Professor Dalmo Dallari ao lado de Eliseu Lopes Guarani Kaiowá (Foto: Tatiane Klein / ISA) |
Por Rafael Nakamura,
Seminário “Direitos dos Povos Indígenas em Disputa no STF” reuniu juristas, antropólogos e lideranças indígenas no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP. Os juristas Dalmo Dallari e José Afonso da Silva, além da subprocuradora geral da República Deborah Duprat, apontam inconstitucionalidades na tese do marco temporal utilizada pela 2ª Turma do STF para anular demarcações de Terras Indígenas.
Na tarde de terça-feira (10/11) juristas, antropólogos e lideranças
indígenas estiveram reunidos no Salão Nobre da Faculdade de Direito (FD)
da Universidade de São Paulo. O Seminário “Direitos dos Povos Indígenas
em Disputa no STF” discutiu as recentes decisões da 2ª Turma do Supremo
Tribunal Federal (STF) que anulam demarcações de três Terras Indígenas
(TIs): a TI Guyraroka (MS) dos povos Guarani e Kaiowá, a TI Limão Verde
(MS) do povo Terena e a TI Porquinhos (MA) do povo Canela-Apãnjekra.
Entre os juristas, nomes como Dalmo de Abreu Dallari e José Afonso da
Silva, ambos professores da FD da USP, além de Deborah Duprat,
subprocuradora geral da República, foram unânimes em apontar
inconstitucionalidades na tese do marco temporal utilizada para anular
as demarcações.
A tese defendida por parte da 2ª Turma do STF é de que o direito dos
povos indígenas à posse de seus territórios tradicionais teria como
condição a presença das comunidades nas terras que reivindicam na data
de promulgação da Constituição, o dia 05 de outubro de 1988. Outra
possibilidade seria a comprovação do esbulho renitente, ou seja, a
resistência das comunidades indígenas à invasão de seus territórios por
meio do conflito físico ou reivindicando a posse na justiça.
“O que a tese pretende dizer é que o que importa é quem estava na
terra no dia em que entrou em vigor a Constituição. Ora, em muitos
lugares eram invasores. Não só em terras indígenas, mas em terras
particulares também”, argumenta o professor Dalmo Dallari. O jurista
participou dos debates no período de elaboração da Constituição Federal
de 1988 e defende que a tese do marco temporal não condiz com o texto
que trata dos direitos territoriais dos povos indígenas. “Está na
Constituição que o índio tem direito a terra de ocupação tradicional. A
Constituição não exige que se estivesse fisicamente naquele lugar,
naquele dia. É absolutamente contra a Constituição essa pretensa tese do
marco temporal”, completa.
Para Dalmo Dallari, é um contrassenso exigir das comunidades
indígenas a resistência às invasões por meios judiciais ou através do
conflito físico. “Até pouco tempo atrás o índio não tinha o direito de
entrar com ação judicial. É preciso também ressaltar que a possibilidade
de resistência dos índios na terra é mínima, é muito pequena. Há muito
casos em que os índios tentaram resistir e foram assassinados, porque
muitos dos invasores de terras indígenas usam capangas armados para
defender invasões”, afirma Dallari.
O professor José Afonso da Silva, considerado por seus pares no
direito um dos maiores constitucionalistas da história brasileira,
argumentou a favor dos direitos constitucionais dos povos indígenas e
mais especificamente dos Guarani e Kaiowá da TI Guyraroka, caso para o
qual ele prepara um parecer jurídico para subsidiar as decisões da
justiça federal. “O esbulho é praticado pelos não-índios e a solução do
conflito deveria recair sobre esses esbulhadores e não sobre os índios
quando se exige deles que, mesmo iniciada no passado, sua resistência
persista até o marco demarcatório temporal”, diz.
O jurista critica que a tese do marco temporal desconsidera direitos
anteriores à Constituição de 1988, já que documentos coloniais já
estabeleciam os direitos dos índios sobre as terras ocupadas e a
Constituição de 1934 é a primeira a acolher expressamente o indigenato,
pelo qual se reconhece que os direitos dos povos indígenas sobre os
territórios que ocupam são originários. “Deslocar o marco para 1988 e
abandonar o início efetivo do reconhecimento constitucional que é de
1934 é realmente deturpar os conceitos”, aponta o especialista José
Afonso.
José Afonso, Manuela Carneiro da Cunha e a Subprocuradora Deborah Duprat (Foto: Tatiane Klein / ISA)
Deborah Duprat, subprocuradora geral da República e coordenadora da
6ª Câmara do Ministério Público Federal que trata de assuntos referentes
às populações indígenas e comunidades tradicionais, também expressou
sua opinião contrária à anulação das demarcações de terras indígenas
pelo STF quando tratou do caso da TI Limão Verde. Segundo Duprat a 2ª
Turma do Supremo foi no sentido contrário do direito ao anular a
demarcação de uma terra que já estava registrada em nome da União desde
2003. “A Suprema Corte do país consegue desestabilizar uma relação
jurídica que estava pacificada há mais de dez anos. Eu acho que isso é a
antítese de se fazer direito”, comenta.
Assim como Dalmo Dallari, a subprocuradora Duprat lembrou que até
1988 os índios estavam submetidos aos órgãos tutelares, o que
impossibilitava reivindicar seus direitos por conta própria. “Os órgãos
tutelares permaneceram, até 1988, como órgãos de entrega de Terras
Indígenas para setores econômicos, especialmente para o nosso velho
conhecido agronegócio”, relata.
Em sua fala, o professor Samuel Barbosa, também da Faculdade de
Direito da USP, buscou ampliar a discussão citando compromissos
internacionais do Estado brasileiro que também tratam da garantia dos
direitos dos povos indígenas a seus territórios tradicionais, em
especial a Convenção 169 da OIT e a Declaração dos Direitos dos Povos
Indígenas, da ONU. “Eu citei esses dois diplomas porque ambos reconhecem
o direito dos índios de voltar a ocupar suas terras tradicionais”,
aponta.
O seminário trouxe também o depoimento de lideranças indígenas.
Dentre elas, Eliseu Lopes, liderança Guarani e Kaiowá do tekoha Kurusu
Ambá, Mato Grosso do Sul, que sofre constantes ameaças dos fazendeiros
locais. Recentemente os conflitos no estado do MS resultaram na morte de
Semião Vilhalva, liderança do tekoha Nhanderu Marangatu assassinado com
tiros que atingiram seu rosto. “O Mato Grosso do Sul parece uma terra
sem leis. Os fazendeiros, os políticos locais, falam abertamente contra
nossos direitos. Matar indígena é comum”, conta Eliseu Lopes.
Além de Eliseu participaram as lideranças indígenas Sônia Guajajara
da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e David Martim
Popyguá, da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). A mediação dos debates foi
feita pela antropóloga professora Manuela Carneiro da Cunha, que
coordenou o evento juntamente com o professor Samuel Barbosa.
O Seminário “Direitos dos Povos Indígenas em Disputa no STF” foi
promovido pela Associação Juízes para a Democracia (AJD), pelo Centro de
Trabalho Indigenista (CTI), Faculdade de Direito [Departamento de
Filosofia e Teoria Geral] e Centro de Estudos Ameríndios da USP,
Instituto Socioambiental (ISA) e Campanha Índio é Nós.
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