História e cultura Guarani |
Foto tradição _ Anne Vilela |
Imagem com apelos contra genocídio em curso _ Cimi |
Quando da chegada dos espanhóis e portugueses na América, por volta de 1500, os Guarani já formavam um conjunto de povos com a mesma origem, falavam um mesmo idioma, haviam desenvolvido um modo de ser que mantinha viva a memória de antigas tradições e se projetavam para o futuro, praticando uma agricultura muito produtiva, a qual gerava amplos excedentes que motivavam grandes festas e a distribuição dos produtos, conforme determinava a economia de reciprocidade. Quando os europeus chegaram ao lugar que hoje é Assunção, no Paraguai, ficaram maravilhados com a "divina abundância" que encontraram.
Os Guarani vêm seu mundo como uma região de matas, campos e rios, como um território onde vivem segundo seu modo de ser e sua cultura milenar. Do território tradicional, historicamente ocupado pelos Guarani, que se estende por parte da Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil, os Guarani ocupam hoje apenas pequenas ilhas. Seu território, o solo que se pisa, é um tekoha, o lugar físico, o espaço geográfico onde os Guarani são o que são, onde se movem e onde existem. Esses povos guardam tradições de tempos muito antigos, que trazem na memória que vão atualizando em seu cotidiano, através de seus mitos e rituais.
Os povos Guarani são muito semelhantes nos aspectos fundamentais de sua cultura e organizações sociopolíticas, porém, diferentes no modo de falar a língua guarani, de praticar sua religião e aplicar as diversas tecnologias na relação com o meio ambiente. Tais diferenças, que podem ser consideradas pequenas do ponto de vista do observador, cumprem o papel de marcadores étnicos, distinguindo comunidades políticas exclusivas. Esses grupos reconhecem a origem e proximidade histórica, lingüística e cultural e, ao mesmo tempo, diferenciam-se entre si como forma de manter suas organizações sociopolíticas e econômicas.
Atualmente, os Guarani seguem vivendo onde sempre viveram, apesar de inumeráveis pressões, ameaças e mortes. Diversos grupos Guarani foram se estendendo por esta parte da América, mediante sucessivas migrações aliadas ao crescimento demográfico, que começaram há uns dois mil anos atrás e que continuam até a atualidade. No território brasileiro vivem os Mbya, Kaiowá e Guarani (ou Nhandeva). Os Guarani e Kaiowá estão em Mato Grosso do Sul.
Um dos maiores males que os Guarani têm que suportar é a invasão e destruição de sua terra, a ameaça contra seu modo de ser, a expulsão, a discriminação e o desprezo que vieram com a chegada dos "outros", dos colonos e dos fazendeiros e, mais recentemente, dos produtores de soja e de açúcar.
O cerco aos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: erva-mate, gado, soja e cana-de-açúcar
No Brasil, a situação dos Guarani e Kaiowá sofreu profundas alterações logo após a Guerra do Paraguai (entre 1864-1870). Após este período inicia-se a ocupação sistemática do território guarani por diversas frentes de exploração econômica, no sul do então estado de Mato Grosso. Podemos afirmar que a partir dessa data a história dos Guarani e Kaiowá, nessa região, vem fortemente marcada pelos rumos dessa exploração econômica: inicialmente, da erva-mate, a seguir a implantação dos projetos agropecuários e de colonização, a soja e correspondente mecanização, na década de 1970, e, finalmente, a cana-de-açúcar , a partir da década de 1980.
Estar em meio a um campo sem árvores ou junto a extensas monoculturas de soja ou cana de açúcar é um grande mal. A mata, a água e outros elementos do ambiente são espaços ocupados por uma série de seres espirituais, com os quais os Guarani e Kaiowá necessitam interagir para reproduzir seu modo de vida. Esses povos não são nômades nem vivem somente da caça, da coleta e da pesca. São agricultores, e bons agricultores, que produziam abundância de comida.
Ao mesmo tempo em que viram suas terras de ocupação tradicional sendo transformadas e as matas derrubadas, os Guarani e Kaiowá têm sido incorporados sistematicamente como reserva de mão-de-obra fundamental nas diversas etapas dessa exploração regional.
Erva-mate, a primeira riqueza extraída do território indígena - década de 1880 a 1940
Ao perceber a grande quantidade de ervais nativos na região, Thomas Laranjeira solicitou do Governo Federal, em 1882, o arrendamento das terras no sul do então Estado de Mato Grosso para explorá-las e, fundou, em 1892, a Companhia Mate Laranjeira. Com a República, as terras devolutas – aquelas que originalmente pertenciam à União – passaram para a responsabilidade dos estados, o que favoreceu os interesses da Cia. Mate Laranjeira. Dessa forma, o Decreto nº 520, de 23/06/1890, ampliou os limites da posse da Cia. Mate Laranjeira e deu-lhe o monopólio na exploração da erva-mate em toda a região, que compreendia o território de ocupação tradicional dos Guarani e Kaiowá. Essa atividade foi responsável pelo deslocamento de inúmeras famílias e núcleos populacionais, tendo em vista a colheita da erva mate, e pela disseminação de várias doenças com grave impacto sobre a saúde dos índios.
O confronto com colonos e projetos agropecuários
Em 1943, o então Presidente da República, Getúlio Vargas, criou em pleno território indígena a Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) que tinha como objetivo possibilitar o acesso à terra a milhares de famílias de colonos, migrantes de outras regiões do país. A criação dessa e de outras colônias agrícolas nacionais situou-se dentro da política da "Marcha para o Oeste", buscando incorporar novas terras e aumentar a produção de alimentos e produtos primários necessários à industrialização a preços baixos. No caso havia, também, claro interesse em povoar a fronteira, onde a Cia. Mate Laranjeira mantinha forte presença.
A CAND, criada pelo Decreto-lei no. 5.941, de 28 de outubro de l943, abarcava uma área não inferior a 300 mil hectares, a ser retirada das terras da União no então Território Federal de Ponta Porã. A instalação dos colonos em terras ocupadas pelos Guarani e Kaiowa provocou problemas diversos e graves, pois questionou a presença indígena e impôs a sua transferência para outros espaços. A implantação da CAND alavanca, também, a ocupação agropecuária e a expansão da presença não indígena e da infraestrutura de serviços na região.
A partir da década de 1950 acentua-se a instalação de empreendimentos agropecuários nos demais espaços ocupados pelos Kaiowá e Guarani, ampliando o processo de desmatamento desse território. Número significativo de comunidades indígenas é obrigado a abandonar suas aldeias e deslocar-se para dentro de oito reservas de terra demarcadas pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio, que deu origem à Funai), acentuando-se o confinamento das aldeias.
Entre os anos de 1915 e 1928, o SPI demarcou oito pequenas extensões de terra para usufruto dos Guarani e Kaiowá, perfazendo um total de 18.124 hectares, com o objetivo de liberar o amplo território ocupado pelos Guarani e Kaiowá no atual estado de Mato Grosso do Sul. As reservas impuseram o controle político da população, submetida a uma série de práticas que tinham como objetivo principal a assimilação dos indígenas à sociedade nacional. Foi uma estratégia governamental para submeter esses povos aos projetos de ocupação e exploração dos recursos naturais por frentes não indígenas.
A introdução da soja, a partir da década de 1970, junto com a ampla mecanização das atividades agrícolas, provocou o fim das aldeias-refúgio nos fundos de fazendas, nas quais os Kaiowá e Guarani resistiam. A produção comercial em monocultura comprometeu a biodiversidade, substituindo os restos de mata, capoeiras e campos. Com a criação do Pró-álcool, no início da década seguinte, são instaladas as primeiras usinas de produção de açúcar e álcool em Mato Grosso do Sul. Passam a ser frequentes as denúncias de trabalho escravo e de superexploração dos trabalhadores indígenas e não indígenas engajados nessa atividade.
A partir da década de 1980, os Guarani e Kaiowá, com forte apoio de setores da sociedade civil, recuperam a posse de 11 terras indígenas, áreas de antigas aldeias, que juntas somam um total de 22.450 hectares, já devidamente demarcadas e em sua posse. Inúmeras outras comunidades que também perderam suas terras durante o processo de colonização dessa região estão exigindo do governo o mesmo procedimento, apoiadas no texto da Constituição Federal de 1988.
Cabe destacar, no entanto, que a maior parte da população Guarani e Kaiowá, cerca de 80%, segue vivendo nas oito reservas demarcadas pelo SPI, nas quais há forte concentração dos serviços de saúde, educação e assistência oferecidos pelo governo. O caso mais grave diz respeito às terras indígenas de Dourados, Amambai e Caarapó – que juntas somam 9.498 hectares de terra e abrigam mais da metade do total de 45 mil Guarani e Kaiowá residentes em Mato Grosso do Sul – esse dado nos permite compreender a extensão do confinamento imposto aos Guarani e Kaiowá.
É necessário também considerar que a manutenção de milhares de famílias indígenas se tornou cada vez mais dependente do trabalho assalariado nas usinas, o que coloca o desafio de encontrar outras formas de sustentabilidade econômica para os Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul.
As consequências atuais da expansão econômica
O processo de perda territorial e consequente confinamento em espaços extremamente exíguos de um contingente populacional muito superior ao padrão historicamente conhecido pelos Kaiowá e Guarani impôs profundas limitações à sua economia de reciprocidade, relacionada a aspectos fundamentais de sua política e cultura. A inviabilização da itinerância e o rápido esgotamento dos recursos naturais reduziram muito a qualidade de vida nos seus tekoha (terras tradicionais).
O confinamento trouxe o desafio de adequar a organização social dos Guarani e Kaiowá à nova situação marcada pela superpopulação numa mesma região, pela sobreposição de parentelas e transformações de ordem econômica. O confinamento na reserva resultou assim num processo que limita drasticamente as possibilidades de reprodução do ava reko, o sistema social guarani. Este processo está na raiz dos principais problemas sociais e impasses vividos pelos Kaiowá e Guarani hoje.
Abordar a questão das terras Guarani e Kaiowá no Brasil é trazer a público a situação desse povo: há menos de um hectare por pessoa, chegando a situações absurdas como na Terra Indígena Dourados, com mais de 12 mil pessoas em 3.500 hectares. Lá vivem mais de 40 grupos familiares distintos. Expulsos de outras aldeias, foram obrigados a deslocar-se para essa área que, proporcionalmente, apresenta altos índices de violência.
Em 1978, um grupo de Kaiowá e Guarani que viviam em Rancho Jacaré, área da Companhia Mate Laranjeira, em Laguna Caraapã, foi levado à força para a terra indígena Kadiwéu, no município de Porto Murtinho. Depois de um tempo no desterro, iniciaram uma longa e penosa volta à sua própria terra donde haviam sido expulsos. Não demorou e outras aldeias iniciaram a retomada de suas terras de ocupação tradicional. Daí em diante, a articulação e mobilização dos Kaiowá Guarani, com o apoio de aliados da sociedade civil, possibilitou o retorno a mais de uma dezena de territórios tradicionais. Hoje permanecem em aproximadamente 20 aldeias tradicionais retomadas a partir da década de oitenta. Porém, de várias delas foram retirados à força, com inúmeros mortos e feridos. Em consequência desse processo de dispersão, constata-se a presença de membros de uma parentela dispersos em várias terras indígenas da região. Aguardam a oportunidade de retornar à terra onde nasceram, onde estão enterrados seus antepassados e onde está a base de sua cultura, visão de mundo e perspectiva de futuro.
A situação das terras e a pressão exercida pelos Kaiowá e Guarani fizeram com que nos últimos anos a Funai colocasse essa questão como prioridade em seu planejamento. Nesse sentido, em 2008, a Funai instituiu seis Grupos de Trabalho (GTs) para a identificação e delimitação de terras Guarani e Kaiowá no Cone Sul do estado de Mato Grosso do Sul.
Fonte:
Guarani Retã – Povos Guarani na Fronteira Argentina, Brasil e Paraguai – 2008
Autores: Marta Azevedo, Antonio Brand, Egon Heck, Levi Marques Pereira, Bartomeu Melià.
Realização: UNaM, ENDEPA; CTI, CIMI, ISA, UFGD; CEPAG, CONAPI, SAI, GAT, SPSAJ, CAPI.
Autores: Marta Azevedo, Antonio Brand, Egon Heck, Levi Marques Pereira, Bartomeu Melià.
Realização: UNaM, ENDEPA; CTI, CIMI, ISA, UFGD; CEPAG, CONAPI, SAI, GAT, SPSAJ, CAPI.
ASSISTAM A vídeos da survival AQUI. LEIAM NOTA DIVULGADA ONTEM PELA ATY GUASU AQUI. Leia ainda sobre o Marco Temporal por Índio é Nós.
NOTA: A indagação do título é deste Blog
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