“Querida Grande Imprensa, eu queria lembrá-la de outras pautas indígenas esquecidas; crianças mortas, povos confinados, apartheid; nunca será tarde”
Alceu Luís Castilho*
Querida Grande Imprensa,
Vejo que, finalmente, você percebeu que um bebê de 2 anos foi degolado em Santa Catarina. O Estadão até publicou um texto, nesta quinta-feira, lá nos confins de uma página interna, três dias após a jornalista Eliane Brum acabar de escancarar o caso, em sua coluna no El País Brasil
– e uma semana após identificarmos, na mídia contra-hegemônica, a
omissão dos grandes jornais. Expus essa angústia, no dia 31 de dezembro:
Eu, leitor, à espera de notícias sobre um bebê indígena assassinado. Pena que O Globo não deu as matérias do G1 na edição impressa. A Folha a gente segue aguardando.
E nem era tão longe, né? Foi ali, em Santa Catarina. Mas que bom que
deu tempo. Nunca será tarde demais. Aproveitando, então, o interesse
demonstrado pela morte de Vítor Pinto, e supondo que não seja ocasional a
preocupação com o bebê Kaingang, sugiro que a Senhora coloque em pauta
outros exemplos do massacre sistemático praticado contra os povos
indígenas no país. Um caso antigo, ainda mais antigo que a história de
Estadão, Folha, O Globo – todas as suas histórias somadas. É a história
de um genocídio – de cabeças arrancadas, etnias inteiras dizimadas ou
extintas, confinadas, espoliadas.
Por exemplo, o massacre dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Estão para ser despejados 4 mil indígenas
na região de Japorã. Eu adoraria ir ao local, mas não tenho recursos.
Vocês, que têm encolhido o tamanho dos jornais sem reduzir o preço,
talvez ainda tenham algum troco para enviar bons repórteres (sei que
ainda os têm) à região, para contar a história completa – antes que
famílias inteiras sejam mais uma vez humilhadas. Mas fiquem um bom
tempo: tem muita aldeia para visitar. O massacre dos Guarani Kaiowá é o
maior da América do Sul, ao lado dos Mapuche, no Chile. Várias
lideranças indígenas foram assassinadas. Crianças são discriminadas.
E não é o único caso, sabiam? Há tantos outros pelo país. Lembro-me
que a Folha esteve em Humaitá (AM), há dois anos, cobrindo o apartheid contra os Tenharim,
na Transamazônica, região do Rio Madeira. Bom, sei que não foi essa a
abordagem do jornal, mas de fato o que acontece por lá é um apartheid.
Poderiam enviar novamente um repórter, questionar o fato de não terem
reconstruído a sede da Funai, ou da Secretaria de Saúde Indígena –
incendiadas por uma população furiosa, instigada por comerciantes,
fazendeiros e madeireiros. Carros e barcos foram queimados. E a
população indígena ainda vive com medo.
Acreditam que não se trata do único caso de apartheid? Esse caso
mesmo de Santa Catarina decorre de uma segregação. Um colunista gaúcho
chegou a ser condenado, chamou os Kaingang de “sujos, ignorantes e vagabundos“.
Há tantos outros casos, de norte a sul do país, que clamam por ser
relatados para um grande público. No nordeste de Minas Gerais, membros
da etnia Maxakali são espancados e mortos. O SBT fez uma matéria, em
agosto, mas não precisam se acanhar. A história ainda existe e sempre
pode ser contada de outra forma: Índios são vítimas de agressão e assassinato no nordeste de Minas Gerais.
E tem os Tupinambá de Olivença, na Bahia, os Saterê-Mawé no Amazonas, povos diversos
em Santarém, no Pará. Seria exaustivo enumerar todos os casos. Estamos
diante de um fenômeno que não pode motivar apenas coberturas episódicas,
somente quando acontece algo mais grave – e nem isso tem ocorrido.
Trata-se de algo sistemático. Que poderia motivar editoriais frequentes,
menção pelos colunistas mais importantes, reportagens de fôlego,
acompanhamento regular dos conflitos e das iniciativas da Funai, do
Ministério Público, das organizações indigenistas. Mas não somente uma
vez por ano, para ganhar prêmios de jornalismo, vamos combinar?
RACISMO E GENOCÍDIO
Sabe, Grande Imprensa. Não é por fúria revolucionária que pedimos
isso. É pela preservação de direitos elementares, consagrados no
pós-guerra por países capitalistas. Pelo próprio sistema. Pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não sei se recordam, mas
promulgamos também uma Constituição, em 1988. Não é um documento
incendiário. É bastante tímido em relação à nossa desigualdade no campo e
à nossa dívida histórica para com camponeses, quilombolas, povos
tradicionais e originários. Mas estão garantidos lá os direitos
indígenas. O direito à demarcação de terras – terras deles. Para não
falar no direito à vida.
E os temas estão relacionados, sabiam? Acho que já falei do Mato
Grosso do Sul. Lá morrem muitas crianças por desnutrição (fome),
atropelamentos ou falta de atendimento médico. Ontem mesmo – 6 de
janeiro de 2016 – morreu um bebê de 1 ano em Coronel Sapucaia: Sem ambulância, criança indígena de um ano morre em acampamento.
Seria inimaginável um espaço nos jornais, um canto de página que fosse?
Só provisoriamente, até fazerem uma reportagem de maior fôlego sobre o
tema. Quem sabe com chamada de capa. A mortalidade infantil indígena tem
aumentado no Brasil. Não é constrangedor o veículo mais atento ao tema
ser o espanhol El País?
Sobre o bebê degolado em Imbituba, espero também que a Senhora cumpra
sua função civilizatória, tomando todos os cuidados para que não se
linche midiaticamente o assassino confesso.
Os direitos do rapaz precisam ser garantidos, pela polícia e pela
Justiça, pois são os direitos de todos nós. Ele parece ser uma pessoa
confusa. E é claro que precisa ser punido com rigor. Agora, não foi ele
quem criou esse ódio. Sua condenação não purgará todas as culpas do
Brasil e do Ocidente em relação aos povos indígenas. A Matheus apenas o
que é de Matheus.
Como lembrou ontem a mãe do Vítor, foi por algum motivo que ele
escolheu um bebê indígena para matar. E não por uma força externa, pelo
satanismo, como já querem nos fazer crer. Escolheu porque a cultura
(local, regional, nacional) é a do racismo. Essa é a palavra correta. E
as pessoas que perpetuam o racismo contra indígenas não são exatamente
confusas. Sabem muito bem o que estão fazendo. Ela fazem parte do poder
político, do poder econômico. São proprietárias de terras, boa parte
delas usurpada. São deputados, senadores. Não se esqueça delas, sim?
Atenciosamente,
Um jornalista.
Um jornalista.
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