14 de novembro de 2015

Segundo Juristas, marco temporal de 1988 para terras indígenas é inconstitucional

Professor Dalmo Dallari ao lado de Eliseu Lopes Guarani Kaiowá (Foto: Tatiane Klein / ISA)


Por Rafael Nakamura, 

Seminário “Direitos dos Povos Indígenas em Disputa no STF” reuniu juristas, antropólogos e lideranças indígenas no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP. Os juristas Dalmo Dallari e José Afonso da Silva, além da subprocuradora geral da República Deborah Duprat, apontam inconstitucionalidades na tese do marco temporal utilizada pela 2ª Turma do STF para anular demarcações de Terras Indígenas.
Na tarde de terça-feira (10/11) juristas, antropólogos e lideranças indígenas estiveram reunidos no Salão Nobre da Faculdade de Direito (FD) da Universidade de São Paulo. O Seminário “Direitos dos Povos Indígenas em Disputa no STF” discutiu as recentes decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que anulam demarcações de três Terras Indígenas (TIs): a TI Guyraroka (MS) dos povos Guarani e Kaiowá, a TI Limão Verde (MS) do povo Terena e a TI Porquinhos (MA) do povo Canela-Apãnjekra. Entre os juristas, nomes como Dalmo de Abreu Dallari e José Afonso da Silva, ambos professores da FD da USP, além de Deborah Duprat, subprocuradora geral da República, foram unânimes em apontar inconstitucionalidades na tese do marco temporal utilizada para anular as demarcações.
A tese defendida por parte da 2ª Turma do STF é de que o direito dos povos indígenas à posse de seus territórios tradicionais teria como condição a presença das comunidades nas terras que reivindicam na data de promulgação da Constituição, o dia 05 de outubro de 1988.  Outra possibilidade seria a comprovação do esbulho renitente, ou seja, a resistência das comunidades indígenas à invasão de seus territórios por meio do conflito físico ou reivindicando a posse na justiça.
“O que a tese pretende dizer é que o que importa é quem estava na terra no dia em que entrou em vigor a Constituição. Ora, em muitos lugares eram invasores. Não só em terras indígenas, mas em terras particulares também”, argumenta o professor Dalmo Dallari. O jurista participou dos debates no período de elaboração da Constituição Federal de 1988 e defende que a tese do marco temporal não condiz com o texto que trata dos direitos territoriais dos povos indígenas. “Está na Constituição que o índio tem direito a terra de ocupação tradicional. A Constituição não exige que se estivesse fisicamente naquele lugar, naquele dia. É absolutamente contra a Constituição essa pretensa tese do marco temporal”, completa.
Para Dalmo Dallari, é um contrassenso exigir das comunidades indígenas a resistência às invasões por meios judiciais ou através do conflito físico. “Até pouco tempo atrás o índio não tinha o direito de entrar com ação judicial. É preciso também ressaltar que a possibilidade de resistência dos índios na terra é mínima, é muito pequena. Há muito casos em que os índios tentaram resistir e foram assassinados, porque muitos dos invasores de terras indígenas usam capangas armados para defender invasões”, afirma Dallari.
O professor José Afonso da Silva, considerado por seus pares no direito um dos maiores constitucionalistas da história brasileira, argumentou a favor dos direitos constitucionais dos povos indígenas e mais especificamente dos Guarani e Kaiowá da TI Guyraroka, caso para o qual ele prepara um parecer jurídico para subsidiar as decisões da justiça federal. “O esbulho é praticado pelos não-índios e a solução do conflito deveria recair sobre esses esbulhadores e não sobre os índios quando se exige deles que, mesmo iniciada no passado, sua resistência persista até o marco demarcatório temporal”, diz.
O jurista critica que a tese do marco temporal desconsidera direitos anteriores à Constituição de 1988, já que documentos coloniais já estabeleciam os direitos dos índios sobre as terras ocupadas e a Constituição de 1934 é a primeira a acolher expressamente o indigenato, pelo qual se reconhece que os direitos dos povos indígenas sobre os territórios que ocupam são originários. “Deslocar o marco para 1988 e abandonar o início efetivo do reconhecimento constitucional que é de 1934 é realmente deturpar os conceitos”, aponta o especialista José Afonso.
José Afonso, Manuela Carneiro da Cunha e a Subprocuradora Deborah Duprat (Foto: Tatiane Klein / ISA)
Deborah Duprat, subprocuradora geral da República e coordenadora da 6ª Câmara do Ministério Público Federal que trata de assuntos referentes às populações indígenas e comunidades tradicionais, também expressou sua opinião contrária à anulação das demarcações de terras indígenas pelo STF quando tratou do caso da TI Limão Verde. Segundo Duprat a 2ª Turma do Supremo foi no sentido contrário do direito ao anular a demarcação de uma terra que já estava registrada em nome da União desde 2003. “A Suprema Corte do país consegue desestabilizar uma relação jurídica que estava pacificada há mais de dez anos. Eu acho que isso é a antítese de se fazer direito”, comenta.
Assim como Dalmo Dallari, a subprocuradora Duprat lembrou que até 1988 os índios estavam submetidos aos órgãos tutelares, o que impossibilitava reivindicar seus direitos por conta própria. “Os órgãos tutelares permaneceram, até 1988, como órgãos de entrega de Terras Indígenas para setores econômicos, especialmente para o nosso velho conhecido agronegócio”, relata.
Em sua fala, o professor Samuel Barbosa, também da Faculdade de Direito da USP, buscou ampliar a discussão citando compromissos internacionais do Estado brasileiro que também tratam da garantia dos direitos dos povos indígenas a seus territórios tradicionais, em especial a Convenção 169 da OIT e a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, da ONU. “Eu citei esses dois diplomas porque ambos reconhecem o direito dos índios de voltar a ocupar suas terras tradicionais”, aponta.
O seminário trouxe também o depoimento de lideranças indígenas. Dentre elas, Eliseu Lopes, liderança Guarani e Kaiowá do tekoha Kurusu Ambá, Mato Grosso do Sul, que sofre constantes ameaças dos fazendeiros locais. Recentemente os conflitos no estado do MS resultaram na morte de Semião Vilhalva, liderança do tekoha Nhanderu Marangatu assassinado com tiros que atingiram seu rosto. “O Mato Grosso do Sul parece uma terra sem leis. Os fazendeiros, os políticos locais, falam abertamente contra nossos direitos. Matar indígena é comum”, conta Eliseu Lopes.
Além de Eliseu participaram as lideranças indígenas Sônia Guajajara da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e David Martim Popyguá, da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). A mediação dos debates foi feita pela antropóloga professora Manuela Carneiro da Cunha, que coordenou o evento juntamente com o professor Samuel Barbosa.
O Seminário “Direitos dos Povos Indígenas em Disputa no STF” foi promovido pela Associação Juízes para a Democracia (AJD), pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Faculdade de Direito [Departamento de Filosofia e Teoria Geral] e Centro de Estudos Ameríndios da USP, Instituto Socioambiental (ISA) e Campanha Índio é Nós.

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