20 de janeiro de 2015

Le Monde Diplomatique Brasil entrevista realizadora de Tupinambá - O retorno da terra


Documentário: Tupinambá - O retorno da Terra
O Diplô Brasil conversou com a antropóloga e realizadora, Daniela Alarcon, sobre a realidade do povo Tupinambá e o lançamento de seu filme. Ver AQUI!

A heroica luta do povo Tupinambá para reconquistar seu território no sul da Bahia está para ganhar um registro audiovisual. Em fase final de produção, a iniciativa da antropóloga Daniela Alarcon, da cinegrafista e documentarista Fernanda Ligabue e da ONG Repórter Brasil traz uma denúncia das violências de fazendeiros e agentes do Estado brasileiro.
Para sua finalização, os realizadores abririam uma conta para colaboração no site Catarse http://catarse.me/pt/tupinamba.
Reunindo depoimentos e sequências colhidas em maio de 2014 na aldeia Serra do Padeiro, no interior da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, e imagens de arquivo, o documentário apresenta a disputa fundiária em curso, recuperando elementos da história de expropriação e resistência dos Tupinambá, que se entrelaça ao avanço da fronteira agrícola, a partir do final do século XIX, e à ascensão dos coronéis de cacau.
O Le Monde Diplomatique Brasil conversou com Alarcon sobre o projeto e a realidade vivida pelo povo Tupinambá
 
Le Monde Diplomatique  - Qual a sua relação com o a luta do povo Tupinambá?
Daniela Alarcon - Desde 2010, pesquiso junto ao povo Tupinambá, mais especificamente, junto aos indígenas que vivem na aldeia Serra do Padeiro, no extremo oeste da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Em 2012, morei lá durante quatro meses – visitei todos os sítios em posse de indígenas e fazendas retomadas nessa aldeia, e percorri menos detidamente as demais localidades da terra indígena. Em abril de 2013 defendi minha dissertação de mestrado em Ciências Sociais, junto à Universidade de Brasília (UnB): ¹O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. Depois disso, voltei à aldeia algumas vezes, para apresentar os resultados da pesquisa, ministrar uma oficina de formação para os professores e professoras da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (EEITSP) e, mais recentemente, para gravar o documentário que estamos produzindo. Agora em 2015, ingressei no doutorado, em Antropologia Social, no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ) e seguirei pesquisando com os Tupinambá.
Eu concebo minha pesquisa como necessariamente entrelaçada aos projetos políticos do povo Tupinambá. Em momentos de conflito agudo – em que era preciso contribuir para a produção de peças judiciais, denunciar publicamente violações sofridas por eles ou assessorá-los com documentos que buscavam dar a conhecer suas posições –, procurei empregar tanto minha formação em Antropologia, como em Jornalismo, esta última pela Universidade de São Paulo (USP). Quando iniciei a pesquisa de mestrado, o processo de criminalização dos Tupinambá, que vinha se intensificando desde 2008, estava no auge. Em 2004, os Tupinambá haviam começado a retomar fazendas, todas situadas no território que ocupavam tradicionalmente, e a grande imprensa, o Judiciário e a Polícia Federal (PF), assim como os próprios fazendeiros, responderam com virulência. Eu avaliava que, nesse quadro, circular informação de qualidade para além dos muros acadêmicos era estratégico. Então, além de participar de congressos e escrever artigos para periódicos, passei a produzir também reportagens e artigos para revistas e sites, sempre que havia oportunidade.
Em meados de 2013, assistimos a uma nova ofensiva contra os Tupinambá. Em resposta, desatamos uma campanha, articulada por 18 pesquisadores e pesquisadoras, de diversas áreas e instituições acadêmicas, que haviam trabalhado ou vinham trabalhando com os Tupinambá. Nosso objetivo era pressionar para que o Estado concluísse, com urgência, o processo de demarcação da terra indígenaTupinambá de Olivença, garantindo, assim, os direitos de índios e não-índios. Infelizmente, não se avançou um milímetro desde então: continuamos esperando que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assine a portaria declaratória da terra indígena.
 
Como foi a decisão de fazer o filme? E qual objetivo da produção?
No marco da campanha pela demarcação da terra indígenaTupinambá de Olivença, já vínhamos discutindo sobre a necessidade de fazer com que mais gente conhecesse a situação dos Tupinambá e as violações cometidas pelo Estado brasileiro. Ainda em 2013, o jornalista Leonardo Sakamoto, da Repórter Brasil, me perguntou o que eu pensava sobre a possibilidade de fazer um filme sobre os Tupinambá. A ideia me pareceu muito conveniente e interessante, mas ficou adormecida algum tempo. Em janeiro de 2014, agentes da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) e da PF instalaram uma base policial na Serra do Padeiro, onde já atuavam desde agosto do ano anterior. No mês seguinte, cerca de 500 soldados do Exército deslocaram-se à região, em uma operação de garantia da lei e da ordem, solicitada pelo então governador da Bahia, Jacques Wagner (PT), e determinada pela presidenta Dilma Rousseff. A aberração representada pela ocupação militar permanente de um território indígena já reconhecido pelo Estado levou-nos a intensificar novamente as denúncias e voltamos à proposta do documentário.
Convidamos a cinegrafista e documentarista Fernanda Ligabue para participar. Ela estava atuando em projetos muito interessantes e dirigira, não havia muito tempo, um documentário para A Pública sobre o complexo hidrelétrico do Tapajós, no Pará. Então, nós duas viajamos para a Serra do Padeiro para gravar alguns depoimentos dos Tupinambá sobre a luta pela terra e sequências do cotidiano na aldeia, e também para registrar a presença militar no território. Nessa fase inicial, fomos apoiadas financeiramente pela Repórter Brasil. Agora, para finalizar o processo de edição, criamos uma campanha de financiamento coletivo, que tem servido também para difundir o caso tupinambá.
Nosso objetivo mais imediato com o filme é fazer pressão pela demarcação da terra indígena Tupinambá de Olivença. Mas também nos interessa apresentar alguns elementos da história de expropriação e resistência vivida pelos Tupinambá; de sua cosmologia e dos sentidos que eles conferem ao território; do processo demarcatório e do conflito fundiário, sublinhando, de um lado, a intensa violência que tem se abatido sobre os indígenas e, de outro, a vigorosa recuperação territorial que eles vêm levando a cabo.
 
Quais são os interesses e obstáculos que impedem hoje o reconhecimento da terra Tupinambá?
O território tupinambá se estende por uma região historicamente associada à agricultura e ao turismo. Já na década de 1920, membros das elites locais estavam mobilizados para transformar o que designavam como um "aldeamento de índios mansos" – isto é, Olivença, antiga sede do aldeamento jesuítico de Nossa Senhora da Escada, e hoje distrito de Ilhéus – em uma "estação balneária", cercada por propriedades agrícolas em posse de não-índios. A diversidade de paisagens da terra indígena, recoberta por porções de Mata Atlântica ainda relativamente conservadas, faz com que ela seja, ainda hoje, objeto de interesse do setor hoteleiro e imobiliário. No extremo sul da terra indígena, por exemplo, funciona um hotel de luxo, instalado à beira da Lagoa do Mabaço, que tem entre seus sócios o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga Neto. Conforme o site do hotel, são oferecidos aos hóspedes 7 km de praia deserta e uma “lagoa privativa”, cercada por “mata intocada”. Em pleno território tupinambá! O entorno da lagoa, como indico com mais detalhes na dissertação de mestrado, é habitado pelos indígenas há gerações.
Quando fomos à região gravar o documentário, em nossa curta passagem por Ilhéus, recebemos dois folhetos de propaganda de empreendimentos imobiliários em construção no sul do município, já próximos a um dos limites da terra indígena. Ambos se situariam, conforme as propagandas, no “eixo de maior expansão de Ilhéus”, na parte da cidade que se abre para o “futuro”. Ainda que esses empreendimentos em particular não se localizassem no interior da terra indígena, eles apontavam, de certa forma, as pretensões do mercado imobiliário de se expandir naquela direção. Vale notar também que o aquecimento da construção civil, além de ser um fator de pressão em si, tem levado à intensificação da exploração de jazidas de areia no interior da terra indígena, na região costeira. Quando eu estava em campo, um desses areais, embargado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), continuava sendo explorado, por força de uma liminar.
O processo demarcatório também tem sido marcado pela intensa movimentação de pretensos proprietários de áreas no interior da terra indígena e do Sindicato Rural de Ilhéus. É verdade que o poder econômico dos cacauicultores decaiu significativamente a partir do final da década de 1980, em decorrência dos efeitos da diminuição do preço do cacau no mercado internacional (associada à elevação da oferta mundial do produto), de condições climáticas desfavoráveis e da vassoura-de-bruxa, praga que se alastrou nas plantações. Porém, parte desses fazendeiros e descendentes dos antigos coronéis de cacau mantém lugares de destaque na sociedade regional e detém um poder político considerável. A ocupação de cargos do poder público por representantes desses grupos tem levado a situações bizarras. Em uma matéria veiculada pela Bandeirantes, ano passado, o secretário de Turismo de Ilhéus, Alcides Kruschewsky, deu uma declaração contrária à demarcação. Faltou apenas a reportagem informar que Kruschewsky é pretenso proprietário de um terreno em Olivença.
Talvez o mais trágico seja que, à custa de muita desinformação, fazendeiros e comerciantes locais têm atraído alguns sitiantes e posseiros não-indígenas para o seu lado. A situação legal desses grupos em face da demarcação é diferente, já que os dois últimos, em sua maioria, têm perfil de clientes da reforma agrária, devendo ser reassentados. Além disso, a estratégia de recuperação territorial adotada na Serra do Padeiro passa por não retomar as terras dos “pequenos”. Porém, a relativa ausência do poder público, principalmente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e a falta de esforços concertados com a Funai para prestar esclarecimentos a esses não-indígenas sobre os seus direitos levaram a essa insólita composição de forças. Em campo, reuni relatos dando conta de que até relações de vizinhança e compadrio entre sitiantes ou posseiros e indígenas haviam se rompido durante o processo demarcatório.
Vale notar ainda que a região é também alvo de grandes projetos de infraestrutura, que contam com investimentos públicos e privados, e que podem impactar o território indígena. Um dos principais é a construção do Porto Sul, em Ilhéus, que prevê um terminal de uso privativo da Bahia Mineração (Bamin), pertencente à Eurasian Natural Resources Corporation (ENRC), empresa de origem cazaque sediada em Londres, interessada na exploração de uma jazida de ferro em Caetité, oeste baiano. O porto é concebido como o ponto final da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), que deve ligar o município de Figueirópolis, no Tocantins, a Ilhéus, e é uma das prioridades do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na Bahia. Conforme o projeto, o megaporto servirá para exportar produtos da mineração e do agronegócio.
Não que esses projetos constituam obstáculos diretos à demarcação. Como temos visto em outras regiões, o governo federal não demonstra constrangimento ao avançar na implementação de obras de “desenvolvimento” que impactam áreas tradicionalmente ocupadas – mesmo quando se trata de terras indígenas homologadas – sem consultar os povos indígenas e comunidades tradicionais atingidos, como determinam a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Constituição Federal. Mas fica claro que o projeto governamental de “desenvolvimento” do sul da Bahia está alinhado ao grande capital, e não aos povos e comunidades tradicionais ou aos sem-terra, por exemplo. A proteção de territórios de ocupação tradicional e a reforma agrária não são prioridades.
Como se vê, são vários interesses em jogo: proprietários de resorts, construtoras, fazendeiros, empresas que exploram areais, indivíduos que têm casas de veraneio em Olivença, posseiros e sitiantes. Em 2009, foram apresentadas à Fundação Nacional do Índio (Funai) cinco manifestações solicitando a anulação do relatório de identificação, a redução da terra indígena e mesmo a anulação do processo e seu arquivamento. Os autores das contestações eram uma entidade de representação de produtores rurais de Ilhéus, uma empresa do setor hoteleiro, um grupo composto por 485 pretensos proprietários de terras, o município de Ilhéus e a prefeitura de Una. É importante notar que todas as contestações foram indeferidas.
Assim, eu entendo que se formou uma complexa frente contra a demarcação, isto é, uma coligação heterogênea e temporária, reunindo setores que, muitas vezes, não guardam entre si qualquer outro ponto de conexão além de um inimigo em comum: a terra Tupinambá de Olivença. O que falta, nesse quadro, é que o governo federal cumpra sua obrigação constitucional de garantir os direitos territoriais indígenas, a despeito de qualquer pressão.
 
Você dar mais detalhes sobre as violências contra os Tupinambá durante seu período de pesquisa?
Quando cheguei à Serra do Padeiro, os indígenas ainda estavam fortemente impactados por uma série de ataques perpetrados pela Polícia Federal de 2008 a 2010. No marco de uma operação significativamente denominada "Terra firme", voltada para o cumprimento de liminares de reintegração de posse de áreas retomadas, expedidas em favor de fazendeiros, em outubro de 2008, agentes à paisana se dirigiram à Serra do Padeiro para mapear a área onde ocorreriam algumas das reintegrações. Balas de borracha foram disparadas contra três indígenas que os interpelaram – como nem os policiais nem o carro estavam identificados, os índios temiam se tratar de pistoleiros. Na ocasião, um indígena que tinha 75 anos de idade foi atingido no peito, a curta distância, e teve de ser hospitalizado. No dia seguinte, indígenas foram violentamente retirados da aldeia Tucum, região litorânea da terra indígena. Em seguida, teve lugar mais uma ação na Serra do Padeiro: um sítio em posse de indígenas foi invadido por agentes armados, sendo as viaturas acompanhadas por helicópteros e até rabecões.
O sítio onde ocorreu o ataque funciona como o centro da aldeia – é ali que se localiza a escola, por exemplo – e muitas crianças e idosos estavam no local. As fotografias de indígenas feridos por balas de borracha no rosto, nos seios são muito impactantes. Em 2012, quatro anos depois, uma indígena ferida na operação ainda sentia dores e teve de ser submetida a uma cirurgia, para a retirada de estilhaços que estavam alojados em suas pernas. Durante a ação, os indígenas tiveram documentos, roupas e outros pertences queimados; móveis, veículos e construções foram danificados; roças, completamente destruídas. Sacos de café, açúcar, leite e outros mantimentos foram propositalmente furados pelos policiais e tiveram seus conteúdos espalhados pelo chão. Utensílios de uso doméstico e ferramentas agrícolas foram apreendidos pela polícia, e nunca devolvidos. Documentos do arquivo da associação indígena também foram levados – entre eles, alguns de valor inestimável, como vídeos com depoimentos de indígenas idosos que já morreram. Além disso, dois indígenas foram detidos.
Já em junho de 2009, durante operação policial na fazenda Santa Rosa, retomada pelos indígenas, três agentes da Polícia Federal torturaram cinco indígenas com choques elétricos no rosto, nas costas, nas pernas e nos órgãos genitais. Eles desferiram, ainda, jatos de spray de pimenta, socos, coronhadas, tapas e pisões, queimaram os objetos pessoais dos indígenas e os ameaçaram de morte. Esse caso levou o Ministério Público Federal (MPF) a propor uma ação civil pública em face da União. Em 2010, ocorreram novos ataques a áreas retomadas e, em março, o cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva) e um de seus irmãos, Givaldo Ferreira da Silva, foram presos. Ambos ficaram cinco meses encarcerados e chegaram a ser transferidos para um presídio de segurança máxima no Rio Grande do Norte. Em junho, Glicéria Jesus da Silva, irmã de Babau e Givaldo, também foi presa, junto a seu bebê de dois meses de idade. Mãe e filho ficaram mais de dois meses presos. Na penitenciária, Glicéria desenvolveu mastite. A negligência das autoridades carcerárias e o agravamento de seu quadro clínico fizeram com que ela tivesse de interromper a amamentação da criança.
Durante o período da pesquisa propriamente, dois episódios violentos aconteceram, mas não na Serra do Padeiro, e sim na região litorânea da terra indígena. Em abril de 2011, um indígena que vivia na aldeia Guarani Taba Atã foi alvejado pelas costas na perna direita, por um agente da Polícia Federal à paisana. Em decorrência do tiro, sua perna teve de ser amputada. Conforme denúncias, no hospital, o indígena permaneceu todo o tempo algemado ao leito e vigiado por policiais; após um mês internado, foi mantido mais dois meses encarcerado, em Ilhéus. Não sei como está sua situação hoje, mas em 2012, quando o entrevistei, ele ainda não recebera qualquer reparação e respondia a um processo na justiça. Já em fevereiro de 2012, uma reintegração de posse foi efetuada na aldeia Tucumã, na região do Acuípe de Baixo, expulsando cerca de 20 famílias indígenas.
Como mencionei, depois que concluí a pesquisa, o conflito se agudizou e, no começo de 2014, o governo federal mobilizou suas forças repressivas para a ocupação do território tupinambá. A partir de então, os relatos sobre violações aumentaram. Assistimos a uma série de ações de reintegração de posse, marcadas por diversos abusos. Conforme as denúncias, os agentes passaram a ameaçar os indígenas, realizavam disparos diários de munição letal e lançaram mão de cachorros para persegui-los. Em um ataque policial a uma área retomada, em fevereiro, uma criança indígena de dois anos de idade perdeu-se dos pais, em meio à fumaça do gás lacrimogêneo, e foi levada pelos agentes, à força, ao Conselho Tutelar de Ilhéus. Operando uma inversão espantosa, um texto publicado no site da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) descreve o “emocionante momento do reencontro” entre a mãe e o menino, “proporcionado por uma ação do governo federal”. Em março, denunciam os Tupinambá, os agentes revistaram uma menina indígena de 14 anos, desacompanhada, e ordenaram que ela erguesse sua blusa. No mesmo mês, uma marcha em solidariedade aos Tupinambá, realizada na Serra do Padeiro, foi acompanhada por rasantes de helicópteros. Esses relatos demonstram que a atuação policial no caso tupinambá não tem se voltado à garantia do cumprimento da lei: seu objetivo tem sido assegurar interesses privados de grupos e indivíduos contrários à demarcação da terra indígena.
Paralelamente à violência perpetrada pelo Estado, também têm ocorrido ataques promovidos por indivíduos e grupos contrários à demarcação da terra indígena. Em agosto, um caminhão que transportava estudantes da escola indígena foi alvejado, em uma emboscada. Ninguém foi baleado, mas estilhaços do para-brisas, que se quebrou, feriram dois estudantes. Nesse mesmo mês, não-índios bloquearam a BR-101 em mais de uma ocasião, e veículos de órgãos governamentais que trafegavam pela via foram retidos e incendiados pelos manifestantes. Uma agência do Banco do Brasil foi depredada e uma unidade da Empresa Baiana de Alimentos (Ebal), estatal que comercializa alimentos a famílias de baixa renda, foi saqueada. Um ônibus utilizado para transportar estudantes indígenas também foi incendiado, durante a madrugada.  
Cerca de 40 casas pertencentes a famílias indígenas foram incendiadas e derrubadas. Indígenas foram espancados e tiveram sua produção roubada. Além disso, não índios que os apoiavam – comerciantes e professores, entre outros – foram agredidos e suas casas e lojas, atacadas. Já em novembro, três indígenas foram assassinados na região costeira da terra indígena, em uma emboscada. Não se trata de caso isolado. Em diferentes pontos da terra indígena, vários indígenas foram assassinados nos últimos anos, em circunstâncias não esclarecidas. Alguns casos, senão todos, argumentam os Tupinambá, se relacionam à disputa territorial. A atuação de pistoleiros contratados por fazendeiros tem sido denunciada reiteradamente. Apesar disso, até onde sabemos, as investigações policiais têm sido conduzidas desconsiderando os prováveis vínculos entre os assassinatos e a luta pela terra.

Você poderia comentar também sobre o racismo ao qual estão submetidos?
No que diz respeito ao racismo, ele é disseminado na sociedade regional. Durante o período em que estive em campo, não foram poucas as ocasiões em que me falaram sobre os “falsos índios”. Também pude presenciar discursos de ódio. Certa vez, eu viajava em um ônibus que circula pela zona rural de Buerarema, quando uma trabalhadora rural não-indígena me abordou para criticar as retomadas de terras. Ela disse que soltou rojões quando um jovem indígena morreu em um acidente de carro, anos atrás. A justificativa: “Nós não gostamos deles, nós não queremos eles aqui”.
Nesse quadro, a imprensa hegemônica cumpre um papel nefasto. Jornais como Agora e A Região, de Itabuna, veiculam caracterizações preconceituosas dos indígenas, chamando-os, por exemplo, de “bandidos que se dizem índios” e “caboclos fantasiados de índios”. Emissoras de rádio têm sido ainda piores. Quando estava em campo, escutava com frequência o programa Novo Amanhecer, da Rádio Jornal, de Itabuna, apresentado pelo radialista Rivamar Mesquita. Além de negar seguidas vezes a identidade étnica dos Tupinambá, o apresentador chegou a sugerir, no ar, a realização de emboscadas contra os índios. Mas o preconceito não é exclusividade da imprensa local e regional. Em fevereiro de 2014, oJornal da Band² veiculou em rede nacional reportagens sobre o caso Tupinambá repletas de imagens estereotipadas, erros factuais e declarações racistas, ao que os indígenas responderam propondo uma ação na justiça. Algo gravíssimo, que identifiquei com clareza na pesquisa, lendo processos judiciais referentes aos Tupinambá, é que essas caracterizações têm ampla penetração no Poder Judiciário, influenciando as decisões de juízes estaduais e federais.
Recentemente, o ministro da defesa e ex-governador da Bahia Jacques Wagner colocou o ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, em uma situação delicada ao comentar durante sua posse sobre a urgência na demarcação da terra Tupinambá. Como foi a relação entre os povos indígenas na Bahia durante o mandato do ex-governador petista? Você acredita que Jacques Wagnerpode ser um aliado no reconhecimento dos direitos destes povos? 

É curioso que Jacques Wagner manifeste-se assim, já que, enquanto foi governador da Bahia, mostrou-se bastante permeável ao discurso contrário à demarcação da terra indígena Tupinambá de Olivença e, em mais de uma ocasião, prestou declarações à imprensa ecoando argumentos dos setores mobilizados contra o reconhecimento dos direitos indígenas. É certo que a demarcação de terras indígenas é competência do governo federal, mas seria muito razoável que o governador, em sua interlocução com essa esfera, demandasse celeridade na garantia dos direitos territoriais indígenas em seu estado. Em outra importante disputa fundiária em curso durante seu mandato – o caso da Reserva Indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu, habitada pelos Pataxó Hã-Hã-Hãe –, o governador também se revelou alinhado aos interesses anti-indígenas. Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela nulidade dos títulos de propriedade emitidos sobre a reserva, em lugar de saudar a decisão histórica, Wagner concedeu entrevista, visivelmente contrariado, demandando que o governo federal oferecesse aos fazendeiros indenizações às quais eles não tinham direito legal.
Voltando ao caso tupinambá, é preciso lembrar que foi Wagner quem solicitou à presidenta Dilma Rousseff a militarização do território indígena, por meio de uma ação de garantia da lei e da ordem, em 2014. Como comentei, essa operação resultou em ainda mais violência contra os Tupinambá e buscou refrear o processo de recuperação territorial levado a cabo pelos indígenas. Será que o ministro reconheceu seus equívocos e pretende fazer gestões para que, finalmente, a Constituição Federal seja cumprida?
 
Tem mais algo que gostaria acrescentar?
O processo de demarcação da terra indígena Tupinambá de Olivença teve início em 2004. De lá para cá, o governo federal violou todos os prazos legalmente estabelecidos para sua conclusão. Fazendo frente à violência do Estado e de indivíduos e grupos contrários à demarcação, os Tupinambá têm se arriscado grandemente para realizar ações de recuperação territorial – só na aldeia Serra do Padeiro, já ocorreram mais de 70 retomadas de terra e todas essas áreas continuam em posse dos indígenas. São as ações de retomada que têm permitido aos indígenas voltar a se dedicar às atividades que desenvolviam tradicionalmente (agricultura em pequena escala, caça, pesca e coleta), afastando-se de relações de trabalho precárias, em alguns casos, análogas à escravidão. Além disso, muitos indígenas expropriados, que tiveram de deixar o território, recentemente puderam voltar. Os Tupinambá têm se esforçado para proteger seu território e criar condições para a reprodução do seu modo de vida. Mas, para que o conflito cesse definitivamente, é indispensável a conclusão, com urgência, do processo demarcatório.







Postado por Le Monde Diplomatique Brasil dia 19/01/2015 às 17:26hs







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