16 de julho de 2015

Sob ordem de despejo, comunidade Guarani e Kaiowá afirma que não voltará para beira de rodovia



Fonte da notícia

Dona Damiana e seus guerreiros e guerreiras Guarani e Kaiowá vivem, enquanto você lê esse texto, tomados pela angústia do único prazo que as autoridades costumam cumprir no Mato Grosso do Sul: menos de 10 dias para a Polícia Federal chegar ao tekoha – lugar onde se é – Apyka’i, município de Dourados, e despejar à força a comunidade de Curral do Arame do território tradicional. Os indígenas não irão sair, assim afirma dona Damiana. “Justiça e governo não entenderam que nosso povo nunca vai deixar suas terras para trás. A gente só pode ‘Ser’ aqui, no lugar em que sempre vivemos. Vamos continuar a morrer e a nascer lutando por nossas terras”, diz dona Damiana, que apela: “Os interesses econômicos valem mais do que a vida de um povo? Se para o branco é assim, nem para ele existe futuro”. Uma campanha pela demarcação do Apyka'i tenta sensibilizar as autoridades e fazer denúncias.
Assista ao documentário – Apyka’i: Vida e Luta pelo Tekoha    
O despejo foi determinado pelo juiz da 1ª Vara Federal de Dourados, Fábio Kaiut Nunes. A Advocacia-Geral da União (AGU) não quer recorrer da decisão, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), porque acredita não ter elementos para embasar o pedido de liminar pela suspensão do despejo. Afinal, justifica o órgão, não há procedimento demarcatório em curso. Acontece que no ano passado, a Fundação Nacional do Índio (Funai) extinguiu o Grupo de Trabalho Douradospeguá, demarcação de tekohas Guarani e Kaiowá em que se encontra a demanda do Apyka’i.   
Com isso, o juiz tem tido toda a liberdade para pressionar a Polícia Federal (PF) a cumprir sua decisão. Em busca de um despejo pacífico, ao menos para a polícia, um acordo entre a PF, Ministério Público Federal (MPF) e a Funai, durante reunião no final da semana passada, chegou ao denominador comum de duas semanas de prazo antes da execução da sentença contra a comunidade Curral do Arame, que vive em menos de 5 hectares, bem ao lado da BR-463, entre os municípios de Dourados e Ponta Porã. Sem ações judiciais impetradas em instâncias superiores contra a decisão do juiz Fábio Kaiut Nunes, a Funai tenderá a negociar a saída dos indígenas.   
A posição do juiz desconsidera que do Apyka’i os Guarani e Kaiowá foram expulsos pelos fazendeiros em 1999. Não reconhecer tais violências tornou-se uma prática do juiz Fábio Kaiut Nunes. Em outra decisão recente, absolveu o dono da Gaspem do pagamento de indenização coletiva à aldeia Guaivyry. A empresa de segurança executou uma operação de ataque contra a comunidade. Na ocasião, o cacique Nísio Gomes acabou assassinado. Conforme investigações da PF e do MPF, a Gaspem está envolvida ainda em outras intimidações e assassinatos de lideranças indígenas no MS, inclusive no Apyka’i, configurando um verdadeiro ‘consórcio da morte’ contra os povos indígenas.
BNDES investiu no ‘negócio das arábias’
A comunidade Curral do Arame está “à sombra de um delírio verde” (assista aqui). Uma das propriedades incidentes no Apyka’i é a Fazenda Serrana. O dono chama-se Cássio Guilherme Bonilha Tecchio, que aluga as terras para a Usina São Fernando. A cana-de-açúcar é plantada em larga escala para a produção de etanol ao mercado mundial.
O dono da usina é José Carlos Bumlai, amigo pessoal e conselheiro do ex-presidente Lula. Em 2008, o empresário conseguiu junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ao Banco do Brasil altos investimentos para a construção da usina. O ano era de plena crise financeira mundial, mas a “marolinha” que atingiu o Brasil, conforme o então Lula dizia, só prejudicou mesmo as vítimas do desenvolvimento nacional.
Atualmente a Usina São Fernando acumula uma dívida de 1,3 bilhão de reais, sendo os bancos públicos os maiores credores (530 milhões), entre outras 12 instituições financeiras. A usina deve também para fornecedores, fiscos estadual, federal e municipal, Previdência Social e não tem pago os salários dos trabalhadores. Em julho de 2014, 49% da empresa foi comprada por um grupo de investidores dos Emirados Árabes Unidos, fato que comprova que o inimigo não é apenas nacional, mas também internacional.

Apyka’i, interrompido

Desde que foram expulsos do Apyka’i, a comunidade de Curral do Arame realiza retomadas nas terras invadidas pela Fazenda Serrana. Em 2008, ano em que o BNDES e o Banco do Brasil injetaram dinheiro na usina, os indígenas ocuparam uma pequena área da fazenda, bem próxima de uma mata da Reserva Legal. No entanto, segundo os indígenas de Apykai, o local foi cercado pelos “vigilantes” da usina, enviados pela empresa de segurança particular Gaspem, contratada pela Usina São Fernando. Os “vigilantes” impediram a entrada da Funai e do órgão de saúde indígena estatal para atendimento aos indígenas. Em abril de 2009, a Justiça determinou a reintegração de posse ao fazendeiro da área ocupada pelos indígenas, enviando a comunidade de volta às margens da BR-463.
Em setembro do mesmo ano, um incêndio durante ataque de nove jagunços fortemente armados, ligados ao quadro efetivo da Gaspem, conforme investigações policiais, fez com que o MPF ingressasse com processo de responsabilização dos donos da usina por tentativa de genocídio. Ao contrário do que acontece com as ações contra os indígenas, rapidamente julgadas e executadas, o processo terminou arquivado e a comunidade seguiu entre a cerca e o asfalto. Vivia, como ainda vive, das cestas básicas enviadas pelo governo. No período, crianças foram atropeladas e mortas. Na foto, o túmulo do pequeno Gabriel Guarani e Kaiowá, morto depois de atropelado por um caminhão. O frio, a fome e a falta de água tornaram o contexto ainda mais dramático para os indígenas.
Durante todo esse período, envolvendo a última retomada, a comunidade do Apyka’i acumulou o passivo da desastrosa gestão do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo para a questão indígena. Cardozo coordenou o desmonte da Funai, paralisou as demarcações das terras indígenas e ao lado da Luiz Inácio Adams, advogado-geral da União, coloca em prática e de forma silenciosa a Portaria 303, nunca revogada pelo governo federal. O ministro é ainda o autor da maior falácia dos últimos tempos para a resolução de conflitos envolvendo a demarcação das terras indígenas no Brasil: as mesas de diálogo. Subserviente aos interesses econômicos e de políticos ruralistas, ou simplesmente latifundiários, Cardozo suspendeu demarcações Brasil afora para instalar tais mesas, que efetivamente nunca garantiram o cumprimento da Constituição; seja para os indígenas quanto para os não-índios que ocupam as terras tradicionais.  

MPF pergunta sobre os mortos

O MPF do Mato Grosso do Sul peticionou a Justiça Federal questionando o modo como será realizado o cumprimento de ordem de reintegração de terra da comunidade Curral do Arame. No local, foram identificados três cemitérios indígenas, que somam nove túmulos de integrantes da comunidade. A área é de grande valor cultural para os índios e a preservação do espaço, de maneira intocada, é considerada por antropólogos como relevante para o grupo.
Mexer nesses túmulos é crime, conforme aponta o MPF. Segundo a legislação penal brasileira, a retirada indiscriminada dos corpos enterrados pode tipificar as infrações penais de violação de sepultura e de vilipêndio ao cadáver. A identificação dos cemitérios é fato novo na ação de reintegração. Por esse motivo, o MPF solicitou análise do pedido pela própria Justiça Federal ou encaminhamento da demanda ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). De acordo com o MPF, “a petição busca um posicionamento oficial do judiciário, de modo a evitar violações ao direito e à história da comunidade”.
Conforme o MPF, o Mato Grosso do Sul é a “Faixa de Gaza brasileira”. Tal como os palestinos são acossados pelos israelenses para que saiam dos territórios que ocupam tradicionalmente, e por isso são atacados de forma impiedosa, aos indígenas também se nega a possibilidade de que vivam em suas terras tradicionais e para isso fazendeiros e o governo federal lançam sobre estes povos toda sorte de ataques, seja não demarcando os territórios, causando dissociações, fome, alcoolismo e suicídios, quanto os atacando com pistoleiros e reintegrações de posse.
Para a coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria-Geral da República (PGR), Deborah Duprat, a situação dos Guarani e Kaiowá pode ser considerada uma das piores situações envolvendo povos indígenas no mundo. Em visita às aldeias Guarani e Kaiowá, o presidente da Anistia Internacional, o indiano Salil Shetty, declarou, em estado de perplexidade, se sentir “num lugar onde direitos humanos não existem. O organismo declara que todo o mês recebe denúncias de violações envolvendo os Guarani e Kaiowá (leia aqui).

Nenhum comentário:

Postar um comentário