Numa cena de racismo arrepiante, parlamentares que compõem a CPI do Genocídio inviabilizaram o depoimento do indígena Paulino Terena, da terra indígena Pillad Rebuá, nesta quinta-feira, 31. Ele é a liderança de uma das principais retomadas Terena em Miranda (MS), região do Pantanal, e falaria sobre as pressões da vida na reserva e os ataques que ele e a comunidade vem sofrendo no acampamento onde moram desde 2013.
Paulino foi convocado à depor na CPI na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul. Optou por dar seu depoimento em sua língua materna. Mesmo com a presença de intérprete, os deputados Paulo Correa (PR), Mara Caseiro (PSDB) e Professor Rinaldo (PSDB), contudo, opuseram-se veementemente, inviabilizando a contribuição do indígena, acusando a ele e à intérprete Terena, a professora e mestre em educação Maria de Lourdes Elias, da aldeia Cachoeirinha, de mentirem sobre compreenderem ou não a língua portuguesa.
"É nos chamar de palhaços ter que transcorrer toda a nossa CPI com depoimento em Terena! Eu não entendo Terena! O senhor entende, deputado Paulo Correa? O senhor entende, deputado Rinaldo?", gritava Mara Caseiro. "(...) se ele tá no Brasil, nós precisamos ouvi-lo em português!". Correa chegou a apresentar vídeos em que Paulino dá entrevistas em português, como prova da má-fé do depoente.
ILEGALIDADE
"Não interessa se ele fala português ou não, é prerrogativa dele falar no idioma materno", explica o indígena Terena e advogado do Conselho Indigenista Missionário, Luiz Henrique Eloy. "Se o deputado obrigar ele falar português, comete constrangimento ilegal".
"A liderança é vítima de vários atentados, mas sai da Assembleia Legislativa como réu", comenta Eloy. "O artigo 231 da Constituição garante o respeito à cultura e à língua; o artigo 210 autoriza o uso da língua materna nas escolas... O artigo 193 do Código de Processo Penal e o artigo 12 da Convenção 169 da OIT asseguram o uso do idioma materno nos procedimentos judiciais. Como esses parlamentares podem simplesmente ignorar isso?", conclui.
HISTÓRICO
Paulino cresceu na Aldeia Moreira, uma reserva indígena de 94 hectares onde vivem cerca de 2,2 mil Terena. Em 2013, liderou a retomada de Pillad Rebuá, e foi alvo de diversas ameaças e ataques no contexto da luta pela terra.
Em dezembro de 2013, quatro homens encapuzados atearam fogo no carro de Paulino, que estava dentro do veículo. Na época, a tentativa de homicídio foi registrada na Polícia Civil da cidade, e foi atribuída a produtores rurais da região, em disputa pela posse de territórios reivindicados como tradicionais pelos Terena. Nas investigações nunca foram concluídas.
Também em Miranda, em junho de 2011, um ônibus que transportava cerca de 30 estudantes Terena, a maioria entre 15 e 17 anos, foi atacado com pedras e coquetéis molotov. Seis pessoas, incluindo o motorista, sofreram queimaduras. Quatro foram internadas em estado grave. A estudante Lurdesvoni Pires, de 28 anos, faleceu, vítima de ferimentos causados pelas queimaduras. Na época, lideranças Terena creditaram o ataque a proprietários rurais da região, no contexto da disputa pela demarcação das terras indígenas.
RACISMO
Apesar da pressão, Paulino insistiu em dar o depoimento em sua língua. No entanto, sob a intransigência dos três parlamentares, o presidente da CPI, João Grandão (PT) acabou por dispensar o indígena da oitiva, que saiu de lá direto para o Ministério Público Federal (MPF), onde registrará queixa-crime de racismo contra os deputados Paulo Correa e Mara Caseiro.
O Guarani Ñandeva Erpídio Pires, do tekoha Potrero Guasu, no município de Paranhos, também foi acompanhado de intérprete, mas, pressionado pelos parlamentares, aceitou depor em português.
ONU
Em visita ao Brasil, a relatora da ONU para direitos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, disse que "chorou junto" com Paulino, em reunião com o Conselho Terena em Campo Grande, em março deste ano.
"Este jovem quando falou comigo me contou como sua casa foi queimada pelos pistoleiros dos fazendeiros, para impedir o acesso dos Terena ao seu território ancestral. Enquanto este homem falava nos chorávamos juntos, eu, ele e muitos outros naquela sala. Ele disse que tem quatro filhos pequenos, e que é constantemente ameaçado. Ele não sabe até quando irá viver por causa de todas estas ameaças contra suas vidas", escreveu Victoria.