Por Eliane Brum, em Desacontecimentos
O segundo mandato nem começou e o governo Dilma Rousseff já escreve mais um capítulo de violência contra os povos indígenas, desta vez no rio Tapajós, na Amazônia. Depois de impor Belo Monte, que já considera fato consumado, o governo concentra seus esforços em esmagar toda a resistência contra as hidrelétricas de São Luiz do Tapajós e Jatobá, no município de Itaituba, no oeste do Pará. E, como já fez em Belo Monte, atropelando também a Constituição e qualquer princípio de respeito aos direitos e à dignidade humana. Um vídeo gravado pelos Munduruku, etnia que vive na área afetada pelas usinas, mostra a então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Maria Augusta Assirati, afirmando a lideranças indígenas, durante uma reunião no mês de setembro, que o relatório da demarcação da sua terra ancestral não tinha sido publicado ainda porque estava no caminho das barragens. “Eu tô em débito com vocês, sim, vocês têm toda razão, mas eu acredito, e quero acreditar, porque o dia que eu não acreditar eu não tenho que estar mais aqui falando com vocês”, afirmou Maria Augusta. Nove dias depois, ela deixou a presidência da Funai.
A Funai não publicou o relatório que comprova a terra indígena Munduruku Sawré Muybu porque, segundo a Constituição, os povos indígenas só podem ser retirados de sua terra em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do país. E isso só após deliberação do Congresso e garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. Assim, ainda que o governo federal, quando se trata de impor seu projeto de desenvolvimento e o interesse das grandes empreiteiras, não costume demonstrar qualquer prurido antes de rasgar a Constituição, com a terra Sawré Muybu demarcada, ficaria bem mais complicado, porque ela é atingida diretamente por São Luiz do Tapajós. E o escândalo internacional teria proporções muito maiores.
Para evitar riscos e atrasos na sua sanha de barrar o Tapajós com obras megalômanas, o processo de demarcação foi paralisado. No vídeo, Maria Augusta deixa bem claro os motivos e as pressões sofridas pela Funai. Em maio deste ano, o Ministério Público Federal entrou com uma ação exigindo a publicação do relatório. No final de outubro, a Justiça Federal, na vara de Itaituba, deu uma liminar determinando a publicação do documento em 15 dias. Curiosamente, a Funai, órgão que por lei deveria defender os interesses indígenas, entrou com agravo de instrumento, pedindo a suspensão da liminar para não publicar o relatório pronto há mais de um ano. E a Justiça Federal, em Brasília, acatou o pedido, liberando a Funai para continuar sentada em cima do futuro dos Munduruku.
Ameaçados de ter sua terra ancestral alagada e traídos pela Funai, guerreiros Munduruku protagonizam, desde o final de outubro, uma cena impressionante: a autodemarcação do seu território (veja aqui)
Está em curso mais um capítulo sombrio da história do Brasil. O mais nocivo governo para os povos indígenas e para a Amazônia desde a ditadura militar começa a escrever mais um capítulo vergonhoso do seu legado. E tudo isso acontece, neste exato momento, sem que parte da imprensa brasileira dê qualquer destaque, sem que a maioria da população brasileira pareça se importar. Nesse ritmo, quando os brasileiros acordarem, não só estarão sem água nas torneiras, como não haverá um rio vivo e uma árvore em pé na mais mítica floresta tropical do planeta.
Aqui, a transcrição das falas do vídeo da reunião entre Munduruku, Funai e outros membros do governo federal:
Brasília, 17/09/2014
Reunião da Funai com os Munduruku e a presidente do órgão, Maria Augusta Assirati
Também estavam presentes:
Nilton Tubino, secretário geral da Presidência da República
Celso Knijnik, do Ministério do Planejamento
Márcio Lopes de Freitas Filho, do Ministério da Justiça
(Imagens gravadas por Deusiano Saw Munduruku)
MARIA AUGUSTA ASSIRATI, PRESIDENTE DA FUNAI:“Então, gente, aquela vez em que nós conversamos aqui, né, vocês estiveram aqui no final do ano passado, a gente teve uma reunião longa, né? Colocando para vocês que naquele momento o relatório ainda precisava de alguns ajustes finais, para a gente poder concluir, né? Explicamos para vocês quais eram esses pontos ainda, né? E como é que era o andamento do processo aqui dentro, né. Que o grupo, a coordenadora do GTI, os coordenadores do GTI iam concluir a sua parte, mandavam para a coordenadora de identificação e depois isso ia para a diretoria e depois viria para a presidência para se manifestar, publicar o relatório ou, enfim, decidir sobre aquela proposta, né? E a gente combinou com vocês que, falamos para vocês que em abril o relatório estaria pronto, né? Foi essa a informação que naquele momento eu coloquei para vocês, fui eu mesma que disse isso, né? E de fato a gente conseguiu concluir nosso relatório nesse período. Quando foi em abril, o diretor me mandou o processo. O processo tá hoje comigo, tá na minha mesa, lá, pronto para ser deliberado.Mas quando a gente conseguiu concluir o relatório, existia um conjunto de questões que estavam sendo decididas na região que fizeram com que a gente precisasse discutir o relatório não só no âmbito da Funai e vocês, povo Munduruku, mas outros órgãos do governo passaram a também discutir essa proposta de relatório, discutir a situação fundiária da região. Por quê?Porque vocês sabem que ali tem uma proposta de se realizar um empreendimento hidrelétrico, né, uma hidrelétrica ali naquela região, que vai contar com uma barragem pra geração de energia e essa barragem tá muito próxima da terra de vocês. E quando a gente concluiu o relatório surgiram dúvidas se essa área da barragem, se esse lago que essa barragem da hidrelétrica vai formar, vai ter uma interferência na terra indígena de vocês. Na área de vocês, na vida de vocês, né? Então começou-se a estudar isso. A reunir elementos para que se tivesse uma definição realmente concreta de que essa barragem, esse lago não vai causar um prejuízo pra vida do povo que tá vivendo ali, pra essa terra indígena.
(corte)
O empreendimento tem uma importância, porque vai gerar energia para um conjunto grande de pessoas no país, né, enfim, e também, sobretudo do ponto de vista da nossa atuação da Funai, né, que é o nosso papel, do órgão indigenista, né, a gente acha fundamental que o território de vocês também esteja garantido, né? Principalmente, né, porque, como vocês colocaram, aquela região já tá tendo pressão madeireira, garimpeira, de uma série de outros elementos que tão em volta da onde vocês moram, que o empreendimento não pode ser mais um fator de dificuldade para a vida de vocês. Então a gente tem que garantir o território, a gente tem que garantir que vocês tenham proteção suficiente para viver tranquilos, né? Pra desenvolver o modo de vida tradicional de vocês naquela região, né, que é uma região que historicamente, né, vocês vivem. O povo Munduruku ele é originalmente daquela região, né. Isso a gente sabe, isso nosso estudo, ele comprova, então trata-se de uma ocupação tradicional. Então, e a gente tem buscado defender essa posição, de que é possível ter essa compatibilização. E por isso que a gente não conseguiu até hoje publicar. Por quê? Porque a gente aguarda esses elementos técnicos, para poder realizar essa compatibilização: permitir que o setor elétrico faça seu empreendimento, a barragem, e com isso beneficie um número grande de pessoas no país, e permitir que a terra de vocês seja reconhecida, e que vocês tenham o direito de vocês assegurado, e que a gente cumpra o nosso dever, como Estado brasileiro e como Fundação Nacional do Índio, que pertence ao governo, que pertence a um órgão de Estado, é um órgão público de Estado. Por isso a gente ainda não conseguiu publicar. Essa notícia ela é ruim ainda. Ela é uma notícia que não é ainda positiva, não é a que a gente gostaria de dar.”
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ROSENINHO SAW, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PAHYHYP
“Se você tá na Funai, você tem de defender o interesse nosso lá, não é? Então, o povo lá tá sofrendo. O povo lá tá sofrendo. Porque a gente veio aqui foi pra tratar de terra, tratar só da demarcação, né, porque a prioridade que foi fechada aqui, naquela reunião passada, foi a aldeia de lá, que é a Sawré Muybu, né, mas você disse que ia ver essa possibilidade, prometeu, mas não saiu, né? Agora, então, o meu pensamento: se você não quer trabalhar na Funai, eu entregaria o cargo. Você não tem interesse de defender a nossa causa.
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A prioridade é gerar energia para o Brasil, né? (…) Barragem acaba com todo mundo, porque o que é que vem depois da barragem? Mineração. Para mim, isso não é projeto pro Brasil, não. Porque até mesmo nós não somos brasileiros, não. O Brasil foi invadido. Nós morava aqui há muito tempo. Pra que tanta energia? Eu sei que não vai beneficiar o Brasil, não. Ninguém. Então essa é a revolta das lideranças. Por isso que foi priorizada a questão da demarcação.”
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DEPOIMENTO DE UMA INDÍGENA
“Porque nós, quando fala que vai fazer, a gente nunca esquece, né, a gente fica esperando, porque a pessoa se compromete de fazer as coisas. A gente ficou aguardando até agora, até agora ainda não saiu esse relatório. Não foi publicado. Então, por isso que a gente tá aqui. Como a gente fala, aqui, não é fácil a gente chegar aqui, é um sofrimento grande. Nós mesmos saímos de Jacareacanga passando fome até aqui em Brasília. Hoje que o pessoal se coisaram para tratar de comer. A gente tá aqui porque a gente tem que defender. A gente tá aqui pedindo não é as terras dos outros. A gente tá aqui defendendo o que é da gente, né? Não é da outra pessoa. Não é dos pariwat (não indígena ou branco). É o que é nosso, onde vivemos, onde nossos antepassados deixaram para nós.”
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DEPOIMENTO DE OUTRO INDÍGENA (camisa xadrez)
“Onde que a barragem vai interferir na demarcação da terra indígena, né? A barragem vai impactar, assim, de qualquer jeito, sabe? Porque se não quisesse que o povo indígena sofresse, eu acho que o governo não ia fazer empreendimento no Tapajós, não.”
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DEPOIMENTO DE OUTRO INDÍGENA (em pé, no vídeo)
“Dá para ver que o governo, (tanto) quanto a Funai, não tem nenhum compromisso, nenhum, com os indígenas, em trabalhar com os indígenas. Eu não sei se esse relatório tá andando em passo lento, igual passo de jabuti, ou então estão aproveitando que corra mais um empreendimento … (…). A gente fica até assim, até, muito, com raiva, né? Que você falou uma coisa e depois não cumpriu, né. Então a senhora não está levando as coisas a sério. Está fazendo tipo um como o pessoal fala, desculpa a expressão, mas, como um papel de moleque, né?”
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MARIA AUGUSTA
“Eu acho que essa terra indígena já deveria estar demarcada, já deveria ter sido o relatório publicado, mas que isso não depende da vontade de uma só pessoa, de um só órgão. Isso é um conjunto de fatores que define essas questões, que não sou só eu que posso ditar quais são os interesses prioritários do governo. Eu pertenço e represento um órgão do governo. Mas não a sua totalidade. Eu acho que vocês estão certos de me cobrar. Eu acho que vocês têm toda razão quando dizem que eu estou em débito com vocês. Eu estou e queria aqui reconhecer isso. Mas também queria que vocês soubessem que não é porque eu não tenho compromisso com os povos indígenas, mas é porque eu tenho um limite para minha atuação dentro do governo.
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O empreendimento, vocês têm razão, que teve um avanço, algumas coisas aconteceram, chegou a um ponto de terem algumas conclusões em relação ao empreendimento, mas ele também ainda não se concretizou.
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O que que é o correto? É justamente isso que você tá colocando, que se cumpra a Constituição, porque eu, no meu papel de governo, eu não defino, e não posso definir, nem sou chamada para a discussão, se a energia vai ser hidrelétrica, solar, eólica, onde vai ter hidrelétrica. Isso a gente não entra nessa questão, mas quando se trata de falar da questão da ocupação tradicional, dos direitos de vocês, da relação com os povos indígenas, aí sim a minha obrigação é dizer qual é a situação que vocês estão vivendo.
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Eu tô em débito com vocês, sim, vocês têm toda razão, mas eu acredito, e quero acreditar, porque o dia que eu não acreditar eu não tenho que estar mais aqui falando com vocês. Eu acredito ainda que existe um caminho, uma possibilidade, de a gente conseguir viabilizar a garantia territorial para vocês lá. Não só em Sawré Muybu, mas nas outras áreas que são o grande território Munduruku, que ocupam e habitam há muitos e muitos e muitos anos toda a bacia do rio Tapajós. É uma tarefa muito difícil, minha gente.É uma tarefa muito difícil, porque o governo, também, e isso vocês sabem, ele é composto por um conjunto de órgãos que às vezes têm interesses diferentes entre si e a gente precisa estar o tempo inteiro fazendo esse diálogo, levando e apresentando as demandas de vocês, as necessidades de vocês. Esse é o nosso papel.
Essas preocupações, que vocês colocaram aqui, hoje, elas têm sido as preocupações que a gente leva para essas discussões, onde têm esse conjunto grande de órgãos. Mas não somos nós que definimos. Isso é uma estratégia de governo. O nosso papel é defender os direitos de vocês, mas têm órgãos dentro do governo que têm como prioridade, sim, construir a hidrelétrica.
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Nós erramos, né, eu acho que a gente realmente deveria ter procurado esse contato antes, lá atrás, em abril, para dizer quais foram os problemas que surgiram. Não fizemos isso. Então eu estou aqui pedindo desculpas para vocês, né, reconhecendo que isso foi uma falha nossa, da Funai sede, aqui, sobretudo.
Então vamos marcar final de outubro, gente, para a gente dar essa avaliação para vocês, do que é que a gente acha que vai ser esse impacto, porque isso tá diretamente relacionado à questão da demarcação. Embora a gente não atrele às coisas, na prática é difícil para nós, separar. A gente daqui um mês, aqui no final de outubro, voltaria a conversar com essa análise preliminar.”
Maria Augusta Assirati pediu demissão no dia 26 de setembro de 2014, nove dias depois da reunião, sem assinar o relatório da Terra Indígena Sawré Muybu.