20 de julho de 2017

Invasão de terras indígenas - nova farsa jurídica


Dalmo de Abreu Dallariem Jornal do Brasil
Como acaba de ser divulgado pela imprensa, os agentes do agronegócio e seus auxiliares subservientes estão montando uma farsa jurídica tendo por objetivo a espoliação das comunidades indígenas, extorquindo delas grande parte de seus direitos às terras que tradicionalmente ocupam, direitos expressa e claramente assegurados pela Constituição.
Para dar a aparência de legalidade à invasão das áreas indígenas foi montada uma farsa, que, em resumo, seria a simulação de um parecer vinculante emitido pela Advocacia Geral da União e assinado pelo Presidente da República, restringindo os direitos dos índios às terras que concretamente ocupavam quando foi posta em vigor a Constituição de 1988. Quanto a este ponto, o simulado parecer vinculante retomaria a tese nesse sentido que foi intitulada de « marco temporal » na ação referente à reserva indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, e até agora não confirmada por decisão do plenário do Supremo Tribunal.
Antes de tudo, trata-se de um parecer simulado, pois não foi elaborado por solicitação do Presidente da República para esclarecer qualquer dúvida ou para orientar uma decisão. Com efeito, num video que está sendo divulgado pela Frente Parlamentar do Agronegócio o Deputado Federal Carlos Heinze, do PP do Rio Grande do Sul, integrante da bancada do Agronegócio, informa o seguinte : « Nós acertamos um parecer vinculante em decorrência do qual mais de 700 processos envolvendo a demarcação de áreas indígenas serão atingidos, suspendendo essa demarcação ». Esse é um pormenor fundamental do ponto de vista jurídico : o Presidente da República não solicitou esse parecer e ele não é expressão de uma análise jurídica, mas de uma conjugação de interesses manifestamente ilegal. Por essas razões, o parecer que for encaminhado ao Presidente da República com a chancela da Advocacia Geral da União, como referido no site da Frente Parlamentar do Agronegócio,  não atende aos requisitos legais para ser vinculante, ou seja, para ser legalmente obrigatório. 
Quanto ao efeito vinculante de um parecer, vem muito a propósito relembrar aqui uma notável análise jurídica feita pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, no processo do Mandado de Segurança 24.631-6 do Distrito Federal, fundamentando seu voto, que foi acolhido pela Suprema Corte. O Ministro ressaltou, então, os aspectos doutrinários nestes termos : « A doutrina nacional reconhece, genericamente, a natureza meramente opinativa dos pareceres lançados nos processos administrativos (MEIRELLES , Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 28a. ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p.189). E acrescenta mais adiante : « se a lei (I) não exige expressamente parecer favorável como requisito de determinado ato administrativo, ou (II) exige apenas o exame prévio por parte do órgão de assessoria jurídica, o parecer técnico-jurídico em nada vincula o ato administrativo a ser praticado, e dele não faz parte. Nesses casos, se o administrador acolhe as razões do parecer, incorpora, sim, ao seu ato administrativo, os fundamentos técnicos ; mas isso não quer dizer que, com a incorporação dos seus fundamentos ao ato administrativo, o parecer perca sua autonomia de ato meramente opinativo que nem ato administrativo propriamente é, como bem define Hely Lopes Meirelles ».
Embora se esteja usando maliciosamente a expressão « parecer vinculante », pretendendo dar-lhe  o caráter de obrigação legal, o parecer emitido pela Advocacia Geral da União é apenas opinativo. Esse qualificativo não torna sem importância os pareceres nem reduz a responsabilidade dos seus emitentes, mas –este é o ponto essencial no caso em exame- ele é apenas opinativo, não é vinculante.
Outro ponto de fundamental importância refere-se ao conteúdo do parecer. A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no caso da área indígena Raposa Serra do Sol, não foi até agora confirmada pelo Plenário. Essa infeliz decisão restringiu os direitos das comunidades indígenas às áreas das quais detinham a posse efetiva quando da promulgação da Constituição de 1988, gerando a expressão « marco temporal ». A grande demora na apreciação final pela Suprema Corte decorre, precisamente, do elevado número de questionamentos assinalando a inconstitucionalidade da restrição imposta pelo « marco temporal ». Com efeito, a Constituição estabelece, enfaticamente, que as comunidades indígenas têm direito às áreas que tradicionalmente ocupam, não se admitindo, como é amplamente sustentado em obras de doutrina jurídica e já foi reafirmado em inúmeras decisões judiciais, que uma terra indígena ilegalmente invadida perca a condição de área de ocupação tradicional de uma determinada comunidade.
Em suma, o referido parecer não se enquadra em qualquer hipótese legal para ser vinculante e ainda contem inconstitucionalidade manifesta quando adota a tese do « marco temporal ». Além disso, tendo em conta o que foi divulgado pelas redes sociais, o processo de elaboração do parecer foi flagrantemente ilegal. Por todas essas razões, ele deve ser ignorado na consideração dos fundamentos jurídicos dos direitos indígenas.
* jurista

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