“Não foi um acidente”, diz Ailton Krenak sobre a tragédia de Mariana
No dia 7 de setembro de 2016, pesquisadores do tema Povos Indígenas no Brasil, do ISA, entrevistaram o líder Ailton Krenak sobre os impactos no território krenak do desastre de Mariana (MG), o maior crime socioambiental já registrado no Brasil e que completou um ano no último dia 5/11.
Para ele, a derrama de rejeitos da barragem do Fundão, da mineradora Samarco/BHP Billiton, da Vale, que devastou o distrito de Bento Rodrigues e o Rio Doce, de Minas Gerais até o Espírito Santo chegando ao Oceano Atlântico, foi um tiro de misericórdia em um povo que sofre há décadas com os impactos da mineração em suas terras: “Eles botaram o rio em coma e eu quero ver quem é que vai conseguir sobreviver sem água. Se os Krenak aguentaram toda essa tortura ao longo de quase 100 anos, inaugurada na década de 1920, agora com o rio morto, como vai ficar?”, questiona.
A íntegra da entrevista, em que Krenak fala ainda sobre a luta pelo reconhecimento de suas terras em Minas Gerais, sobre os ataques aos direitos dos índios e a política dos "brancos" para o Brasil, você confere na próxima edição do livro Povos Indígenas no Brasil 2011-2015, do ISA.
Veja abaixo alguns trechos do depoimento de Ailton Krenak a respeito do crime ambiental de Mariana.
“O evento mais dramático que o povo da Bacia do Rio Doce vive, segue vivendo, é essa derrama de veneno na cabeceira do rio. Aquela gosma da Samarco e da Vale, aquele material tóxico, recobriu as lajes de pedra com uma coisa plástica, que não deixa nem que o lodo, o líquen, que novos materiais orgânicos se constituam ali para criar um ambiente de vida aquática. A ictiofauna, as espécies de água, foram todas eliminadas.
Não foi um acidente. Quando eu ouço perguntarem sobre ‘o acidente’ de Mariana, eu reajo dizendo que não foi um acidente. Foi um incidente, no sentido da omissão e da negligência do sistema de licenciamento, supervisão, controle, renovação das licenças, autorização de exploração. O Estado e as corporações constituíram um ambiente promíscuo e delinquente, em que ninguém controla ninguém e no qual os engenheiros e os chefes de segurança, que informam os relatórios, também sabem que não tem consequência nenhuma se eles matarem um patrimônio inteiro, uma vila inteira ou, eventualmente, se matarem uma comunidade inteira.
Eles estão assentados sobre uma história colonial miserável, em que acham que fazem um favor enorme de estar comendo aquelas montanhas, empacotando aquelas montanhas e registrando um aumento no PIB brasileiro. Essa mentalidade estúpida, desse capitalismo que não dá nem pra chamar de selvagem, só pensa na exaustão dos recursos da natureza – que eles muito apropriadamente chamam de ‘recursos naturais’ e, cinicamente, matam rios, montanhas, florestas com a justificativa de que estão fazendo o desenvolvimento.
Watu, que é como nós chamamos aquele rio, é uma entidade; tem personalidade. Ele não é um ‘recurso’ como os pilantras dos engenheiros da Vale, administradores do Governo, da Agência Nacional das Águas, do Comitê de Bacias sugerem. Eles criam toda essa linguagem despistante, malandra, para sugerir que foi um acidente, que eles usam recursos e que as pessoas, os coletivos, as comunidades que são atingidas por esse dano, são vitimadas por esse evento, são ‘beneficiários’. Os beneficiários da presença dessas corporações na nossa região ficam sujeitos a acordar soterrados por uma lama venenosa.
Dia 5 de novembro [de 2016] completa um ano desde que milhares de famílias foram, de uma hora para outra, divorciadas do corpo do rio. Os municípios que estão ao longo dessa bacia têm uma população de um milhão e meio de pessoas, diretamente afetadas pela derrama da lama tóxica sobre o Rio Doce. “Diretamente” significa que, indiretamente, pode-se colocar isso na casa dos dez milhões. Mas e a biodiversidade? A Bacia do Rio Doce foi cauterizada. Agora, aquele corredor de 800 km é uma calha morta. E surpreendeu a todos nós que, logo nos primeiros 15 dias daquele grave desastre, as pessoas tenham saído em defesa da Vale e da Samarco, dizendo: ‘Ah, vamos recuperar o Rio Doce’. Ora, o que nós temos, de fato, é que a Bacia do Rio Doce vem sendo assaltada pelas atividades de mineração e também pela implantação das indústrias de processamento de celulose e de minério”.
Impactos históricos
“O Rio Doce, o Watu, pode ser pensado como um lugar onde, na primeira metade do século XX, até a década de 1920, os Krenak viviam ainda com a inocência de ter um rio sagrado, carregado de significado, de símbolos, onde os espíritos da água interagiam com as pessoas – de onde as famílias tinham certeza de que podiam tirar comida, remédio. Quando a atividade de abrir a estrada de ferro Vitória-Minas se iniciou, foi o fim da vida livre dos Krenak no Rio Doce. Há imagens que mostram os engenheiros aliciando os índios para cortar troncos na floresta do Rio Doce para fazer os dormentes. E, como os índios tinham curiosidade da presença daqueles trabalhadores, eles acabaram atravessando o rio e iam para a margem direita para ver os brancos, ficar perto deles. Essa curiosidade dos Krenak custou caro, porque pegaram muitas doenças dos brancos e morreu muita gente; crianças, velhos. Um dos marcos do desastre que tem sido a ocupação do Rio Doce para os Krenak é a abertura da ferrovia Vitória-Minas. Aí é que a vida dos índios virou um inferno.
E, com todo o abuso do Estado, todo o autoritarismo característico daquela época, os índios eram como moscas. Se o trem matasse meia dúzia deles, não fazia diferença alguma. Há relatos dos antigos sobre o tanto de gente que morria atravessando a ferrovia, porque não tinha nenhum sistema de vigilância, nem de alerta, para explicar aos índios que não podiam atravessar o leito da ferrovia – ou que não podiam caminhar acompanhando os trilhos do trem. Eles eram surpreendidos com o trem em cima deles, às vezes.
É desse tempo que os Krenak deram pro trem o nome de Guapo. É uma expressão muito curiosa, porque é como se eles estivessem chamando o trem de ‘braço mecânico’. É uma ideia totalmente abismada; eles achavam que aquela ferragem que movimenta o trem era uma coisa viva, um braço. A ferrovia foi se consolidando cada vez mais. Colocou as bitolas largas, máquinas maiores: a terra dos índios diminuindo e a máquina aumentando. As nossas montanhas virando mercadoria nesses trens e vagões; todas composições grandes para transportar minério para o porto do Espírito Santo.Toda essa industrialização da década de 1940 e 50 para cá, sangra a vida dos Krenak, encurralou as famílias. Essa derrama agora foi o tiro de misericórdia.
A aldeia está sendo abastecida por dois caminhões pipa que passam nas casas enchendo caixas d'água duas vezes por semana e entregam nas casas das famílias um fardo com 20 garrafas de 2 litros [de água mineral], porque o Ministério Público obrigou a Vale e a Samarco a fazerem a entrega para essas famílias que foram vítimas desse crime ambiental incalculável.
Você imagina como uma comunidade ou uma família vai criar bichos sem água? Qual sustentabilidade tem manter aquela população bebendo água mineral? Isso parece aquela história da Revolução Francesa, próximo da tomada da Bastilha, quando falaram para a rainha que o povo estava sem pão e ela respondeu: 'Mandem comer brioches!'. Então, esses cretinos, quando disseram que o povo do Rio Doce estava sem água, eles falaram: ‘Bebam água mineral!’”
Um rio em coma
“Mesmo que a empresa seja condenada a suprir aquela gente com água mineral naquele lugar, parece que você está colocando uma pessoa num balão, botando soro nela, oxigênio, e ela vai ficar em coma como o rio. O rio está em coma. De certa maneira, essa prontidão que as pessoas estão vivendo na margem do rio agora deixa elas no mesmo estado simbólico de coma em que o corpo do rio está. Eu vejo isso como uma coisa tão assustadora, que tenho dificuldade de falar no Watu sem me revoltar.
A desgraça de nós estarmos vivendo um momento político extremamente pobre também não cria canais de interlocução. Se não fosse o Ministério Público ficar esgoelando em cima desse episódio... O Executivo estadual anda de joelhos para as mineradoras; e o Governo Federal, a [então] ministra do meio ambiente sobrevoou a Bacia do Rio Doce e teve a cara de pau de dar um relatório três semanas depois, dizendo que a empresa tinha sido vítima de uma tragédia. 'A empresa foi vítima de uma tragédia'! O governador Fernando Pimentel (PT/MG) se reuniu com os diretores da Samarco e deu uma entrevista dizendo que era solidário com a empresa.
O ICMBio e o Ibama não têm competência para avaliar a extensão do desastre, então contrataram uma consultoria internacional, que concluiu que houve um abalo sísmico e que nem é possível fazer um seguro – porque essas grandes corporações têm seguros bilionários dessas minas. Mas, ao concluir um laudo – uma auditoria interplanetária! – dizendo que foi um acidente sísmico, você não só dá um chapéu no seguro: dá um chapéu em todo mundo, um chapéu tipo mexicano, um amplo chapéu em todos os otários do planeta.
Tenho a impressão de que eles estão arrumando uma maneira de dar no pé, sair da cena do crime, sem nem pedir desculpa. Se continuarem espremendo a Vale e a Samarco, eles podem arrumar uma maneira de a Samarco decretar insolvência, falência, ou qualquer coisa do tipo, sumir daqui e reaparecer em qualquer outro continente depois, detonando o planeta, sem pagar a conta do que eles deixaram pra trás.
Esse evento denuncia um quadro global, no qual paisagens, territórios e comunidades humanas fazem parte de um pacote que essas grandes fortunas, através das suas corporações, continuam tratando como material descartável. Nós somos ajuntamentos nada relevantes para esses caras e eles nos manipulam do jeito que querem. Somos colônias avassaladas. Esses caras fazem o que querem com os nossos territórios, nosso litoral, nossa floresta.
O Rio Doce só grita de uma maneira incontida o fato de estarmos todos sujeitos a ser plasmados por uma meleca tóxica dessas em qualquer lugar e não ter nem a quem reclamar. Nós estamos em maus lençóis”.
Entrevista realizada por Marília Senlle, Mario Brunoro, Rafael Monteiro Tannus e Tatiane Klein
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