O Mato Grosso do Sul é hoje o estado mais violento em relação aos povos indígenas no Brasil. Segue-o neste sinistro ranking o estado da Bahia. Os fatos que apontam para esta
constatação do indigenista Haroldo Heleno, do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), estão discriminados no relatório desta instituição
sobre a “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil” para o ano de
2014. Esta triste realidade revela a pertinência dos debates realizados
na última quinta-feira (19), em ocasião da “I Semana Internacional dos
Direitos Humanos”, organizada pelo Ministério Público Estadual da Bahia,
em Salvador. O evento que ocorreu
entre dias 18 e 20 de novembro de 2015, contou naquela ocasião com a
participação das lideranças de comunidades indígenas no Mato Grosso do
Sul, a Guarani e Kaiowá Valdelice Veron e o Guarani-Ñandeva Natanael
Caceres, que vieram a Salvador expor a situação aterradora em que vivem
os indígenas naquela região e, como afirmaram os próprios líderes, pedir
socorro diante de um contexto cada dias mais insuportável à
sobrevivência de suas comunidades. Dores e sofrimentos certamente
compartilhados pelos povos indígenas na Bahia.
A
tarde daquela quinta-feira de evento, dedicada à discussão sobre a
“proteção dos direitos dos povos indígenas”, contou ainda com a
participação de professores universitários, representantes dos poderes
públicos, jornalistas e indigenistas que participaram dos dois painéis
então realizados.
As
discussões tiveram início com a exposição da professora e pesquisadora
da Universidade Federal da Bahia Maria Hilda B. Paraíso sobre “Direitos
indígenas na Ditadura”. Pinçando algumas das muitas situações de total
desprezo aos direitos (humanos) indígenas na época, a professora
ressaltou a atuação controversa do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O
projeto militar para o Estado brasileiro – envolvendo a integração do
território nacional como peça chave do desenvolvimentismo apregoado, a
primazia da segurança interna e o controle dos comportamentos – implicou
na ampla questionabilidade dos direitos indígenas. Desse modo, as
demarcações de terras indígenas no período ditatorial foram ínfimas, com
a exceção do Parque Indígena do Xingu, e muitas etnias foram
massacradas e extintas com a cumplicidade do SPI, justificada pela idéia
de que apenas os mais aptos sobreviveriam.
Em
seguida passou-se a palavra para as lideranças guarani. Natanael
afirmou que os índios no Mato Grosso do Sul não vivem, mas apenas
sobrevivem às duras custas, conseguindo manter condições mínimas para
tanto. Vítimas de um contínuo genocídio e da destruição dos ambientes
que tradicionalmente ocupam, estes Guarani não têm a mínima
possibilidade hoje de estabelecerem o seus Tekoha,
que, segundo Natanael tratam-se dos “lugares onde se é”, ou seja, que
viabilizam a existência específica do povo Guarani, sua vida de fato.
Natanael afirmou ainda que esta situação pode piorar se a PEC 215 for
aprovada. Ele condenou veemente esta Proposta de emenda à Constituição.
Seguindo-se
à fala de Natanael, Valdelice Veron, liderança Guarani-Kaiowá
apresentou o vídeo onde o corpo de um guerreiro guarani, Semião
Vilhalva, é arrastado às pressas por seus companheiros, ao som de seus
lamentos, após ter sido assassinado com um tiro no rosto por fazendeiros
da região no dia 29 de agosto deste ano. Valdelice então denunciou a
situação de total desrespeito a seu povo diante das próprias leis
nacionais e das convenções internacionais promulgadas pelo Estado
brasileiro. Segundo ela, de 2003 a 2013, 290 lideranças já foram mortas
por conflito fundiário no Mato Grosso do Sul. Nesta lista de assassinato
consta a do seu pai, Marco Veron assassinado em 2003. Valdelice também
denunciou por várias vezes o governo brasileiro de omissão e conivência
com esta situação de violência contra os povos indígenas do Brasil,
denunciou também o Congresso Nacional, em especial os parlamentares que
formam a bancada ruralista, que tentam retirar os direitos e agridem
constantemente os indígenas.
O
procurador da República no município de Dourados/MS, Marco A. Almeida
tratou em sua exposição da tese do marco temporal, utilizada como
argumento em decisões da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF)
contrárias a demarcação de terras indígenas Guyra Roka dos
Guarani-Kaiowá (MS); Porquinhos dos Canela Apanyekrá (MA); e Limão Verde
dos Terena (MS), esta última já tendo sido homologada em 2003. Segundo a
tese do marco temporal utilizada por representantes do STF em tais
julgamentos, os povos indígenas só teriam direito às terras por eles
tradicionalmente ocupadas se as estivessem ocupando de fato em 1988,
quando foi promulgada a Constituição Federal, ou se estivessem em
lítigio jurídico ou conflito direto por aquelas terras. Desta forma, os
juristas envolvidos ignoram o fato de que na época, por um lado, estando
ainda sob regime tutelar, os indígenas não tinham o direito de se
representar legalmente, e, por outro, as possibilidades de enfrentamento
direto na época eram ínfimas, como demonstrado anteriormente pela
professora Maria Hilda B. Paraíso. As referidas decisões da 2ª turma do
STF devem ser amplamente combatidas, pois abrem um precedente criminoso
contra os povos indígenas no Brasil.
O fechamento do painel foi feito pela professora e pesquisadora da Universidade Estadual da Bahia Euzelene R. Aguiar, que tratou da questão dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas através da perspectiva da área da saúde. Para ela, de um quadro marcado por doenças infeccionais, os povos indígenas no Brasil sofrem atualmente majoritariamente com doenças crônicas, tais como obesidade, alcoolismo, depressão, consumo de drogas, entre outras. Segundo a pesquisadora, isso se deve sobretudo às situações de risco em que vivem estas populações acarrentando traumas diversos e intensos aos indivíduos.
O fechamento do painel foi feito pela professora e pesquisadora da Universidade Estadual da Bahia Euzelene R. Aguiar, que tratou da questão dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas através da perspectiva da área da saúde. Para ela, de um quadro marcado por doenças infeccionais, os povos indígenas no Brasil sofrem atualmente majoritariamente com doenças crônicas, tais como obesidade, alcoolismo, depressão, consumo de drogas, entre outras. Segundo a pesquisadora, isso se deve sobretudo às situações de risco em que vivem estas populações acarrentando traumas diversos e intensos aos indivíduos.
O
próximo painel foi inciado pelo indigenista Haroldo Heleno do CIMI.
Para ele, na Bahia a luta social é um crime, o que se evidencia pela
perseguição, criminalização e encarceramentos autoritários de lideranças
indígenas, tal como o caso do cacique Babau, Tupinambá da Serra do
Padeiro, que já foi preso três vezes sem ter quaisquer acusações
consistentes contra si. De todo modo, Haroldo afirma que o trabalho do
CIMI visa o princípio de unidade da luta dos povos e comunidades
tradicionais. Em tom otimista, ele vislumbra as possibilidades geradas
pela comunicação e articulação destas populações, como a que vem
ocorrendo no sul da Bahia, expressa pelo evento ocorrido no Assentamento
Terra Vista em Arataca/BA, a “Jornada Agroecológica”, que reuniu cerca
de 2 mil pessoas. O indigenista ainda traçou um panorama geral de uma
“estratégia antiindígena” do poder legislativo que vem sendo coordenada
pelas bancadas “BBB” – do Boi, da Bala e da Bíblia – e que tem como
expoente máximo o Projeto de Emenda Constitucional 215/2000, que visa
transferir a responsabilidade das decisões sobre a demarcação de terras
indígenas, territórios quilombolas e Unidades de Conservação da esfera
do poder executivo para a do legislativo Congresso Nacional. Ato
obviamente anticonstitucional que visa reter os processos de demarcação
destes territórios. Apesar do triste cenário que é produzido por agentes
públicos e privados, Haroldo vislumbra possibilidades de reversão pela
mobilização política dos povos indígenas, tal como a “Campanha
Internacional de Boicote ao Agronegócio no Mato Grosso do Sul”, lançada
pelos povos indígenas no estado e que pode ser acompanhada nas redes
sociais virtuais na internet.
Seguindo-se
a apresentação de Haroldo, o juiz federal e professor da UNEB João B.
de Castro Jr. tratou de uma “outra” estratégia antiindígena, que
consiste no processo glotocida histórico no Brasil, ou seja, de
extermínio das línguas indígenas que, desde o início da colonização, vem
extinguindo os bancos de experiências sociocognitivas representados por
estas línguas. Além disso, ele aproveitou para criticar o grande
isolamento disciplinar de muitos juristas brasileiros que, dessa forma,
não se defrontam com a realidade social sobre a qual tratam legalmente.
Por
fim, o jornalista Marcelo Cristóvão, do Ministério Público Federal no
Mato Grosso do Sul, tratou do início da questão indígena no estado com a
Guerra do Paraguai, que em grande parte foi vencida pelos indígenas que
já viviam na região e que foram recrutados pelas tropas nacionais. Com o
fim da guerra, títulos de terra foram expedidos para aqueles que
serviram no combate às forças paraguais. As terras na região foram então
ocupadas pelos detentores destes títulos através do assassinato,
expulsão ou submissão dos indígenas nativos da região. Hoje, o Mato
Grosso do Sul apresenta o maior índice de suicídios no mundo e, por
estarem próximos à fronteira, a situação de violência e impunidade
contra os povos indígenas é agravada. Por fim ele apresentou os vídeos
produzidos pelo MPF/MS sobre a realidade destes povos e que estão
disponíveis no blog “Tekohá”.
Ao
fim das palestras foi passada a palavra para o jovem Tupinambá de
Olivença Rômulo, que fez uma contundente denúncia ao Estado nacional por
desprezar completamente os direitos dos povos originários no País que
emocionou os presentes.
Realizado
no estado da Bahia, onde vivem cerca de 23 etnias indígenas que lutam
cotidianamente para r-existirem ao avanço expropriatório do capital, a I
Semana Internacional de Direitos Humanos, promovendo a exposição e o
debate sobre as atrocidades cometidas contra povos indígenas no Mato
Grosso do Sul, contribuiu com a perspectiva de uma luta unificada no
Brasil pelos direitos e territórios destas populações. A finalização dos
debates daquela quinta-feira foi realizada pelas lideranças guarani
através de uma roda de danças e cantos tradicionais. Valdelice Veron,
líder Guarani Kaiowá, disse que aqueles cantos lhe foram ensinados por
sua mãe e têm também como objetivo aliviar a mente daqueles que pensam
demais. Talvez o que ela esteja indicando é que precisamos deixar um
pouco de pensar e passar a sentir, a dor e o sofrimento com que hoje se constrói a nação brasileira, para então agir em prol de um mundo humano que envolva de fato a liberdade plena de todos seus sujeitos.
Salvador, 20 de novembro de 2015
Texto
e fotos por Ricardo S. Freire, mestrando em geografia na Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e é parceiro do Cimi na Bahia.
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