13 de outubro de 2016

"Nós somos Kinikinau, moço! Ki-ni-ki-nau!”


Ruy Sposati, de Dourados (MS) | Fotos: Lídia Farias/Cimi

Entre os dias 13 e 16 de outubro, será realizada a 3ª Assembleia do Povo Kinikinau, na aldeia Mãe Terra, no município de Miranda (MS). Na programação, dezenas de lideranças, jovens, mulheres, rezadores, professores, profissionais de saúde, indigenistas e apoiadores falarão sobre a conjuntura da luta indígena no país e no estado, terra, medicina tradicional e educação escolar indígena.

O território onde será realizado o encontro pertence aos Terena, e isto já diz bastante coisa sobre a situação dos Kinikinau: atingidos desde o século dezenove pelas empreitadas civilizatórias na região do Pantanal, os indígenas ficaram sem suas terras tradicionais, chegando a ser considerados extintos pelo indigenismo oficial.

E no entanto, eles seguem vivos. Os Kinikinau somam ao menos 600 pessoas, dispersas entre territórios Kadiweu e Terena. A maioria das famílias está estabelecida na aldeia São João, dentro da terra indígena Kadiweu, no município de Porto Murtinho.

O antropólogo Giovani José da Silva conta que, em 1997, foi enviado à região para conversar com os indígenas sobre a questão pedagógica nas aldeias. A primeira aldeia visitada por ele foi justamente a São João. Em seu relato, Giovani recorda: "iniciei minha fala referindo-me à importância de se ter uma educação específica e que no caso daquela aldeia deveria ser uma escola voltada para os interesses dos Kadiweu. Foi quando vi um ar de reprovação nos rostos daqueles homens e mulheres indígenas e percebi que estava diante de uma maioria que não se reconhecia Kadiweu, embora vivessem dentro da Reserva Kadiwéu". Ao que alguém lhe responde:  "Nós somos Kinikinau, moço! Ki-ni-ki-nau!”.

Mais antigos
Esta é a terceira assembleia realizada pelos Kinikinau. "Essa luta não é nova", explica a liderança Kinikinau e mestre em Sustentabilidade junto a povos e terras indígenas pela Universidade de Brasília (UnB). "Desde que nós entendemos por gente, vemos os mais velhos falando de ir de volta para o nosso território".


"Tem muitos Kinikinau entre os Terena", explica. "O problema é que a maioria se identificava como Terena, porque até a década de 90, nós éramos registrados assim. Eu mesmo guardo essa lembrança, porque tenho duas certidões de nascimento indígena". Em função da leitura de antropólogos - notadamente, Roberto Cardoso - e do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Fundação Nacional do Índio (Funai), responsáveis pelo registro, todos os pais e mães Kinikinau registravam, até pouco mais de duas décadas atrás, os filhos como Terena.


Rosaldo relembra as histórias contadas pelos "mais antigos" sobre o processo de dispersão e perda territorial. "O seu Leôncio, um idoso Kinikinau falecido em 2010, dizia que as famílias pegaram uma carreta de boi, colocaram tudo o que tinham dentro e saíram pela estrada. De 1910 até 1940, ficaram perambulando pelo caminho", relata.

Foi quando o grupo mais numeroso de pessoas Kinikinau chegaram ao território Kadiweu, onde um acordo foi feito. "Os Kadiweu disseram a nós: 'aqui é uma passagem de pessoas e de boiada. Então vocês ficam aqui na entrada, cuidando pra ninguém fazer moradia aqui'. E assim nós nos assentamos ali, ficando como protetores da região". A eles estava claro, contudo, que a terra não pertencia aos Kinikinau, embora o que fosse ali produzido fosse de uso exclusivo deles mesmos.


Rosaldo relata que, na década de 90, frente às pressões da expansão da fronteira agrícola e em decorrência de atritos com algumas novas lideranças Kadiweu, famílias começaram a deixar o território, e a ideia do retorno a seus territórios originários volta com mais força ao desejo coletivo dos Kinikinau, que em 2004 realizam um primeiro seminário no município de Bonito, e em 2014 e em 2015 realizam, respectivamente, a primeira e segunda assembleias do povo.

"A saída deles de São João e a reivindicação do território tradicional é uma consequência dos erros comentidos pelo Estado", explica a missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Lídia Farias de Oliveira. "O Estado cometeu o erro de tirar os Kinikinau de seus territórios, obrigá-los a assumir outra identidade para continuarem sendo indígenas… É claro que um dia esta conta chegaria. O problema é o que estado continua negligente, como cem anos atrás, quando os Kinikinau foram expulsos para liberar as terras para a produção agrícola, exatamente como aconteceu no sul do Mato Grosso do Sul com os Kaiowa e Guarani, e finge não ouvir a reivindicação dos Kinikinau", conclui.

Incidência internacional indígena
Em agenda internacional, a liderança Kaiowa Elizeu Lopes denunciou também a situação dos Kinikinau a parlamentares e membros da União Europeia, além de membros do governo da Inglaterra, Suiça, Suécia, Áustria e Bélgica. "A Europa precisa saber que ainda há povos sem nenhuma terra no Mato Grosso do Sul", afirmou Elizeu a deputados e ministros, desmentindo os dados do governo brasileiro sobre a demarcação de territórios indígenas.

O encontro é realizado pelo Conselho do Povo Kinikinau, com o apoio do Aty Guasu Guarani e Kaiowa, Conselho Terena, além do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Funai e Coordenadoria Ecumêmica de Serviço (CESE), e contará com a participação de lideranças indígenas de todo o estado.

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