Lucas é que fica o nosso cemitério. Lembro que jogávamos o que podíamos em cima dos cavalos e saíamos sem destino, que nem cigano, fazendo comida onde dava quando dava, antes do escurecer”.
Para os indígenas, a Grande Tekoha Guasu, onde se encontra Santiago Kue/Kurupi se configura como algo muito maior do que apenas uma porção de terra. Nos cemitérios internos ao território estão, sobretudo, os restos dos rezadores e rezadoras que dão nome as localidades. Ressaltam os mais velhos que Santiago era um antigo rezador que faleceu no território conhecido como Kurupi, que é nome de outra rezadora já falecida.
Outro grave problema que terá de ser enfrentado pelos indígenas, certamente agravado pela não demarcação de seu território é a duplicação da BR-163
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