Pelos estreitos caminhos empoeirados que ligam as casas das mais de 25 famílias que vivem no tekoha - lugar onde se é - Tey’i Juçu, que
significa “onde já foi um grande lugar” –, crianças de todas as idades
transitam entre passos de dança, cantos e rezas. Esta fanfarra doce e
sorridente embala o trabalho dos pais que se concentram nos pequenos
roçados coletivos de mandioca, batata, milho e feijão. O canto e os
gritos alegres seguem ao longo das pequenas trilhas improvisadas até uma
enorme Oga Pissy – casa de reza –, onde os pequenos aprendem os pilares
de sua cultura e mantêm acesas as chamas da tradição Kaiowá no Mato
Grosso do Sul. São os frutos da vida que despertou e se renovou há pouco
mais de um ano sobre o Tey’i Juçu, desde que os Kaiowá e Guarani
decidiram retornar ao sagrado território tradicional.
A harmonia,
emanada em manifestações de cultura e vida, está ameaçada - a felicidade
destas famílias foi revertida em terror, preocupação e medo. Contra
Tey’i Juçu está em vigor uma ordem de reintegração de posse concedida
pela primeira instância de Justiça Federal e mantida por decisão do
Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, em São Paulo.
Determinados, os indígenas afirmam que não recuarão da decisão de ocupar
a terra tradicional. Prevendo a possibilidade concreta do cumprimento
da ordem de despejo, reafirmam que não deixarão com vida seu território
sagrado. Advertem que caso a Justiça Federal continue dando seguimento
ao despejo, estará decretando mais um grande e grave conflito contra o
povo Guarani e Kaiowá.
Na última
sexta-feira, dia 04, um oficial de Justiça intimou a comunidade para que
as lideranças comparecessem nesta segunda, dia 7, à “reunião de
conciliação” na cidade de Dourados. O encontro contará com a presença da
Fundação Nacional do Índio (Funai), Polícia Federal e autodeclarados
proprietários das fazendas incidentes na terra indígena para decidir o
futuro das famílias indígenas. Os Guarani e Kaiowá ocupam cerca de 10
hectares da terra que lhes pertence.
Tey’i Juçu é
uma terra indígena reconhecida pela Funai através da Portaria nº
789/2008 que regulamenta o Grupo de Estudo referente a terras
pertencentes à Bacia Dourados – Amambai Pegua I. O Relatório de
Identificação e Delimitação (RCID) foi concluído e aguarda apenas a
publicação. Portanto, um despejo significaria, em outras palavras, que
todas as famílias da terra indígena estarão pagando com suas próprias
vidas por um processo de inércia política do Poder Executivo brasileiro.
Há mais de cinco anos o Estado reconheceu o Tey’i Juçu como terra
indígena, mas o governo federal não conclui o procedimento
administrativo de demarcação.
Décadas de violações
Em agosto de
2014, após mais de quatro décadas expulsos do território tradicional, o
grupo de famílias Guarani e Kaiowá do Tey’i Juçu decidiu pelo retorno ao
lar ancestral. Ocuparam o tekoha também porque os canaviais estavam
engolindo o que restou de mata. Entre o final dos anos 1920 e a década
60, os Guarani e Kaiowá foram sendo expulsos de Tey’i Juçu. À força,
foram confinados na Reserva de Tey’i Kue, que faz limite com o
território originário reocupado por pelas famílias.
Desde o
avanço das fronteiras agrícolas na região, o quadro de violência e
violações contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul tem se
intensificado. Após o assassinato de Denilson Barbosa, em 2013, no
tekoha Pindoroky, outro território de retomada localizado ao norte da
reserva de Tey’i Kue, Dona Marcelina, matriarca das famílias de Tey’i
Juçu, escreveu uma carta de memória ao índio Bento de Almeida Romero,
assassinado em 1973 dentro dos limites do território tradicionalmente
identificado.
Na carta,
Marcelina desabafa: “Índios são mortos sem piedade e o culpado de tudo
isso é o governo, vendendo terra para fazendeiro, para mais poderoso de
alta patente, sem pensar nas diversas etnias indígenas atuantes
(ocupantes) na região. Espero que este ato de impunidade mude na região
local, nos estados e no país onde vivemos”.
A violência e
a impunidade sentidas e narradas por Marcelina em 1973 e revivida pela
senhora de mais de 75 anos em 2013, com a morte de Denilson, um entre
tantos outros jovens assassinados por fazendeiros na região, acabou por
tornar-se ainda mais aguda a partir de 2014, após a reocupação física do
território de Tey’i Juçu.
Ataque imediato
Um ataque com a utilização de mais de 40 caminhonetes de fazendeiros culminou com a morte da jovem Juliana Venezuela de Almeida (charge acima),
cujo corpo foi levado pelos atacantes e jamais retornou. O ato covarde
ocorreu logo no primeiro de retomada do Tey’i Juçu. De lá para cá,
dezenas de ataques armados e investidas de jagunços foram denunciados
pelos indígenas quase que diariamente. Foi encaminhado também para a 6ª
Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República
(PGR), em Brasília, imagens onde agrotóxicos são jogados sobre as
famílias indígenas, o que acarretou em problemas de saúde para várias
crianças e idosos de Tey’i Juçu.
Ava Apyka’y
Miri, liderança da comunidade indígena, desabafa: “Estamos pagando com
nossa vida por um direito que já está previsto, que o Estado já
reconheceu e que nasceu conosco. Não estamos invadindo nada, estamos
dentro da terra saqueada de nós, já identificada e que sempre nos
pertenceu. Aqui as crianças estão felizes, estão crescendo livres, sem
drogas, sem problemas, sendo Kaiowá, vivendo como Kaiowá. Eu peço para
as autoridades: por favor, nos deixem em paz. Antes morreremos pelo
nosso território porque não sairemos dele de novo, e então pergunto: a
polícia matará também estes pequenos ou os levará para longe sem pais
nem mães para viverem soltos pelo mundo, mais uma vez entre tantas sem
nenhum tekoha?”.
Promessa das lideranças
Ao lado de
Tey’i Juçu, separado apenas por uma linha divisória invisível, repousa a
Reserva de Tey’i Kue, área criada pelo Estado para liberar os
territórios tradicionais Guarani e Kaiowá para a colonização. Atualmente
vivem neste reserva mais de 7.000 indígenas. As lideranças do conselho
local de Tey’i Kue garantem que se houver o despejo a reserva ira
despertar. “Faremos como fizemos já muitas vezes, como em Pindoroky
depois do assassinato do Denilson Barbosa”, anunciam as lideranças.
“Faremos um chamado geral e iremos todos para dentro do Tey’juçu e lá
batalharemos junto com nossos parentes. É uma área já identificada, área
tradicional e antiga dos Kaiowá de onde muito de nós que vivemos aqui
saímos. Não permitiremos despejo algum por aqui, já prometemos a eles e
honraremos nossa promessa”.
Com a Justiça
está a chance de se evitar o pior. Melhor do que mais tantos túmulos
como o de Denilson Barbosa, que jazem ao lado das estradas empoeiradas
que se estendem adjacentes à reserva de Tey’i Kue. Está nas mãos da
Justiça Federal não impedir a vida que corre no riso partilhado das
crianças, viventes de uma área já identificada e delimitada como
tradicional do povo Guarani e Kaiowá - uma pequena fatia da dívida
impagável que o Estado brasileiro tem com este povo.
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