Por Carolina Fasolo, Assessoria de Comunicação Cimi
Em Brasília, cerca de 25 lideranças e professores indígenas dos povos Guarani, Terena e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, manifestaram-se na tarde dessa segunda-feira (29) na Advocacia-Geral da União (AGU), pela revogação da Portaria 303/2012. Durante o protesto (assista abaixo), responsabilizaram o Congresso Nacional, a AGU e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela onda de violência contra os povos indígenas no estado. Na tarde desta terça-feira (30), o grupo esteve no STF. Duas crianças estão desaparecidas desde o dia 24/6, depois de um atentado realizado por produtores rurais contra a comunidade Kurusu Ambá, no município de Coronel Sapucaia.
O grupo foi recebido pelo procurador-geral Federal, Renato Rodrigues Vieira, e pela assessoria do advogado-geral da União, Luís Inácio Adams. Os indígenas entregaram um documento pedindo a revogação da Portaria 303/2012 da AGU, medida que busca estender para todas as terras indígenas as condicionantes decididas pelo STF na Ação Judicial contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Petição 3.888-Roraima/STF).
De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Portaria permite a ocupação das terras indígenas “por unidades, postos e demais intervenções militares, malhas viárias, empreendimentos hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta aos povos e comunidades indígenas; determina a revisão das demarcações em curso ou já demarcadas que não estiverem de acordo com o que o STF decidiu para o caso da TI Raposa Serra do Sol; ataca a autonomia dos povos indígenas sobre os seus territórios; limita e relativiza o direito dos povos indígenas sobre o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes nas terras indígenas; transfere para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) o controle de terras indígenas, sobre as quais indevida e ilegalmente foram sobrepostas Unidades de Conservação; e cria problemas para a revisão de limites de terras indígenas demarcadas, que não observaram integralmente o direito indígena sobre a ocupação tradicional”.
Kretã Kaingang, que participou da audiência como representante da Apib, frisou que mesmo com a suposta suspensão da Portaria, que estaria sendo estudada por um Grupo de Trabalho (GT) a pedido de Luís Adams, “ela não deixou de ser utilizada pela bancada ruralista e até pelo STF. Sabemos da articulação da AGU lá no Supremo, o que não tem favorecido nós em nada. Nossos direitos só têm retrocedido, é como se a Constituição não existisse”, disse a liderança, que lembrou do recente ataque contra a comunidade Kurusu Ambá, em Mato Grosso do Sul, que culminou com o desaparecimento de duas crianças. “O ministro tem que tomar uma posição sobre o que aconteceu no MS, essas duas crianças que desapareceram, sobre os assassinatos. Vocês devem ter assistido a quantidade de caminhonetes que entraram lá dentro, passaram por cima de polícia, por cima de delegado.. Será que no Mato Grosso do Sul não tem lei? Será que o Estado brasileiro vive um Apartheid?”.
O procurador Renato Vieira disse estar monitorando os desdobramentos do atentado contra a comunidade. “Tenho uma agenda com o Ministério da Justiça pra tratar de Kurusu Ambá, ver como a gente contorna a situação, detalhar o que se pode fazer em relação ao que aconteceu lá. Eu vi as imagens, estou acompanhando os desdobramentos”. Em relação à Portaria 303, Vieira comprometeu-se a averiguar a situação do GT escalado para estudá-la. “Não faço parte desse grupo, mas acredito que ainda não apresentou o relatório final para subsidiar uma análise em torno da Portaria 303”.
A liderança Anastácio Peralta manifestou a urgência pela revogação da Portaria, e afirmou que o governo promove um retrocesso nos direitos indígenas conquistados na Constituição Federal de 1988. “Antes de cumprir a lei, que é a demarcação das terras, o próprio Estado brasileiro está tirando os nossos direitos. Antes matavam índio envenenado, com bala, matavam violentamente.. Hoje o país tá matando nosso direito com as canetadas: Portarias, PECs. E pra onde a gente vai se tirarem nosso direito? Se o próprio país não respeita nosso direito originário?”.
Também foram lembradas as decisões, pela 2ª Turma do STF, que anularam atos administrativos da demarcação de três terras indígenas, duas no Mato Grosso do Sul e uma no Maranhão. “No caso da TI Limão Verde, do povo Terena, os posseiros já foram indenizados e a área registrada em nome da União”, disse a assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Alessandra Farias. “Essas decisões representam o fim da demarcação das terras indígenas, porque já estão servindo de base para os Tribunais revogarem demarcações e, nosso entendimento, consolidam-se como fundamento jurídico para negar todos os procedimentos de demarcação no país. E hoje a situação é crítica, pois existem mais de 300 terras que nem iniciaram o processo administrativo de reconhecimento”.
“Percebemos que estes últimos julgamentos estão levando em conta a Portaria 303 então de fato, ela não está suspensa”, ressaltou o procurador Renato Vieira. “Essa é a preocupação. Por isso as comunidades estão descontentes com o ministro e a Portaria, porque de fato está prejudicando as comunidades indígenas”.
A Procuradoria-Geral Federal é o órgão responsável, na AGU, em fazer a defesa da Fundação Nacional do Índio (Funai) e dos indígenas. “A gente sabe que não tem sido fácil”, disse Vieira. “É um cenário difícil, os avanços são difíceis. Algumas situações políticas contaminam ainda mais a situação. A gente tem se manifestado aqui em relação a alguns projetos que surgem no Congresso que tentam minimizar os direitos indígenas, que vêm principalmente da bancada ruralista”.
Neimar Machado, coordenador da Licenciatura Intercultural Indígena "Teko Arandu" e professor adjunto da Faculdade Intercultural Indígena (Faind) na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), explicou que a tese do Marco Temporal - que condiciona o direito dos povos à ocupação do território em outubro de 1988, é facilmente refutada por documentos históricos, como o Relatório Figueiredo. “Fica claro que as comunidades foram retiradas contra sua vontade de suas áreas. Eram despejadas dentro de reservas, impedidas de voltar. Então o argumento de que terra tradicionalmente indígena é aquela onde eles estavam até 1988 não se justifica, porque eles eram impedidos de voltar por seguranças armados das fazendas e porque, durante o período da ditadura, o indígena não tinha o direito assegurado de ir e vir. Era proibido de sair da reserva e se desobedecesse era mandado preso pro reformatório Krenak”, disse o professor.
“De fato a gente briga contra algumas decisões judiciais, algumas conseguimos reverter, outras não. O Supremo está difícil”, analisa Renato Vieira. “É preciso rever esse entendimento do STF, de que só aqueles índios que estavam na terra em 1988 têm direito. Se não estavam em 88, por quê não estavam? Porque ele não estavam conseguindo voltar? Esse tipo de situação a gente tem que amadurecer um pouco mais com o Supremo. A gente sabe que é difícil”.
Na tarde desta terça-feira (30), o grupo esteve no Supremo, onde participou de uma sessão de julgamento da 2ª Turma e protocolou, nos gabinetes dos ministros e em dois processos, uma carta dos professores indígenas pela demarcação das terras em Mato Grosso do Sul. “Nós professores estamos muito preocupados com a situação territorial no Mato Grosso do Sul, pois sabemos que sem a demarcação de nossas terras, não teremos escolas para nossas crianças. Sem educação de qualidade, pública e diferenciada, que atenda nossa realidade cultural, perderemos o que nos resta de tradição, crença, língua”. Leia aqui o documento na íntegra.
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