Programas sociais chegaram aos indígenas, mas não foram suficientes para baixar a mortalidade infantil, combater a desnutrição e garantir atendimento médico para a população
Sarah Fernandes/RBA
Só até agosto, 56 crianças morreram no primeiro ano de vida a cada mil nascidas vivas,
mais que em Gana e Namíbia
mais que em Gana e Namíbia
São Paulo — Com altos índices de mortalidade infantil e subnutrição, baixa expectativa de vida e ocorrências de doenças praticamente já erradicadas do restante do país, os xavantes da terra indígena de Parabubure, no Mato Grosso, são um dos desafios para o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, que tem como prioridade zerar a miséria do país. Cercados por fazendas pujantes pelo agronegócio, que alteraram drasticamente o meio ambiente e o modo de vida tradicional, eles resistem em um bolsão de pobreza, onde os programas sociais dos governos PT chegaram, mas não foram suficientes para resolver em definitivo os problemas.
O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xavante tem pelo menos 17 mil pessoas, divididas em seis terras indígenas – uma delas Parabubure – e 242 aldeias, que chegam a distar dias de viagem uma das outras. A grande maioria delas não tem energia elétrica nem água encanada. Ao todo, 400 profissionais da saúde, entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, dentistas, agentes de saúde, agentes sanitários e 15 médicos – oito deles do programa Mais Médicos – tem o desafio de promover atenção básica, garantindo o atendimento universal do SUS sem interferir na cultura tradicional xavante. Para isso, pelo menos 80% da equipe é composta por indígenas.
Um dos problemas mais graves é a ainda elevada taxa de mortalidade infantil. Só até agosto, 56 crianças morreram no primeiro ano de vida a cada mil nascidas vivas. No ano passado, foram 48 mortes para cada mil, superando países como Quênia (44), Gana (47), Namíbia (46) e Zimbaué (28). No restante do Brasil, no entanto, o índice caiu em mais de 70%, passando de 62 em 1990 para 14 em 2012, segundo um relatório do Unicef, lançado em setembro do ano passado. “A mortalidade infantil ainda é grande entre os indígenas em todo país e uma das principais causas aqui nos xavantes é a desnutrição”, afirma o coordenador do distrito, Cláudio Rodrigues.
Um dos problemas mais graves é a ainda elevada taxa de mortalidade infantil. Os xavantes mantêm a segunda maior taxa de mortalidade infantil do país, atrás apenas dos também indígenas Yanomanis, que vivem em regiões de difícil acesso na Amazônia. No restante do Brasil, no entanto, o índice caiu em mais de 70%, passando de 62 em 1990 para 14 em 2012, segundo um relatório do Unicef, lançado em setembro do ano passado. “A mortalidade infantil ainda é grande entre os indígenas em todo país e uma das principais causas aqui nos xavantes é a desnutrição”, afirma o coordenador do distrito, Cláudio Rodrigues.
Apesar das dificuldades, os xavantes são muito bem sucedidos na manutenção da sua cultura, que enche os olhos dos brancos: a língua materna e principal é o próprio xavante. O português vem depois, na escola, como segundo idioma. Apesar do uso de roupas já ser comum, exibem orgulhosos adornos tradicionais, como as gravatas de corda e pena, os brincos de madeira e os cordões de palha de buruti enrolados ao redor os pulsos e dos tornozelos.
Os meninos, quando fazem por volta de 13 anos, saem da casa dos pais e vão viver todos juntos na Hö, ou em português, 'Casa do Adolescente', onde irão aprender, durante sete anos, a cultura tradicional xavante. Encerrado o período, ocorre o ritual de furação da orelha, uma das festas mais fortes e tradicionais dos xavantes. A partir daí os meninos recebem um par de brincos e estão prontos para casar e assumir o papel de homens na tribo. Sendo um povo tradicionalmente guerreiro, participarão das árduas corridas com as toras de buriti nas costas e das lutas entre os dois clãs que dividem as aldeias: âwawẽ e po'reza'õno.
“O governo tem que dar mais atenção para o índio. Quem esta destruindo o país é o branco, não o índio. Antigamente, nos anos 1970 e 1980, no rio que corre em frente minha aldeia era fartura de pintado e de todo tipo de peixe. Hoje você não vê nenhum matrinxã (peixe muito comum na região)”, critica a indígena Ângela Rootsitsimro Tsupto, que vive na aldeia Três Marias. “Agora o índio tem que comprar peixe em Campinápolis e está muito caro. Qualquer um é R$ 25 reais. Só quem trabalha, é aposentado ou recebe Bolsa Família consegue, e ainda assim só um pouquinho.”
Os xavantes são originalmente nômades, mas foram forçados a se fixar em uma terra delimitada, cercada por grandes propriedades de terra, ora improdutivas, ora pujantes pelo agronegócio, que alteraram completamente o meio ambiente, secando rios, espantando a caça e empobrecendo o solo. A única alternativa é comprar os alimentos na cidade de Campinápolis, há 60 quilômetros da aldeia mais próxima, chamada São Pedro. O dinheiro vem de trabalhos vinculados a órgãos do governo federal, em geral de professores e agentes comunitários de saúde, ou do Bolsa Família, principal fonte de renda dos indígenas.
O resultado é uma alimentação pobre, baseada em carboidratos industrializados como arroz e farinha, que substituíram comidas tradicionais como farinha de mandioca brava, cará, peixes e feijão e milho xavantes. Nesse cenário, se multiplicaram casos de diabetes e hipertensão e as consequentes decorrências dessas doenças, que vão de amputações à cegueira.
Nos últimos 20 anos, Dilma foi a presidenta que menos desapropriou imóveis para reforma agrária, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra. No seu segundo mandato, a ministra da Agricultura será a polêmica senadora Katia Abreu (PMDB-TO), que há seis anos é presidenta da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e que presidiu a bancada ruralista no Congresso Nacional. Ela é considerada o “símbolo do agronegócio” pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
“Hoje é muito difícil de arrumar caça, porque só tem fazenda em volta. Antes era mato, e eles coletavam frutas, mandiocas, batatas e caçavam animais silvestres. O xavante nunca foi de fazer roça. Isso é muito contraditório porque os órgãos do governo quererem fazer arados de terra e plantações enormes, mas isso não é da cultura deles. É um hábito que precisa ser introduzido”, diz a responsável pelo Programa de Saúde Mental do DSEI Xavante, Ana Cristina Ferreira.
“O problema dos xavantes é um só: comida. Somos a segunda população do país com maior mortalidade infantil, perdendo apenas para os Yanomamis, mas eles estão em uma região mais isolada, onde só é possível chegar por via área. Aqui é tudo terrestre”, afirmou uma enfermeira que não quis se identificar, durante uma reunião de profissionais de saúde indígena, realizada em agosto. “É muito difícil tratar uma criança desnutrida na aldeia, porque ela precisa de oferta de alimentos que elas não têm. Às vezes levamos a suplementação alimentar, mas, pela cultura xavante, todos os membros da família acabam consumindo e a criança que precisa fica sem”, conta.
Para contornar o problema, a coordenação do distrito sanitário Xavante está organizando encontros com diferentes órgãos do poder público, para discutir a desnutrição infantil entre os indígenas. A principal proposta é desenhar um programa que introduza roçados e criação de animais nas aldeias, munindo os indígenas de conhecimento técnico, ferramentas e sementes. “Dinheiro, cesta básica, Bolsa Família, tudo isso ajuda, mas acredito que não seja a principal solução. O ideal seria um projeto de incentivo ao plantio dentro das reservas e de criação de peixe, galinha e vaca. A ideia é financiar o plantio e promover capacitação de como cultivar a terra, para que depois, com o tempo, eles deem sequência a isso. Terra tem, água tem, o que falta é o incentivo, verba e capacitação”, diz Rodrigues.
As barreiras culturais também impactam, e muito, nos altos índices de mortalidade infantil causada pela subnutrição. Em uma cultura de muita submissão da mulher, as xavantes são entendidas como procriadoras e os filhos pertencem aos homens, que podem inclusive se relacionar com outras mulheres. “Quando há um rompimento na relação, a mulher, para chamar a atenção do marido, abandona o filho. Temos muitos óbitos nutricionais porque a mãe se nega a dar alimento. Nós, como profissionais da saúde, orientamos muito, mas não podemos mudar isso, que é da cultura deles”, diz a chefe da Divisão de Atenção à Saúde Indígena (DIASI), Camilla Pacheco Dutra.
É costume entre as xavantes, por exemplo, não amamentar os bebês com o leite das primeiras 24h após o parto, chamado colostro, por acreditarem que não é um alimento limpo. A criança é entregue a outra mãe para que possa ser alimentado nesse período, o que aumenta o risco de alterações na taxa de açúcar no sangue dos recém-nascidos. “O pai e a mãe às vezes seguram a criança para ela não ser removida para um hospital e tentam salvar na pajelança. Quando eles veem que está muito grave liberam, mas aí muitas vezes já não tem mais jeito”, diz Rodrigues.
As gestações raramente são anunciadas e acabam sendo descobertas quando os enfermeiros, nas visitas, encontram as mulheres com as barrigas já salientes. Assim, é comum que elas acabam perdendo os primeiros meses do pré-natal. A tentativa então é conseguir garantir pelo menos três consultas, uma em cada trimestre da gestação. “Nós não estamos aqui para mudar a cultura deles, mas para nos adequarmos. O fundamental é criar vínculo entre o indígena e a equipe de saúde. Assim, ao invés de mudar a cultura deles a gente pode fazer com que tenham acesso mais fácil a equipe, em uma relação de confiança. Se eles não confiam, não aderem às recomendações médicas”, diz Camila.
Alimentação e promoção de saúde
O atendimento médico ocorre principalmente pelo Programa Saúde da Família, que visa prevenir doenças e promover a saúde. Na prática, as ações encontram algumas barreiras: há, por exemplo, um enfermeiro para uma média de 20 aldeias, que chegam a ficar a um dia de distância uma das outras, dificultando as visitas às aldeias. Apesar de receberem um salário maior que o dos demais profissionais, há muita rotatividade entre os brancos que trabalham com saúde indígena, pela dificuldade do trabalho.
“Se formos levar em conta a relação preconizada pelo SUS, de um médico para cada 2 mil pessoas, hoje teríamos o suficiente, mas na prática não é. Estamos em aldeias em regiões de difícil acesso. É diferente ter pessoas aglomeradas em uma cidade e ter uma população espalhada em hectares e hectares de terra”, diz Rodrigues. Uma das estratégias do DSEI Xavante tem sido redistribuir as equipes de profissionais, de forma a impedir que, por exemplo, dois enfermeiros sejam responsáveis por uma área com 32 aldeias enquanto, em outro local, cinco profissionais se dividam em 20 comunidades, como ocorre hoje.
“Essas doenças com as quais eles estão sofrendo hoje, como diabetes e hipertensão, provavelmente não seriam um problema se no passado houvesse esse trabalho de prevenção, de acesso à alimentação saudável e de acesso à informação para os indígenas, que são a prioridade da nossa gestão”, diz Ana Cristina.
Nesse cenário, a maioria dos problemas de saúde que já afetaram os xavantes dependendo de especialistas e acessá-los é um desafio. Os indígenas são encaminhados para a Casa do Índio (CASAI) de Campinápolis, Barra do Garça ou Brasília, onde ficam hospedados até conseguirem atendimento em um hospital público, uma jornada que pode durar meses e que representa um rompimento dos indígenas com seu modo de vida tradicional e com o sustento da família. Na região, o tempo médio de espera de para uma consulta com oftalmologista chega a dois anos, segundo uma enfermeira, que também não quis se identificar.
“Antigamente a natureza oferecia alimentação saudável; agora o índio mora em uma terra delimitada, cercado pelos fazendeiros e a natureza não está oferecendo mais o que os nossos antigos tinham para se alimentar. O mais problemático é a diabetes, que faz a gente doer tudo lá dentro”, diz a indígena Ângela. “E saúde não é só alimentação. Saúde é ter água encanada, que não temos. Saúde é ter teto digno, mas aqui as casas são todas de palha.”
Em um cenário de precariedade sanitária, doenças praticamente já erradicadas no restante do país continuam se proliferando entre os xavantes: tuberculose, escabiose e leishmaniose, que até agosto somava 26 casos no polo e, em 2013, 45 casos. Outro problema grave são os casos de alcoolismo. De um tempo para cá, o problema deixou de se concentrar apenas nos homens e passou a atingir também as mulheres, inclusive as adolescentes.
Um dos focos mais graves é na aldeia de Sangradouro, onde se colecionam casos de acidentes de carro, violência sexual e física e, sobretudo, perda da identidade cultural e enfraquecimento do modo de vida tradicional, tudo agravado pelo consumo abusivo de álcool. Para combater o problema, estão sendo articuladas ações em conjunto com o Ministério Público, a Polícia Federal, a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Ministério da Educação, as prefeituras da região e o governo do Mato Grosso.
“Lembro sempre de uma fala de um cacique muito sábio, que disse; ‘o povo xavante está ficando burro e cego. O branco quer que o índio beba mesmo. Quer vê-lo adoecer e morrer para tomar suas terras. Como o índio vai defender sua terra bêbado?'”, conta Ana Cristina. “Muitas pessoas pesam que o índio tem que ficar no mato, tem que plantar, tem que caçar, mas não percebem que as culturas evoluem historicamente. Se eu trabalho e tenho salário, por que o índio não pode? As vezes o branco tem a intenção de preservar mais a cultura do índio do que o índio.”
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