As nascentes são contaminadas por agrotóxicos na terra Dourados Amambaipeguá Fotos: Ana Mendes
Ana Mendes e Cristina Ávila, especial para a Amazônia Real
Com apenas 18 dias de nascido, o bebê Norisleo Paim Mendes e sua mãe, Maria Joana Paim, do povo Guarani Kaiowá, foram contaminados por agrotóxico pulverizado na aldeia Tey’ijusu pelo tratorista de uma fazenda, em 2014. A área da fazenda está sobreposta à Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1, em Caarapó, no Mato Grosso do Sul, que ainda não foi demarcada pelo governo federal.
Em julho deste ano, a agência Amazônia Real visitou a aldeia Tey´ijusu. O pai do bebê, Kunumi Verã, contou que, na ocasião em que a criança e a esposa foram contaminados por agrotóxicos, procurou o tratorista, mas ele o recebeu com arma em punho.
“Eu ia perguntar por que ele passou veneno em cima. Foram contaminadas nove pessoas naquele dia. Ele puxou uma arma pra mim. Quando ele puxou, nós também atacamos. Fomos de flecha. Eu furei o tanque [do trator]. Eu não matei vida, não passei veneno em cima de ninguém. Eu só estou lutando pelo nosso direito, pela comunidade. Por furar esse tanque eu estou sendo perseguido”, disse Kunumi Verã, que está sendo processado por ter furado o tanque de combustível do trator da fazenda.
Liderança Kunumi Verã da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1 em julho de 2017 Foto _ Ana Mendes
A população indígena do Mato Grosso do Sul é a terceira do país mais contaminada por agrotóxicos, segundo o atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”, da pesquisadora Larissa Mies Bombardi, professora de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa, que será lançada em novembro, aponta que 12 índios foram contaminados por agrotóxicos em Mato Grosso do Sul entre 2007 e 2014.
Conforme o estudo de Bombardi, o estado com o maior número de casos de contaminação por agrotóxicos na população indígena brasileira é Santa Catarina, com 27 registros, seguido do Paraná, com 17. Em quarto lugar vem Minas Gerais (7), Espírito Santo (4) e Bahia (1).
De acordo com o estudo, o Mato Grosso do Sul tem seis casos de intoxicação para cada 10 mil indígenas. “Levando em consideração outros 50 não notificados, temos 300 casos para cada 10 mil. Isso indica 3% da população indígena intoxicada”, explica a cientista em entrevista à reportagem.
A intoxicação dos índios por agrotóxico acontece por causa da expansão dos cultivos do agronegócio em lavouras de soja, milho e cana-de-açúcar das fazendas, que ficam no entorno ou sobrepostas às terras indígenas. Nascentes de rios e córregos, que abastecem as aldeias, são contaminados pela pulverização – terrestre ou aérea – de defensivos agrícolas, pesticidas e outros produtos usados no combate a pragas nas plantações.
Há casos em que pilotos de aeronaves fazem voos rasantes e borrifam, de forma criminosa, o veneno nas habitações e roças dos indígenas, conforme indicam as investigações feitas pelo Ministério Público Federal (MPF-MS).
Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, em Mato Grosso do Sul há uma população de 73.295 indígenas. Eles são das etnias Guarani Kaiowá, Guarani Mbya, Guarani Ñhandeva, Terena, Kadiwéu, Guató, Ofayé, Kinikinau e Atikum.
Na pesquisa, Larissa Bombardi analisou 343 notificações de contaminação por agrotóxico em crianças e jovens indígenas em Mato Grosso do Sul.
“Quando concluí a pesquisa fiquei muito impressionada porque, de 20 a 25% dos casos [analisados], eram de crianças e jovens de até 19 anos. Bebê intoxicado dá o tom. A ponta do iceberg é [a faixa de idade] de zero a 12 meses. Eles não se movem sozinhos. Isso dá a ideia da vulnerabilidade da população”, disse a cientista, que é autora de diversos livros e artigos sobre o tema agrotóxicos.
A pesquisa, que é resultado dos pós-doutorados de Larissa Bombardi na Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, e na Universidade de Strathclyde, na Escócia, diz que os casos analisados foram por intoxicação aguda, ou seja, quando a pessoa passa mal e recorre a uma unidade de saúde. Na pesquisa não foram incluídos casos crônicos.
“É muito assustador. Os pesquisadores costumam dizer que as intoxicações agudas são a ponta do iceberg. Atrás disso têm câncer, problemas neurológicos, má formação fetal e outras sequelas”, explica a professora Larissa Bombardi.
Ela diz que as intoxicações por agrotóxicos são evidentes nas aldeias indígenas, mas praticamente estão fora das estatísticas oficiais do governo. Existem apenas estimativas. “A Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] e o Ministério de Saúde calculam que para cada caso notificado [no Brasil] há outros 50 não informados. A gente tem por volta de 2% de notificações. Os números são escandalosos”, afirma a cientista.
A pesquisa analisou casos de contaminação por agrotóxico disponibilizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério da Saúde (Sistema Nacional de Agravos de Notificação – SINAN) até o ano de 2014. “Depois disso a Anvisa tirou as informações do ar. Desde 2015 não conseguimos mais acessar as informações”, revelou a professora da USP.
Vídeo conta relatos de Guarani Kaiowá
A reportagem da Amazônia Real visitou a Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1, em Caarapó, no Mato Grosso do Sul, no mês de julho passado. Em entrevista, os índios Guarani Kaiowá denunciam a contaminação por agrotóxicos das nascentes e das roças.
O estado do Mato Grosso do Sul lidera, com São Paulo, Goiás e Mato Grosso, as médias do Brasil em uso de agrotóxicos. São 12 a 16 quilos por hectare. Na União Europeia (UE), por exemplo, são de dois a três quilos por hectare, segundo os estudos de Larissa Bombardi.
A pesquisadora constatou que dos 85 agrotóxicos de uso autorizado nas lavouras de cana-de-açúcar no Brasil, 25 são proibidos pela União Europeia, que baniu ainda 32 produtos usados nas plantações de milho e outros 35 nas de soja que continuam nos campos brasileiros.
O que dizem as leis?
A lei federal 7.802 de 1989, conhecida como Lei dos Agrotóxicos, não estabelece limites mínimos de distância para a pulverização terrestre em áreas de possíveis habitações. Mas estabelece infração, com pena de reclusão de 2 a 4 anos, quando a aplicação prejudica a saúde do homem, dos animais e do meio ambiente.
Os estados deveriam, e alguns o fazem, elaborar as suas próprias normas. No Mato Grosso, a distância mínima é de 90 metros. Já no Mato Grosso do Sul não há resolução sobre a pulverização de agrotóxicos.
Já dispersão aérea é regulada pela Instrução Normativa 02 de 03 de janeiro de 2008. O limite exigido é de uma distância de “quinhentos metros de povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população”, conforme o artigo 10 da norma.
Quando há infração, a instrução determina a realização de uma perícia que indique quais foram as condições da pulverização, se ela estava de acordo com os manuais de aplicação, com as condições locais e se era possível o piloto da aeronave prever, por exemplo, se haveria algum tipo de intoxicação ou danos.
Para este ano está prevista a construção de um laboratório de monitoramento de resíduos de agrotóxicos em águas superficiais nas bacias hidrográficas dos rios Ivinhema, Dourados e Amambai, no Mato Grosso do Sul. O projeto é coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuária (Embrapa) e conta com a cooperação técnica da Prefeitura de Dourados e dos Ministérios Públicos Federal (MPF), do Trabalho (MPT) e do Estado (MPE).
Em nota publicada em seu site, a Embrapa diz que no laboratório serão investigadas as “condutas e atividades que causam efetivamente o dano ambiental e prejuízo à saúde da população sul-mato-grossense.”
A agência Amazônia Real procurou o coordenador técnico do programa da Embrapa, Rômulo Penna Scorza Júnior, através da assessoria de imprensa, mas ele não quis responder as perguntas enviadas por e-mail sobre quais tarefas o laboratório vai desempenhar sobre a contaminação de agrotóxicos na população indígena no estado.
No Ministério Público Federal em Dourados (MS), um dos municípios de maior registro de violência contra povos indígenas no país, há quatro ações investigando ataques de pulverização de agrotóxicos às aldeias, entre elas, dos Guarani Kaiowá. Suas terras enfrentam um conflito agrário histórico devido à não demarcação do território pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
O procurador Marco Antônio Delfino explicou à reportagem da Amazônia Real que avalia os casos de ataques por agrotóxicos como um “processo de desumanização”. “Está muito claro”, reforça.
“Se no local onde houvesse aquela comunidade tivesse uma casa de sei lá de quem, uma vila bonitinha, o cara não ia fazer isso. Se houvesse uma casa de fazenda ali e tal, com três andares, piscina, o cara não ia fazer”, disse o procurador.
Marco Antônio contou como foi a reação de um acusado de pulverizar aldeias Guarani Kaiowá, ao ser indagado em audiências na Justiça:
Acusado: “Ah não doutor, o que eu fiz foi tratos culturais”.
Procurador: “Mas em cima de uma comunidade?”
Acusado: “Não, eles estavam lá. Eles estavam no meio da soja.”
A pulverização criminosa de agrotóxico em territórios indígenas é denunciada desde os anos 1970 pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade ligada à CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), da Igreja Católica. O missionário da entidade no Mato Grosso do Sul, Flávio Vicente Machado, disse que o agrotóxico é uma arma química utilizada para agredir fisicamente os grupos que vivem às margens das monoculturas.
“São constantes as queixas de que os venenos são usados, inclusive, como arma contra as comunidades indígenas. Preocupamo-nos com o aumento dos casos de câncer na população indígena”, afirmou Vicente Machado.
Acompanhada por uma equipe do Cimi, a Amazônia Real visitou a aldeia Laranjeira Ñhanderu, no município de Rio Brilhante. No local, os missionários encontraram um bebê, de seis meses, doente. Ele estava com quatro dias com diarreia e vômito depois que os funcionários de um fazendeiro, de uma propriedade contígua à aldeia, dispersou veneno enquanto os índios Guarani Kaiowá dormiam.
A mãe do menino, que não quis se identificar por medo de represálias dos fazendeiros, disse que o bebê estava emagrecendo e perdendo o apetite. “Quando o veneno passou em cima de minha casa, então, eu fui para debaixo da coberta. Mas eu sentia mesmo assim o cheiro do veneno. Acho que começou a passar meia noite e parou às duas horas. Aí ele [o bebê] acordou às três horas e estava forte mesmo aquele veneno. E ele tá assim agora, perdendo peso e tá com vômito. Só fica dormindo, dormindo, por causa disso mesmo, porque tá doente agora”, conta ela.
Procurado pela reportagem da Amazônia Real para falar sobre o tratamento de indígenas contaminados por veneno, o médico Zelik Trajber, que faz parte da equipe volante do Polo Base de Dourados do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei-MS), disse que há 16 anos atende periodicamente a aldeia Laranjeira Ñhanderu, no município de Brilhante.
Ele disse que, quando os pacientes apresentam sintomas de enjoo, dor de cabeça ou diarreia, as prescrições são soro, analgésico e antieméticos. Contou que os sintomas deveriam ser melhor investigados; entretanto, conta que amostras de sangue não têm onde ser avaliadas:
“Não tem onde, nem como. Nem pra avaliar se o quadro é mensurável, fazer uma demonstração que isso aí foi devido a agrotóxico. Eu só posso registrar o que ela [a pessoa doente] me apresenta. Está vomitando, tem diarreia, está com dor de cabeça, tosse, quadro respiratório”, disse Trajber.
“Não tenho nenhum elemento para comprovar que isso aí foi devido a isso. Ao mesmo tempo não adianta eu ideologicamente começar a jogar ‘intoxicação por agrotóxico’ se eu não tenho como provar. Quem vai ser questionado sou eu em termos legais. Então eu posso descrever ‘atendi a uma criança com diarreia. Atendi uma criança com dor de cabeça.’ Agora eu não tenho como ideologicamente carimbar. Isso eu não posso fazer,” afirmou Zelik Trajber.
Violência em alta
Além de serem atingidos pela pulverização de agrotóxico, os indígenas do Mato Grosso do Sul sofrem diversas agressões, segundo o “Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2016”, lançado este mês pelo Cimi.
Conforme o relatório, 118 índios foram assassinados no país em 2016. No mesmo ano, 106 indígenas se suicidaram e 735 crianças, menores de cinco anos, morreram por causas diversas.
O Mato Grosso do Sul se destacou nas estatísticas com o registro de 18 índios assassinados, 30 suicídios e 30 crianças mortas, sendo que a maioria por falta de assistência médica e desnutrição grave.
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