Por CIMI, Marcelo Zelic
Membros do Supremo Tribunal Federal (STF) querem interditar os benefícios da justiça de transição aos povos indígenas do Brasil, ao dar acolhida a entendimento de que a Constituição de 1988 é o marco temporal para se avaliar a presença de povos indígenas em terras reclamadas para demarcação e homologação. Está em vias de ser decretado, assim, o esquecimento para todo o roubo ou esbulho de terras indígenas ocorridos nos anos anteriores a 1988, como por exemplo, os casos que surgiram nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.
A 2ª Turma do STF reunida em 16 de setembro de 2014 votou por maioria contrariamente aos direitos dos Guarani-Kaiowá sobre a terra da qual foram expulsos em 1940. Os indígenas nunca desistiram de voltar a ocupar seu território tradicional. Três dos cinco ministros, Gilmar Mendes, Celso de Melo e Carmen Lúcia, votaram contra os índios. O relator Ricardo Lewandowski votou a favor e Teori Zavaski se declarou impedido e não votou. A decisão final sobre o caso será tomada pelo plenário.
Se confirmada, a decisão representa um sério revés para a causa indígena. Depois de impedir a punição aos torturadores, o STF anistiará a todos que grilaram terras indígenas no Brasil antes de 1988.
Anistiará aqueles que, para ter a posse, se beneficiaram de atos passados de falsificação de documentos em cartórios; arrendamentos com o órgão tutor dos índios que, com o tempo, viraram posses registradas em cartórios; comercialização ilegal de terras indígenas, grilagem de terras.
Grave também é o fato do STF anistiar a si próprio, tal qual a ditadura fez com seus torturadores, passando uma borracha sobre a atuação do judiciário no esbulho das terras indígenas no Brasil de 1988 para trás. Uma ação iniciada no STF em 1961, sobre o roubo de terras indígenas no atual Mato Grosso do Sul, teve como desfecho dos magistrados da mais alta corte do país, em 2014, uma declaração de que mais nada se poderia fazer, mesmo tendo sido provado o esbulho de terra indígena. A justificativa: teria se passado muito tempo. Nenhuma linha sobre a necessidade de reparação aos povos esbulhados do Mato Grosso do Sul. Somente um “arquive-se” mais de 50 anos depois.
É sem dúvida o retrato da vergonhosa demora da Justiça brasileira para fazer cumprir o artigo 231 da Constituição de 1988 e os seus similares nas constituições passadas, que sempre garantiram a prevalência do direito originário do índio brasileiro face a qualquer tipo de posse que os prejudique, engendrada pelo Estado ou pela sociedade envolvente.
A Comissão Nacional da Verdade aponta que os povos indígenas brasileiros foram o segmento da população mais atingido por graves violações de direitos humanos entre 1946-1988, sendo que com esta população a violência ocorreu em todas as quatro décadas apuradas e de forma brutal.
Foram mais de quarenta anos de assassinatos seletivos de lideranças, caciques, religiosos e apoiadores; chacinas e massacres; extinções de aldeias com deslocamentos forçados; prisões ilegais; tortura e desaparecimento de índios; maus tratos na gestão da saúde e no cuidado do contato; escravização. Na raiz de toda a violência está o intento de afastar os indígenas de suas terras tradicionais, para apossar-se delas e de suas riquezas, incorporando-as ao chamado desenvolvimento nacional.
A decisão da 2ª Turma contrasta com a disposição da Comissão Nacional da Verdade que, pela primeira vez, admitiu que muitas das terras que em 1988 não eram mais habitadas por grupos indígenas estavam vazias de índios porque foi praticada muita violência contra estes povos.
A criação de um marco temporal como exigência para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas solapa qualquer benefício adquirido pelo índio com o resultado da Comissão Nacional da Verdade. Representa também o afastamento do Supremo Tribunal Federal do conceito de justiça contido nos tratados internacionais assinados pelo Brasil.
A justiça não será feita ao se desconsiderar as razões pelas quais algumas das terras reclamadas por indígenas estariam vazias no marco temporal que se deseja aplicar. Nos anos de 1980, Angelo Kretã morreu no processo de luta pela retomada de suas terras e por respeito aos direitos territoriais dos Kaingang. Seu caso ainda não foi esclarecido pela Comissão Nacional da Verdade, mas estudos realizados pelo grupo de trabalho demonstram que o estado brasileiro sabia 11 anos antes do “acidente” que vitimou o cacique Kaingang, que ele tinha razão na luta por seus direitos.
O grupo de trabalho apurou que no julgamento de cassação do deputado paranaense Jorge Cury, realizado em 19 de janeiro de 1969, o secretário do Conselho de Segurança Nacional registrou na ata secreta da 45ª sessão que o deputado era grileiro de terras indígenas. Ele foi cassado e nada se fez sobre a grilagem. Kretã morreu no processo de retomada destas terras.
Em artigo publicado no dia 19 de novembro deste ano, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha contextualiza o assassinato e o direito defendido pela liderança indígena Kaiowá Marinalva Manoel de 28 anos, assassinada em 1o de novembro deste mesmo ano no Mato Grosso do Sul. Esfaqueada 15 dias após voltar de um ato em que participou em frente ao STF pelo reconhecimento dos direitos de seu povo.
O governo federal, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional devem desculpas concretas aos povos indígenas brasileiros, todos os poderes da República foram e são parte importante de seus problemas.
Esperamos que os demais ministros não sigam o entendimento da 2ª Turma por ocasião do julgamento do caso em plenário, que o voto seja pelo não provimento, reafirmando o direito originário às terras indígenas tão vilipendiado frente a tantas violências sofridas por estes povos, antes e depois de 1988, que se faça justiça aos povos indígenas do Brasil demarcando suas terras sem subterfúgios, que o STF seja parte da solução, afirmando o direito à justiça de transição.
A demarcação de suas terras é a principal reparação de vida aos povos indígenas pelo Estado e a sociedade brasileira.
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