O agronegócio procura interferir na demarcação de terras e esvaziar cada vez mais a Funai
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Renan Truffi* em Carta Capital
Em janeiro, quando Alexandre de Moraes ainda estava à frente do Ministério da Justiça, a pasta publicou uma portaria a determinar a criação de um grupo chamado a analisar todos os processos administrativos da Fundação Nacional do Índio, a Funai. Oficialmente, o principal objetivo era “fornecer subsídios para a decisão do ministro sobre demarcações de terras indígenas”.
Na prática, a ação abria espaço para que um colegiado pudesse rever todas as decisões tomadas pela Fundação, incluindo demarcações de novos territórios para povos tradicionais. A medida significava colocar um novo agente administrativo no caminho entre o órgão e o Ministério da Justiça, que tem de referendar as demarcações antes de repassar à Casa Civil.
A portaria foi duramente criticada pelo Ministério Público Federal, técnicos da Funai e instituições indigenistas. Um dos argumentos do MPF é de que a portaria era ilegal, feria a Constituição e a jurisprudência tratada pelo Supremo Tribunal Federal, que entende a demarcação de terra indígena como competência da Funai. Em pouco mais de 24 horas após a publicação, Alexandre de Moraes teve de recuar e revogou o primeiro texto.
Em substituição, o ex-ministro da Justiça publicou outra portaria que trata apenas da criação do mesmo grupo, o chamado Grupo Técnico Especializado (GTE). O texto mais recente não dá ao GTE a possibilidade de “verificar provas” e nem o “uso histórico das terras”, por parte das comunidades beneficiadas pela Funai.
Antes de a medida ser anulada, o presidente Michel Temer pronunciou-se sobre o caso e, claro, elogiou a medida. “Não mudei a demarcação, o que houve foi um estudo sobre a classificação das terras indígenas. É uma questão que está sendo muito bem estudada.” Ele negou o enfraquecimento do órgão. “Pelo contrário, a Funai fica prestigiada cada vez mais.”
A repercussão em torno da portaria evidencia algo já bastante conhecido por antropólogos e grupos que militam pela causa indígena no Brasil: a ofensiva ruralista sobre a demarcação de terras no País. Há algum tempo considerável que os representantes do agronegócio tentam interferir nesse processo para manter privilégios de poderosos na agricultura, pecuária e no extrativismo. O governo Dilma Rousseff também sofreu com os representantes desse grupo e cedeu: a petista ficou marcada como a presidente que menos demarcou terras indígenas desde o fim da ditadura.
A pressão não deixou de existir com Temer. Pelo contrário. Mesmo sem conseguir passar a portaria de Alexandre de Moraes, o governo peemedebista sabe que pode interferir no trabalho de demarcação de duas maneiras: esvaziando o órgão e colocando seus aliados dentro da Funai. É o que tem sido feito pelo Palácio do Planalto com a ajuda dos ruralistas.
“O atual governo está decidido a destruir a Funai, e faz isso por dentro e por fora. Por fora, permitindo que lideranças de sua base ataquem diretamente a Funai, e internamente, reduzindo os recursos e enxugando o corpo de funcionários de tal maneira que inviabiliza o processo de demarcação de terras indígenas”, critica o subprocurador-geral da República e coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF, Luciano Mariz Maia.
Maia se refere ao Decreto nº 9.010/17, publicado no último dia 23 de março, que extinguiu 347 cargos da Funai e 50 coordenações técnicas locais (CTLs). A desculpa é o ajuste fiscal e o enxugamento da máquina pública, mas os cortes afetam fundamentalmente o trabalho de demarcação de terras da Funai. As sedes da Funai no Rio Grande do Norte e no Ceará chegaram a ser ocupadas por mais de uma dezena de indígenas como protesto.
Antes dos cortes, o órgão também havia ficado sem presidente por sete meses. Michel Temer, que costuma ser rápido com Medidas Provisórias e PECs que desmontam conquistas sociais, demorou de junho de 2016 a janeiro de 2017 para escolher um substituto para João Pedro Rodrigues, exonerado por ter sido indicado pelo governo petista.
O primeiro a ser cotado para o cargo foi um militar, o general Sérgio Roberto Peternelli, saudosista da ditadura. O general acabou descartado, mas o governo Temer insistiu em tentar construir condições para a indicação de outro militar, o general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas. Freitas, indicação do Partido Social Cristão (PSC), cuja cúpula é formada por pastores evangélicos.
A indicação ainda teve o aval do líder do governo no Congresso, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que já foi presidente da Funai entre 1986 e 1988. Antes de ser flagrado por escutas telefônicas propondo um grande acordo nacional “com o Supremo, com tudo”, Jucá ficou conhecido dos indígenas por ter desinterditado, naquela época, uma área em Rondônia onde era protegido o povo akuntsu. Depois de a área ser destinada a fazendeiros, os akuntsu sofreram um genocídio até 1995.
O nome de Freitas também não foi bem recebido por lideranças indígenas, como relatou em sua coluna no site de CartaCapital o professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Felipe Milanez. “Ele é muito fraco. Eu não vou falar nada porque ele não vai aguentar a palavra de um xamã yanomami. Vai desmaiar”, resumiu Davi Kopenawa, influente pajé yanomami durante encontro com organizações indígenas, promovido em Brasília, para tentar referendar o nome do general.
A terceira alternativa veio do próprio PSC. O presidente nacional do partido, pastor Everaldo, indicou outro nome: o também pastor Antonio Fernandes Toninho Costa, dentista de profissão, nomeado por Michel Temer para o cargo de presidente da Funai em janeiro deste ano. Costa foi apresentado como nome técnico pelo partido por ter 25 anos de experiência com saúde indígena.
Mas o currículo parece não ter sido suficiente para capacitar o novo presidente sobre questões importantes da causa indígena do ponto de vista antropológico e cultural. Em pouco mais de três meses no cargo, Costa tem dado declarações que preocupam os especialistas da área, justamente por revelarem desconhecimento ou trazerem visão parecida com a de ruralistas.
Ao lado do general Franklimberg Ribeiro de Freitas (mesmo preterido para a presidência do órgão, ele ganhou o cargo de diretor de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável na Funai), Toninho Costa tem dito que a Funai precisa “ensinar a pescar” e que os índios não podem “ficar parados no tempo”. As pérolas foram a analogia que o presidente encontrou para dizer que acabou o período de assistencialismo na Funai. Para tanto, ele propõe que os povos tradicionais passem a figurar no sistema produtivo, incentivando a “produção de alimentos e a colheita do extrativismo”.
“Isso mostra uma visão reducionista e um profundo desconhecimento da causa indígena”, avalia a ex-presidente da Funai, Maria Augusta Assirati. “Ele cita como exemplo os povos de Mato Grosso do Sul, que estão em confinamento territorial e não podem exercitar nenhuma atividade produtiva. O ponto central da questão indígena é resolver mesmo a questão territorial.”
A fala do presidente da Funai de aumentar a produção agrícola ou extrativista em áreas de reserva ignora a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). A ideia do mecanismo é aproveitar que as reservas indígenas ocupam 13% do território nacional para garantir a preservação ambiental, um capital estratégico do Brasil contra as mudanças climáticas. Segundo o Censo de 2010, no Brasil há 896,9 mil indígenas, e a maior parte deles vive na Região Norte (342,8 mil), ocupando territórios na Floresta Amazônica.
Toninho afinou-se com o pensamento do novo ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-PR), que recentemente disse ser preciso parar com a discussão sobre demarcação de terras porque território “não enche barriga”.
Apesar das declarações desastrosas, há quem enxergue no novo presidente boas intenções. “Eu tive uma boa impressão quando estive com ele, sugiro que seja mais bem assessorado. O caminho, que o discurso dele antecipa, é um caminho de destruição dos índios. E o propósito dele na agência governamental é fortalecer os índios e as suas comunidades. Ele precisa resolver de que lado está”, conclui Luciano Mariz Maia.
* Colaborou Débora Melo
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