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Apoio aos povos indígenas e repúdio à PEC 215/200
Senhora Presidente Dilma Roussef
Senhoras e Senhores Deputados ao Congresso
Senhores Ministros
Estatísticas oficiais estimam uma população de cerca de 900 mil indígenas no Brasil. São, ao todo, 305 povos que se comunicam em 274 distintas línguas. Esta incomensurável diversidade sociocultural de saberes e de práticas está em risco, com a aprovação da PEC 215/2000. A magnitude do que está em causa não pode ser subestimada. É um novo genocídio depois do que foi levado a cabo pelos colonialistas. E por essa razão estou consciente de medir bem as palavras quando afirmo que podemos estar perante um verdadeiro atentado contra a humanidade. Explico-me.
Autoridades brasileiras estão diante de uma decisão que pode abalar definitivamente a garantia dos direitos dos povos indígenas no país. Parlamentares da chamada bancada ruralista, que representa os grandes proprietários de terra no Congresso Nacional, tentam se valer do uso intensivo de forças policiais, de diversos “atalhos” quanto ao regimento e das mais variadas manobras políticas para tentar aprovar a todo e qualquer custo, no apagar das luzes desta legislatura ainda em andamento, parecer favorável à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, que retira do Poder Executivo e transfere para o próprio Legislativo a prerrogativa das demarcações de Terras Indígenas (TIs).
A PEC 215/2000 é um golpe frontal e impiedoso às vidas dos povos indígenas, pois tende a destituir as comunidades, na prática, da posse permanente de seus respectivos territórios (tradicionalmente ocupados) e do usufruto exclusivo das riquezas dos solos, dos rios e dos lagos nela existentes (devidamente previstos no art. 231 da Constituição de 1988). Caso venham a depender de uma obrigatória anuência por parte de membros do Parlamento, processos referentes a terras indígenas estarão definitivamente fadados à reprovação.
Assinado pelo deputado federal Osmar Serraglio (PMDB-PR), o parecer favorável à aprovação da PEC 215 na Comissão Especial vai ainda mais longe: abre a possibilidade para intervenções e modificações retroativas até mesmo em árduas e complexas demarcações já concluídas, além de estender também seu escopo para as regularizações de territórios quilombolas e de Unidades de Conservação (UCs). Não por acaso, indígenas de distintas regiões do país têm se mobilizado em atos públicos e protestos permanentes contra a proposta que os ruralistas teimam em tramitar de modo acelerado (para que não tenha que ser reavaliada ano que vem) na Câmara dos Deputados.
Tamanha é a arbitrariedade em torno da PEC 215/2000 que representantes e lideranças indígenas têm sido ostensivamente impedidas até de acompanhar as sucessivas sessões “públicas” nas quais a matéria está sendo analisada. Policiais chegaram a conter indígenas e apoiadores da causa dentro de uma sala da Comissão de Direitos Humanos, impedindo a saída do grupo. Aparatos foram acionados para obstruir a circulação e o ingresso de representantes dos povos nas dependências do Congresso; houve ações de dispersão de manifestantes (com disparo de spray de gás de pimenta) e até mesmo prisões foram efetuadas próximas ao Ministério da Justiça, onde se buscava agendar uma reunião para tratar do assunto.
Como se não bastasse, os próprios integrantes da Comissão Especial da PEC 215/2000 estão sob suspeita de participação em esquema ilegal de invasão de terras indígenas e de aproveitamento de parecer jurídico “patrocinado” por fazendeiros do Mato Grosso. A Justiça Federal do Mato Grosso enviou processo ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a corte máxima investigue os possíveis envolvimentos no caso tanto do relator Osmar Serraglio como do deputado Nílson Leitão (PSDB-MT), que vem a ser vice-presidente da comissão com parte substantiva de políticos com campanha financiada por empresas do agronegócio.
Tudo leva a crer que os ruralistas devem insistir na tentativa de aprovar a PEC 215/2000 até a próxima semana, quando se encerram as atividades legislativas. É fundamental, portanto, que o conjunto de autoridades e de entidades competentes que não pactuem com o cerceamento definitivo dos direitos indígenas atuem de forma concreta e efetiva para que o intento seja repelido em definitivo. Sinalizações de desacordo com a proposta, como a que subscreveu o Palácio do Planalto, são relevantes, mas é preciso mais empenho de agentes e coletivos políticos com compromisso social para sepultar os perigosos impulsos anti-indígenas. Além da própria Constituição Federal, instrumentos relevantes como a Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estão sendo solenemente ignoradas pelo ímpeto capitalista e colonial contido na referida matéria.
Em junho passado, uma comitiva de sete lideranças de diferentes etnias e regiões, a maior de sempre em Portugal, tendo à frente a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), esteve presente na Universidade de Coimbra para participar do Colóquio Internacional “Território, Interculturalidade e Bem-Viver: as lutas dos povos indígenas no Brasil”, organizado pelo Centro de Estudos Sociais no âmbito do Projeto ALICE (www.alice.ces.uc.pt), sob minha coordenação. Naquela ocasião, firmou-se um compromisso (Carta de Coimbra) de estreitamento de laços em torno de ações concretas em defesa dos direitos dos povos aos seus territórios ancestrais. É para honrar este compromisso que me dirijo-vos. E faço-o na convicção de que, os sacrificados povos indígenas, ao defenderem os seus territorios do avanço desenfreado do agronegócio e da exploração insustentável dos recursos naturais, estão a defender o futuro dos meus filhos e netos, o futuro dos vossos filhos e netos.
Boaventura de Sousa Santos
Coimbra, 17 Dezembro 2014
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