Marcela Belchior, em Adital
O
que parecia ser um fim de linha para a cultura e sobrevivência do povo indígena
Kremak, atingido pela poluição do rio Doce, na tragédia de Mariana, no sudeste
brasileiro [Estado de Minas Gerais], pode reacender uma luta que se estende por
pelo menos 25 anos. Após ficar sem condições de subsistirem sem o recurso da
água do rio, a população Krenak se mobiliza em torno de uma solução possível
para a continuidade da comunidade: ampliar a área demarcada do território
indígena na região e migrar para uma nova localidade.
Geovani Krenak lamenta a morte do rio Doce: "somos um só, a gente e a natureza, um só”, afirma. Foto: Reprodução. |
Em
entrevista à Adital, Eduardo
Cerqueira, membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Regional Leste,
que compreende os estados de Minas Gerais, Espírito Santo e o extremo sul da
Bahia, afirma que, como forma de resistir à tragédia, a comunidade Krenak
estuda reivindicar ao governo federal a expansão da área demarcada em mais 12
mil hectares. Abrangendo a região onde, atualmente, se localiza o Parque
Estadual de Sete Salões, uma das unidades de conservação da natureza
pertencentes ao Governo de Minas Gerais.
"Achamos
a estratégia interessante, já que a área atual não dá mais condições de sobrevivência.
Alguma coisa tem que ser feita”, atesta Cerqueira. Atualmente, a área demarcada
do território Kremak abrange 4,7 mil hectares. Nessa zona, mais de três
quilômetros de extensão do rio Doce foram atingidos e ficaram sem condições de
uso para beber, pescar, nadar e irrigar a vegetação do entorno, no Município de
Resplendor, onde vivem 126 famílias Kremak.
O
Parque de Sete Salões foi criado, em 1998, e abrange os municípios de
Conselheiro Pena, Itueta e Santa Rita do Itueto, correspondendo a uma das
maiores remanescências de Mata Atlântica do leste mineiro, com montanhas, matas
e cachoeiras. Além disso, a área demandada tem potencial para que os indígenas
atuem também com turismo comunitário, recebendo visitantes e comercializando
artesanato, sem danos ao meio ambiente.
O
território da população Kremak, em Minas Gerais, foi demarcado nos anos 1990,
mas ficou de fora toda a extensão do parque que, hoje, pode voltar à pauta. No
início dos anos 2000, os indígenas fizeram uma reivindicação à Fundação
Nacional do índio (Funai) e o governo federal chegou a realizar um estudo técnico
para a questão, que até hoje não foi publicado. Na opinião dos Kremak, agora, o
momento é mais do que adequado para concretizar a demanda histórica da
população.
"Várias
lideranças indígenas se preocupam com a questão territorial. Agora, há necessidade
de colocar essa preocupação no foco da discussão. (...) Essa parte da região
não foi atingida pelos rejeitos”, defende o indigenista. Segundo o conselheiro
do Cimi, desde que houve a tragédia socioambiental, os indígenas atingidos têm
sido atendidos com apoio emergencial, por meio de fornecimento de água com
carros-pipa, repasse de cestas básicas e suporte financeiro para as famílias, o
que garantiria a sobrevivência da comunidade apenas em curto prazo.
"Essa
tragédia foi intensificada por um período de forte estiagem. Há mais de um ano
não chove na região. Por isso, os afluentes do rio Doce estão secos. (...) O
terreno também não é favorável à agricultura. A pecuária seria a forma mais
comum de sobrevivência dos indígenas, mas não é possível, sem água”, explica
Cerqueira.
Membros do povo Krenak, pai e filho navegam nas águas turvas completamente contaminadas do rio Doce. Foto: Reprodução. |
Entenda o caso
Uma
enxurrada de lama composta por rejeitos de mineração (resíduos, impurezas e
material usado para a limpeza de minérios) escoa ao longo dos 800 quilômetros
do rio Doce desde o último dia 05 de novembro, após o rompimento de barragem
Fundão, da mineradora Samarco. Esta é controlada pela Vale, responsável por
inúmeros e graves danos socioambientais, no Brasil, e a multinacional
anglo-australiana BHP Billiton, duas das maiores empresas de mineração do
mundo.
Além
de soterrar todo um distrito, atingir vários outros e poluir o rio Doce, se
estendendo pelos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, a lama chegou
ao mar no último fim de semana, amplificando ainda mais os danos ambientais,
que podem levar mais de duas décadas para começarem a apresentar sinais de renovação.
Ademais do prejuízo na fauna e na flora, sete mortes e 17 desaparecimentos foram
registrados até o momento.
Povo Krenak fecha
estrada em protesto
No
início da última semana, representantes do povo indígena Krenak, cuja tribo se
situa às margens do rio Doce, interromperam, em protesto, a Estrada de Ferro
Vitória-Minas. Sem água havia mais de uma semana, eles diziam que só sairiam
quando os responsáveis pela tragédia fossem conversar com eles. "Destruíram
nossa vida, arrasaram nossa cultura e nos ignoram. Não aceitamos”, asseverou o
índio Aiá Krenak à imprensa.
Considerado
sagrado, em uma cultura cuja cosmovisão baseia-se na interligação entre todos
os seres — humanos, vegetais, animais etc. —, o rio que atravessa a tribo era
utilizado por 350 índios, para consumo, banho e limpeza. "Com a gente, não tem
isso de nós, o rio, as árvores, os bichos. Somos um só, a gente e a natureza,
um só”, disse Geovani Krenak.
Povo Krenak em protesto na Estrada de Ferro Vitória-Minas. Foto: Reprodução. |
Sentados
ao longo dos trilhos, sob um sol de 41 graus, os índios cantavam música em gratidão
ao rio, no idioma Krenak. "O rio é lindo. Obrigado, Deus, pelo rio que nos
alimenta e banha. O rio é lindo. Obrigado, Deus, pelo nosso rio, pelo rio de
todos”, traduziu à imprensa o pajé Ernani Krenak, de 105 anos de idade.
Sua
irmã, Dekanira Krenak, de 65 anos, atenta que o impacto da morte do rio não
atinge apenas os povos indígenas, sendo fonte de recursos para muitas
comunidades. "Não é ‘só nós’, os brancos que moram também na beira do rio
precisam muito dessa água, eles convivem com essa água, muitos pescadores
tratam a família com os peixes”, aponta.
Acampados
no local em barracas de lona e colchonetes ao relento, os índios, agora, têm de
enfrentar também um enxame insuportável de insetos. "Nunca foi assim”, diz o
índio Geovani Krenak. "Esses mosquitos vieram com essa água podre, com os
peixes que nos alimentavam e agora estão descendo o rio, mortos”, relata.
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