12 de dezembro de 2016

Guarani-Kaiowá vivem em área minúscula, rodeados de agronegócios

Cena do documentário 'Martírio', de Vincent Carelli

Por Guilherme Wisnik*


Pude assistir, na programação de filmes da Bienal de São Paulo, encerrada ontem, o documentário "Martírio" (2016), de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita. Exibido apenas no Festival de Brasília e na Mostra de São Paulo, "Martírio" é um filme que precisa ser visto por todos, dada a sua extrema atualidade e contundência.

O filme retrata a saga dos índios Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul, desalojados de suas terras desde há muito tempo, e tidos historicamente como invasores alienígenas em uma região que, supostamente, "sempre" pertenceu às famílias brancas de fazendeiros. Vistos como paraguaios, e portanto estrangeiros, mas fundamentais desde sempre como mão de obra barata nas fazendas de erva-mate, soja e gado, os Guarani-Kaiowá tiveram sua identidade com o lugar suprimida, apagada, e vivem aquartelados em assentamentos minúsculos e saturados, com índices recorde de suicídio, rodeados por um imenso "mar" de agronegócio.

Alguns grupos, porém, não se resignam a essa condição aviltante, e tentam retornar às terras de origem (tekoá), nos chamados acampamentos de reconquista. Ainda que precários, formados por barracos cobertos por plástico à beira de estradas, com seus entornos devastados, e atacados por milícias privadas, os acampamentos são importantíssimos no processo político de reconquista de terras, e de reversão simbólica da invisibilidade dos índios no Estado e, em ponto maior, no Brasil.

Diferentemente de cineastas como Michael Moore, que pesa a mão no discurso ideológico, e edita demais as falas de seus antagonistas, Carelli dá tempo para que seus discursos apareçam. Para o espectador, mergulhado na epopeia trágica desses povos que lutam pacificamente pela dignidade e sobrevivência –o filme tem quase três horas–, a aparição de brancos surge, muitas vezes, como uma incômoda aberração.

Em particular, em uma convenção de ruralistas em 2013, a senadora Kátia Abreu, em um discurso inflamado, afirma que "nós", tendo já vencido o MST e o Código Florestal, temos ainda que batalhar contra o último adversário: a "questão indígena". Pois a família brasileira (no caso, de proprietários de terras), feita de sujeitos de bem, que só querem ajudar o desenvolvimento do país, não aguenta mais tanta violência dos índios. O que "nós" queremos, diz ela, é apenas "paz para produzir".

Um forte contraponto a esse teatro de horror e cinismo é dado pelo histórico discurso de Ailton Krenak em 1987, no plenário da Câmara dos Deputados, em defesa da Emenda Popular da União das Nações Indígenas. De terno branco, ele vai pintando o rosto com graxa preta enquanto fala, realizando em ato um ritual de luto e de luta. Comovido, pergunta como um povo que nunca colocou em risco sequer a existência dos animais, e que sempre viveu à revelia de todas as riquezas, pode ser considerado um inimigo dos interesses da nação?

Ao final da sessão, o sentimento é de revolta e tristeza. Se, em 1987, o discurso de Krenak foi importante para garantir avanços na Constituição, hoje vemos muitos desses avanços –sociais, ambientais, culturais– irem para o ralo. Resta-nos, no entanto, adotar a mesma resistência obstinada dos Guarani-Kaiowá, lutando (em luto) com as armas que tivermos contra as forças que pretendem fazer parecer que esses avanços nunca existiram. 

* É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e crítico de arte. Escreve às segundas, a cada duas semanas.

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