31 de janeiro de 2017

Carta aos povos indígenas do Brasil: Por um parlamento cada vez mais indígena

Considerando que em 2018 todo o país estará voltado para as eleições a cargos de deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da República, o foco é que os nossos povos não atuem mais como meros coadjuvantes nesse processo de eleição. Por isso, conclamamos a todos os povos indígenas do Brasil para que a partir de agora, iniciem suas discussões no âmbito local e regional sobre a necessidade de lançarmos cada vez mais indígenas candidatos para a disputa nessas próximas eleições, guerreiras e guerreiros encorajados, dispostos a ocupar o parlamento nos estados e no Congresso Nacional.


Nos últimos anos os Povos Indígenas do Brasil tem enfrentado fortes pressões que têm se intensificado em todos os espaços de poder do Estado. No parlamento, têm prevalecido em todos os seus níveis, os interesses de grupos majoritariamente contrários aos direitos dos povos indígenas. Tendo em vista que é no parlamento o lugar aonde se constrói regramentos legais que vinculam toda a sociedade, faz-se necessário enxergarmos esse espaço como estratégico para o empoderamento dos nossos povos e conseguir que de forma efetiva as nossas lutas e pautas sejam evidenciadas e transformadas em instrumentos de resistência e de poder nesse contexto acentuado de correlação de forças e de ataques permanentes aos direitos indígenas.
São evidentes os prejuízos causados nas câmaras de vereadores nos municípios que possuem populações indígenas, e nas assembleias legislativas, mas que não tem representação indígena. Tais prejuízos são ainda maiores no âmbito do Congresso Nacional que na sua composição não possui sequer um indígena. Essa característica de ausência de legítimos representantes dos povos indígenas dá margem para a forte agenda reacionária, fundamentalista e de interesse dos grupos econômicos, com destaque para a bancada ruralista, que historicamente atuam como inimigos dos Povos Indígenas.
Nas últimas eleições municipais, atuamos fortemente no incentivo ao lançamento de candidaturas indígenas em todo território brasileiro. Essa tática gerou resultados importantes. Centenas de candidatos indígenas concorreram aos cargos de vereadores e prefeitos em diversas cidades do país. Atingimos a marca histórica de 167 indígenas eleitos para os cargos de vereador e 05 indígenas eleitos prefeitos em suas cidades de origem, pelo que acreditamos que essas eleições defenderão uma agenda progressista e positiva que tenha como foco a luta e reivindicações dos povos originários e das comunidades tradicionais, a pauta dos direitos humanos, a defesa do meio ambiente e da democracia, enfim, o conjunto das políticas sociais conquistadas por toda sociedade brasileira.
O sistema político porém está arcaico, alicerçado no poder econômico e instrumentalizado pelas elites deste país. Por essas razões faz se necessário continuar lutando pela reforma política, que não se reduz à reforma eleitoral, para assegurar aos distintos segmentos da sociedade tradicionalmente marginalizados espaços de poder e de democracia real e participativa, que permitam por exemplo aos povos indígenas participação nas disputas eleitorais, seja por meio da via clássica partidária, de colégios eleitorais diferenciados ou de mecanismos autônomos de organização social própria, espaços coletivos de decisão.
Considerando que em 2018 todo o país estará voltado para as eleições a cargos de deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da República, o foco é que os nossos povos não atuem mais como meros coadjuvantes nesse processo de eleição. Por isso, conclamamos a todos os povos indígenas do Brasil para que a partir de agora, iniciem suas discussões no âmbito local e regional sobre a necessidade de lançarmos cada vez mais indígenas candidatos para a disputa nessas próximas eleições, guerreiras e guerreiros encorajados, dispostos a ocupar o parlamento nos estados e no Congresso Nacional.
Levar a agenda da luta dos povos indígenas para o debate político deve ser encarado como uma missão de todo movimento indígena brasileiro.
Por um parlamento cada vez mais indígena!
Brasília-DF, 31 de Janeiro de 2017.

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB

Funai, MPF, Norte Energia e indígenas discutem condicionantes de Belo Monte

Foto: Acervo/Funai

O presidente da Funai, Antonio Costa, esteve em Altamira (PA) para participar de uma reunião convocada pelo Ministério Público Federal (MPF) com o objetivo de discutir o cumprimento das condicionantes da Usina de Belo Monte. A reunião aconteceu na última quinta-feira (26).

Os indígenas apresentaram uma pauta de reivindicações que inclui, entre outras questões, a continuidade na contratação de empresas executoras do Plano Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI), a necessidade de discussão nas aldeias sobre as atividades e os projetos ainda não executados, bem com o cumprimento do Termo de Cooperação assinado entre a Funai e a Norte Energia.

"Discutimos a reestruturação da Coordenação Regional da Funai no Centro Leste do Pará [em Altamira], a construção da nova sede e o fortalecimento da instituição. Também nos comprometemos a realizar o seminário de avaliação do PBA-CI e o documentário, feito pelos indígenas, sobre o processo de implantação da usina de Belo Monte, temas que estão presentes nos acordos firmados", disse Antonio Costa.

O presidente afirmou que todas as demandas levantadas pelos representantes dos povos indígenas durante a reunião serão debatidas e encaminhadas junto à Norte Energia, na próxima quinta-feira (2), quando os dirigentes de ambas as instituições participarão de uma reunião em Brasília.

Texto: Ascom/Funai.


30 de janeiro de 2017

Índios e direitos agredidos


Dalmo Dallari na TI Tenondé Porã (Foto: Carlos Penteado/CPI-SP)


Por Dalmo de Abreu Dallari, jurista, para a Comissão Pró-Índio de São Paulo em Cimi


Fatos extremamente reprováveis ocorreram ultimamente na ordem jurídica brasileira, ameaçando direitos proclamados e assegurados pela Constituição, e, ao mesmo tempo, ofendendo disposições de normas constitucionais quanto ao sistema normativo e às competências das autoridades e dos órgãos públicos federais. E mais surpreendente ainda foram os acontecimentos porque o ator principal dessa confusão jurídica, pelo menos o responsável ostensivo, foi o Ministro da Justiça, autor de um excelente e prestigioso comentário da Constituição de 1988.

As questões acima referidas afetam os direitos dos índios sobre suas terras, direitos fundamentais que são expressa e claramente estabelecidos na Constituição, sendo oportuno relembrar aqui alguns desses dispositivos, para que fique bem evidente a confusão jurídica desencadeada, e pouco depois alterada e aparentemente corrigida, em decorrência de forte reação  e de várias denúncias que a ela se opuseram. O ponto básico é o direito dos índios às suas terras consagrado no artigo 231 da Constituição, segundo o qual  são reconhecidos aos índios « os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam ». E para ampla garantia desse direito foram acrescentados vários parágrafos ao artigo 231, dispondo o parágrafo 4° que « as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis ». Reforçando ainda mais esses dispositivos, o parágrafo 6° do mesmo artigo 231 dispôs que « são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo ».

Apesar da clareza desses dispositivos constitucionais, ocorreram e continuam ocorrendo muitas invasões e tentativas de invasão das terras indígenas, visando o apossamento ilegal das terras e a usurpação das riquezas nelas existentes. Os invasores e usurpadores são, principalmente, pessoas e grupos ligados ao agronegócio, à retirada de madeira das florestas e às atividades de mineração, além de outros. Índios e comunidades indígenas foram expulsos de suas terras, por meios violentos, tendo havido mesmo a matança de índios além da expulsão de suas terras e da usurpação de suas riquezas. Prevendo que isso fosse acontecer, pois já havia muito precedentes, e buscando dar maior garantia aos direitos dos índios, o Constituinte de 1988, visando assegurar efetivamente esses direitos em toda a sua amplitude, estabeleceu com bastante ênfase, no artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias : « A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição ». Como é evidente, a demarcação das terras indígenas é uma obrigação constitucional do Governo Federal e deveria ter sido concluída até cinco anos a partir da promulgação da Constituição, que ocorreu em 5 de Agosto de 1988 e até agora só foi feita a demarcação de pouco mais da metade das terras indígenas.

Esse retardamento é devido, em grande parte, à enorme deficiência dos meios atribuídos aos órgãos encarregados da demarcação, o que caracteriza uma omissão intencional dos Poderes Legislativo e Executivo da União no cumprimento de uma obrigação constitucional. Essa omissão decorre da pressão exercida por interesses poderosos que praticaram, estão praticando ou pretendem praticar as invasões de terras indígenas. Assim, decorridos quase trinta anos da promulgação da Constituição os invasores de terras indígenas procuram impedir ou retardar ao máximo as demarcações, para que possam alegar que não se sabe onde começa e termina uma área indígena, tentando justificar as invasões com os argumentos de que estavam de boa fé e não cometeram ilegalidade, pois não podiam saber que estavam entrando numa terra indígena.

E aqui vêm os fatos muito reprováveis acima referidos, que se ligam à tentativa de interferir nas demarcações e mesmo de alterar as que já foram feitas e regularmente concluídas pelos órgãos e pelas autoridades competentes obedecendo os procedimentos legais. Para dar efetividade ao processo de demarcação previsto na Constituição foram fixadas regras precisas, quanto às competências e aos procedimentos , na Lei n° 6001, de 9 de Dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), na qual se estabelece expressamente, no artigo 19, que as terras indígenas serão demarcadas « por inciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio » (FUNAI), dispondo o parágrafo 1° desse mesmo artigo que a demarcação assim efetuada « será homologada pelo Presidente da República ». Posteriormente, pelo decreto presidencial n°1775, de 8 de Janeiro de 1996, foi expressamente estabelecido no artigo 1° que « as terras indígenas serão demonstrativamente demarcadas por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, a FUNAI, que, além de considerar a ocupação ostensiva e diversificada das áreas por comunidades indígenas para os objetivos necessários à sua sobrevivência, « fundamentará sua decisão em trabalhos desenvolvidos por antropólogos de qualificação reconhecida ». No caso de terem sido formalmente apresentados à FUNAI alguns questionamentos sobre aspectos particulares da demarcação de uma área o processo demarcatório será encaminhado ao Ministério da Justiça, para que examine as objeções e sugestões. Feito esse exame o Ministro da Justiça deverá declarar encerrada a demarcação ou então, se entender que existe consistência em algum questionamento, poderá devolver o processo à FUNAI para que faça as correções necessárias.  

Indo muito além de suas atribuições legais, o Ministro da Justiça publicou, em 14 de Janeiro de 2017, a Portaria n° 68, criando no âmbito daquele Ministério um Grupo Técnico Especializado para avaliação dos processos de demarcação de terra indígena. Como é evidente, estavam sendo afrontadas disposições da Lei n° 6001 e da Portaria presidencial n°1775 de 1996 que deram à FUNAI essas atribuições.  Mais grave ainda, pela Portaria 68 o Grupo Técnico Especializado tem o objetivo de assessorar o Ministro em assuntos que envolvam a demarcação de terras indígenas, considerando a ocupação concreta, imediata e ostensiva e, absurdamente, se as áreas são utilizadas para atividades  produtivas e ainda «a viabilidade econômica da ocupação ». Não há espaço para a preservação da cultura tradicional dos povos indígenas e para as atividades que asseguram sua subsistência. Coroando essa absurda deformação do conceito de ocupação, minuciosamente desenvolvida com apoio de antropólogos, agrônomos e outros especialistas, a Portaria estabelecia que o Grupo Especial seria composto por representantes de quatro setores da Administração Pública, sendo um deles a FUNAI e os demais sem qualquer atribuição ou experiência relacionadas com os índios.

Uma particularidade muito grave, que não encontra justificativa, é que no Grupo Especial não foi incluído um representante do Conselho Nacional de Política Indigenista, órgão já existente no próprio Ministério da Justiça e obviamente especializado em assuntos indígenas. Evidentemente, o objetivo dessa Portaria estava bem longe do cuidado com a efetivação dos direitos tradicionais dos índios consagrados na Constituição e com a proteção desses direitos, pois sob aparência de cuidado com o direito estava sendo criada a possibilidade de interferência indevida. Isso é confirmado por disposições do artigo 4° que dão ao Grupo Especializado a competência para verificar, inclusive, prova de ocupação e do uso histórico das terras pelas comunidades indígenas e demonstração da viabilidade econômica da ocupação indígena, além de outros aspectos particulares, entre os quais « a delimitação de terra em extensão e qualidade suficiente para o desenvolvimento da comunidade ».

Do ponto de vista jurídico aquela Portaria era uma aberração, pelo conteúdo, mas, além disso, era absurda também por contrariar disposições constitucionais e legais expressas. Basta lembrar que nos termos do artigo 1° do Decreto n° 1775 de 1996 « as terras indígenas serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sobre orientação do órgão federal de assistência ao índio », que é a FUNAI. A esse respeito é oportuno lembrar aqui o ensinamento do eminente mestre do Direito Administrativo José Cretella Júnior. Num substancioso trabalho intitulado «Valor Jurídico da Portaria » o mestre registra o seguinte: « Como ato administrativo que é, a portaria não tem vida autônoma. Ao contrário, fundamenta-se sempre em lei, regulamento ou decreto anterior, sua base jurídica ». E conclui enfaticamente : « Onde a portaria fere de modo frontal a lei, o regulamento, o decreto, o intérprete concluirá, de imediato, por sua ilegalidade. Onde a portaria inova, criando, inaugurando, regime jurídico disciplinador de um instituto, é ilegal e, pois, suscetível de censura jurisdicional » (In Revista de Direito Administrativo – julhosetembro 1974). A publicação dessa desastrada Portaria provocou indignada e intensa reação, pois, além da ilegalidade essas manifestações deixavam evidente o absurdo da marginalização da FUNAI.

Tentando amenizar as resistências o Ministro da Justiça publicou, no dia 19 de Janeiro de 2017, nova portaria, de número 80, revogando a Portaria 68, publicada apenas cinco dias antes. A nova portaria tem somente dois artigos. Pelo artigo 1° é reproduzido o que dispunha a Portaria n° 68 criando o Grupo Técnico Especializado e pelo artigo 2° é definida a composição do Grupo, nos mesmos termos da portaria anterior. Mas na Portaria 80 não são incluídas exigências como a prova de ocupação e uso histórico das terras, não havendo também qualquer referência à extensão das terras. Apesar das modificações tentando diminuir a aparência de iniciativa contrária aos direitos indígenas, a essência da nova portaria é a mesma da anterior, sobretudo pela exclusão da iniciativa e da orientação da FUNAI para o processo demarcatório, expressamente previstas no decreto n° 1775 de 1996, podendo-se concluir com absoluta segurança que a Portaria 80 é tão ilegal quanto a 68.

Por tudo o que foi exposto, é necessária e urgente uma demonstração de que o Brasil continua e continuará a ser um Estado Democrático de Direito. Para tanto, tendo em vista os desvios aqui demonstrados, o Ministro da Justiça deverá comprovar sua capacidade de resistir às pressões dos poderosos que desprezam a Constituição e os Direitos Humanos. Isso deverá ter como ponto de partida a imediata publicação de uma nova Portaria pelo Ministro da Justiça, revogando, pura e simplesmente, a ilegal e injusta Portaria 80, de 19 de Janeiro de 2017. Com isso estarão preservados os direitos fundamentais que a Constituição assegura aos índios, como seres humanos e brasileiros. Essa revogação é também necessária para preservação da imagem de jurista do Ministro Alexandre de Moraes, para comprovação da autenticidade de seu compromisso com o Direito e a Justiça.
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Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá denuncia Fórum criado com o apoio de ruralistas


 Conselho Aty Guasu Guarani e Kaiowá em Cimi

O Conselho da Aty Guasu  Grande Assembleia Guarani e Kaiowá divulgou uma nota pública denunciando o Fórum de Caciques do Mato Grosso do Sul (FOCAMS) por usar o nome da principal organização política do povo "sem a devida consulta e o consentimento prévio de nossas lideranças".

"O FOCAMS é uma organização criada com o apoio de deputados alinhados aos interesses de ruralistas e às violações dos direitos constitucionais dos povos indígenas no estado", diz trecho da nota.

Leia na íntegra:

Nota de Esclarecimento

A ATY GUASU - GUARANI KAIOWÁ​, organização tradicional constituída por caciques, lideranças e comunidades Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, juntamente com os estudantes de Ara Verá e os acadêmicos da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Faculdade Intercultural Indígena (FAIND) e Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu, das turmas dos anos de 2012, 2013 e 2015, vem por meio desta nota esclarecer às autoridades competentes, às instituições governamentais e ao público em geral que somos representados por nossa “Grande Assembleia” (Aty Guasu), pelo movimento de professores Guarani e Kaiowá e por nossas lideranças, e que as decisões tomadas pelos nossos representantes são legítimas e soberanas.

Repudiamos qualquer menção ao nome da ATY GUASU por parte do Fórum dos Caciques (FOCAMS), sem a devida consulta e o consentimento prévio de nossas lideranças. ​O FOCAMS é uma organização criada com o apoio de deputados alinhados aos interesses de ruralistas e às violações dos direitos constitucionais dos povos indígenas no estado de Mato Grosso do Sul. Em vista disso, repudiamos a iniciativa do FOCAMS de publicar nas redes sociais - e onde quer que seja - o suposto apoio de nossas lideranças e da ATY GUASU às suas atividades. Sem mais a declarar para o momento e na certeza de que seremos compreendidos e respeitados, antecipamos os nossos sinceros agradecimentos.

Mato Grosso do Sul, 27 de Janeiro de 2017


Conselho Aty Guasu

29 de janeiro de 2017

O falso dilema do “infanticídio indígena”: por que o PL 119/2015 não defende a vida de crianças, mulheres e idosos indígenas



Por Marianna A. F. Holanda*, especial para Combate Racismo Ambiental

Desde 2005, acompanhamos no Brasil uma campanha que se pauta na afirmação de que os povos indígenas teriam tradições culturais nocivas e arcaicas que precisam ser mudadas por meio de leis e da punição tanto dos indígenas responsáveis como de quaisquer funcionários do Estado, agentes de organizações indigenistas e/ou profissionais autônomos que trabalhem junto a estes povos.
Afirma-se que há dados alarmantes de infanticídio entre os povos indígenas de modo a fazer parte da sociedade pensar que, incapazes de refletir sobre as suas próprias dinâmicas culturais, os povos indígenas – sobretudo as mulheres – matariam sem pudor dezenas de crianças. As notícias de jornal, as pautas sensacionalistas da grande mídia, organizações de fins religiosos e políticos “em favor da vida” fazem crer que não estamos falando de pessoas humanas – no sentido mais tradicional dos termos –, mas de sujeitos que devido à sua ignorância cultural cometem sem ética, afeto e dúvidas crimes contra seus próprios filhos, contra seu próprio povo.
Me pergunto por que um argumento como esse transmite credibilidade entre aqueles que não conhecem as realidades indígenas – pois quem trabalha junto aos povos indígenas e em prol de seus direitos não dissemina este tipo de desinformação. A maior parte da sociedade brasileira não indígena é profundamente ignorante sobre os povos indígenas que aqui habitam e sobre seus modos de vida, mantendo imagens estereotipadas e caricaturadas sobre os índios carregadas de preconceito e discriminação.
Alguns dados importantes sobre infanticídio, abandono de crianças e adoção
Desde os tempos de Brasil império há registros de infanticídios entre os povos indígenas – como também havia inúmeros registros de infanticídio nas cidades da colônia: historiadores apontam a normalidade com que recém-nascidos eram abandonados nas ruas de cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Florianópolis. Realidade que também era comum na Europa e que a igreja católica passou a combater a partir do século VIII d.C por meio de bulas papais e pela criação de Casas de Expostos – lugares aonde podia-se abandonar legalmente crianças neonatas que mais tarde vieram a se tornar o que conhecemos como orfanatos. Não apenas os infanticídios não cessaram como os índices de mortalidade nesses locais foram estarrecedores, beirando a 70% no caso europeu e 95% no caso brasileiro. Recém-nascidos eram retirados da exposição pública para morrer entre quatro paredes, com aval das leis, dos registros estatais e da moralidade cristã da época. (Sobre este tema, ver: Marcílio e Venâncio 1990, Trindade 1999, Valdez 2004 e Faleiros 2004).
Ainda hoje, centenas de crianças no Brasil são abandonadas em instituições públicas e privadas de caráter semelhante, aguardando anos por uma adoção. A maioria – em geral as crianças pardas e negras, mais velhas e/ou com algum tipo de deficiência – esperam por toda a infância e adolescência, até tornarem-se legalmente adultas e serem novamente abandonadas, agora pelo Estado. Os dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Acolhidos (CNCA), administrados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que das seis mil crianças nesta situação, 67% são pardas e negras.
Apesar da rejeição à adoção de crianças negras e pardas ter caído na última década, o quadro de discriminação permanece. Entre as crianças indígenas, acompanhamos um fenômeno crescente de pedidos de adoção por não indígenas, sobretudo casais heterossexuais, brancos, evangélicos e, em muitos casos, estrangeiros. Contudo, há mais de 100 processos no Ministério Público envolvendo denúncias a violações de direitos nestes casos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê o direito à permanência da criança com a própria família e ao esforço conjunto e multidisciplinar de profissionais para que isto ocorra. Esgotada esta possibilidade, a criança tem o direito de ser encaminhada para família substituta na própria comunidade indígena de origem ou junto a família substituta de outra aldeia ou comunidade, mas ainda da mesma etnia.
Vale mencionar que estas estratégias de realocação e adoção de crianças ocorre tradicionalmente entre diversos povos indígenas, independente das leis e da intervenção estatal. É muito comum que avós, tias ou primas adotem crianças quando pais e mães passam por qualquer espécie de dificuldade, ou ainda, seguindo articulações próprias das relações de parentesco que vão muito além de pai e mãe biológicos.
Contudo, sob estas recentes acusações de “risco de infanticídio” famílias indígenas são colocadas sob suspeita e dezenas de crianças têm sido retiradas de sua comunidade, terra e povo e adotadas por famílias não indígenas sem ter direitos básicos respeitados. Juízes são levados por esta argumentação falha, que carece de base concreta na realidade, nas estatísticas, nas etnografias. Em alguns casos, pleiteia-se apenas a guarda provisória da criança e não a adoção definitiva, o que significa que a guarda é válida somente até os 18 anos, não garantindo vínculo de parentesco e direito à herança, por exemplo. Quantas violações uma criança indígena retirada de seu povo e de seus vínculos ancestrais enfrenta ao ser lançada ao mundo não indígena como adulta?
Infâncias indígenas no Brasil e crescimento demográfico
Nos últimos 50 anos, as etnografias junto a povos indígenas – importante método de pesquisa e registro de dados antropológicos – vem demonstrando que as crianças indígenas são sujeitos criativos e ativos em suas sociedades tendo diversos graus de autonomia. Aprendemos que as práticas de cuidado e a pedagogia das mulheres indígenas envolvem um forte vínculo com as crianças, que são amamentadas até os 3, 4, 5 anos. Envolvem uma relação de presença e afeto que deixa a desejar para muitas mães modernas. Aprendemos também que a rede de cuidados com as crianças envolve relações de parentesco e afinidade que extrapolam a consanguinidade.
Enquanto a maior parte das populações no mundo está passando pela chamada “transição demográfica”, ou seja, queda e manutenção de baixos níveis de fecundidade, os povos indígenas na América Latina, se encontram num processo elevado de crescimento populacional. De acordo com o último censo do IBGE (2010), a população indígena no Brasil cresceu 205% desde 1991, uma dinâmica demográfica com altos níveis de fecundidade, levando à duplicação da população em um período de 15 anos (Azevedo 2008).
A partir dos anos 2000, começaram a tomar corpo pesquisas etnográficas que apontam o número crescente de nascimentos gemelares entre os povos indígenas, de crianças indígenas albinas e de crianças com deficiência (Verene 2005, Bruno e Suttana 2012, Araújo 2014). Apesar de suas diferenças, estas crianças são estimuladas a participar do cotidiano da aldeia, e muitas delas, ao tornarem-se adultas, casam-se e constituem família.
Há 54 milhões de indígenas com deficiência ao redor do globo (ONU 2013). No Brasil, segundo o censo do IBGE de 2010, 165 mil pessoas – ou seja, 20% da população autodeclarada indígena – possuem ao menos uma forma de deficiência (auditiva, visual, motora, mental ou intelectual). Um número que relaciona-se também às políticas públicas e de transferência de renda para as famílias indígenas nessa situação (Araújo 2014). Tanto o crescimento demográfico acelerado quanto os dados de que 20% da população indígena brasileira tem alguma deficiência nos permitem demonstrar que a afirmação de que há uma prescrição social para que estas crianças sejam mortas por seus pais e familiares não se sustenta.
Como morrem as crianças e adultos indígenas?
A mortalidade infantil entre os povos indígenas é quatro vezes maior do que a média nacional. A quantidade de mortes de crianças indígenas por desassistência subiu 513% nos últimos três anos. Os dados parciais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) de 2015 revelaram a morte de 599 crianças menores de 5 anos. As principais causas são: desnutrição, diarreia, viroses e infecções respiratórias, falta de saneamento básico além de um quadro preocupante de desassistência à saúde. Ora, sabemos que pneumonia, diarreia e gastroenterite são doenças facilmente tratáveis desde que estas crianças tenham acesso às políticas de saúde. A região Norte do país concentra o maior número de óbitos.
Quando abordamos os números relativos ao suicídio a situação é igualmente alarmante. De acordo com dados da Sesai, 135 indígenas cometeram suicídio em 2014 – o maior número em 29 anos. Sabemos que os quadros de suicídio se agravam em contextos de luta pelos direitos territoriais quando populações inteiras vivem em condições de vulnerabilidade extrema.
Jovens e adultos do sexo masculino também são as principais vítimas dos conflitos territoriais que resultam do omissão e letargia do Estado brasileiro nos processos de demarcação das terras indígenas. Em 2014, 138 indígenas foram assassinados; em 2015, foram 137. No período de 2003 a 2016, 891 indígenas foram assassinados em solo brasileiro, em uma média anual de 68 casos (Cimi 2016). Esses assassinatos acontecem em contextos de lutas e retomadas de terras, tendo como alvo principal as lideranças indígenas à frente dos movimentos reivindicatórios de direitos.
Diante desse cenário de permanente e impune genocídio contra os povos indígenas no Brasil, é importante refletirmos sobre o histórico de atuação dos senadores responsáveis pela votação do PL 119/2015: quais deles atuam ou já atuaram na proteção e no resguardo dos direitos indígenas? Quais deles são financiados pelo agronegócio, pela mineração, pelos grandes empreendimentos em terras indígenas? Como um Projeto de Lei que criminaliza os próprios povos indígenas pela vulnerabilidade e violências causadas pelo Estado e por terceiros pode ajudar na proteção e promoção de seus direitos?
O falso dilema da noção de “infanticídio indígena”
O PL 119/2015 – outrora PL 1057/2007 – supõe que há um embate entre “tradições culturais” que prescrevem a morte de crianças e o princípio básico e universal do direito à vida. Ao afirmar que o infanticídio é uma tradição cultural indígena – como se ele não ocorresse, infelizmente, em toda a humanidade – o texto e o parlamento brasileiros agem com racismo e discriminação, difamando povos e suas organizações socioculturais. Todos nós temos direito à vida e não há nenhuma comunidade indígena no Brasil e no mundo que não respeite e pleiteie esse direito básico junto às instâncias nacionais e internacionais.
Ao invés de buscarem aprovar o novo texto do Estatuto dos Povos Indígenas que vem sendo discutido no âmbito da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) desde 2008, utilizando como base o Estatuto o Substitutivo ao Projeto de Lei 2057, de 1994, que teve ampla participação indígena em sua formulação, o parlamento está optando por remendar a obsoleta Lei 6.001 – conhecida como Estatuto do Índio – datada de 1973, carregada de vícios próprios da ditadura militar, como as noções de tutela e de integração dos povos indígenas à comunidade nacional, pressupondo que com o tempo, eles deixariam de “ser índios”.
O PL também equivoca-se ao afirmar que há uma obrigatoriedade de morte a qualquer criança gêmea, albina e/ou com algum tipo de deficiência física e mental, além de mães solteiras. Trata-se de situações que desafiam qualquer família, indígena ou não, mas que em comunidades com fortes vínculos sociais tendem a ser melhor sanadas pois há níveis de solidariedade maior do que os de individualismo.
O dilema do infanticídio também é falso quando afirma que trata-se de uma demanda por “relativismo cultural” diante do direito à vida e dos Direitos Humanos; mas afirmamos que violência, tortura e opressão não se relativizam. A demanda posta pelos povos indígenas é historicamente a de respeito à diversidade cultural – o que implica no reparo, por parte do Estado, da expropriação territorial garantindo a regularização de todas as terras indígenas no País e o acesso a direitos essenciais como saúde e educação diferenciadas. Também é direito das comunidades indígenas o acesso à informação e ao amparo do Estado para lidar com situações em que a medicina biomédica já encontrou cura ou tratamento adequado. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, ratificada em 2005 pela UNESCO, é enfática quando trata a diversidade cultural como patrimônio comum da humanidade, e isso inclui, portanto, o direito das crianças indígenas a permanecerem junto à sua família e de receberem suporte médico dentro de suas comunidades.
Há 10 anos acompanhamos a exposição midiática das mesmas crianças – algumas hoje já adolescentes – bem como os depoimentos de indígenas adultos que afirmam que sobreviveram, em condições diversas, ao infanticídio. São histórias que precisamos ouvir e que nos ensinam que os povos indígenas têm encontrado novas estratégias para lidar com seus dilemas éticos e morais. Sabemos que a transformação é uma característica cultural dos povos indígenas; ao mesmo tempo em que lutamos pelo respeito aos Direitos Humanos, lutamos para que as Dignidades Humanas dos povos indígenas sejam respeitadas a partir de seu tempo de transformação.
Nenhum caso de infanticídio e qualquer outra forma de violência, entre povos indígenas ou não, pode ser afirmado como uma “tradição cultural”; ou podemos dizer que a nossa própria cultura é infanticida generalizando tal grau de acusação e julgamento para todas as pessoas? Se a resposta é um sonoro “não”, porque o PL 119/2015 pretende fazer isso com os povos indígenas?
O mesmo exercício pode ser feito com as outras tipificações de violência e atentados à Dignidade Humana no texto do PL como: homicídio, abuso sexual, estupro individual e coletivo, escravidão, tortura em todas as suas formas, abandono de vulneráveis e violência doméstica. Estaríamos nós transferindo os nossos preconceitos e violências para os povos indígenas, transformando isso em parte da sua cultura? Ao fazer isso, afirmamos que violências tão características da colonialidade do poder são o que fazem dos índios, índios.
Por fim, é importante mencionar que o texto inicial do PL 1057/2007 que foi aprovado na Câmara sofreu alterações ao transformar-se no PL 119/2015 que tramita no Senado. O que antes era “combate a práticas tradicionais nocivas” mudou de retórica para “defesa da vida e da dignidade humana” mas não nos enganemos: seu conteúdo permanece afirmando a existência violências tratadas como práticas tradicionais exclusivas e características dos povos indígenas.
Igualdade, equidade e isonomia de direitos
Por uma questão de isonomia e igualdade de direitos, os povos indígenas estão submetidos à legislação brasileira, podendo ser julgados e punidos como qualquer cidadão deste país. Hoje, aproximadamente 750 indígenas estão cumprindo pena em sistema de regime fechado, dos quais cerca de 65% não falam ou não compreendem a língua portuguesa. Portanto, as leis que punem infanticídio, maus tratos de crianças e qualquer forma de violação de direitos, inclusive os Direitos Humanos, também incidem sobre os indígenas, ainda que suas prisões não sejam por estes motivos.
Qual a justificativa de um PL que verse especificamente sobre estas violações entre os povos indígenas e que promove interpretações equivocadas e sem embasamento científico e técnico, difamando as realidades dos povos indígenas? Ao tornar a pauta redundante, os indígenas seriam, duas vezes, julgados e condenados por um mesmo crime?
Não se trata apenas da defesa do direito individual. Um direito fundamental de toda pessoa é precisamente o de ser parte de um povo, isto é, o direito de pertencimento. E um povo criminalizado tem a sua dignidade ferida.
Durante o último Acampamento Terra Livre (ATL) que aconteceu em Brasília durante os dias 10 e 13 de maio de 2016 e reuniu cerca de 1.000 lideranças dos povos e organizações indígenas de todas as regiões do Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) publicou o “Manifesto do 13º Acampamento Terra Livre” denunciando “os ataques, ameaças e retrocessos” orquestrados contra seus direitos fundamentais “sob comando de representantes do poder econômico nos distintos âmbitos do Estado e nos meios de comunicação”. A nota manifesta ainda “repúdio às distintas ações marcadamente racistas, preconceituosas e discriminatórias protagonizadas principalmente por membros da bancada ruralista no Congresso Nacional contra os nossos povos, ao mesmo tempo em que apresentam e articulam-se para aprovar inúmeras iniciativas legislativas, propostas de emenda constitucional e projetos de lei para retroceder ou suprimir os nossos direitos”.
O manifesto encerra-se afirmando: “PELO NOSSO DIREITO DE VIVER!”, pois é de vida e não de morte que se trata a defesa dos direitos indígenas. Se os nobres parlamentares estão preocupados com a defesa da vida e da dignidade indígenas, que retrocedam neste PL e em tantos outros que os violentam diretamente e que foram elaborados sem sua participação, consentimento e consulta. 
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Referências
AZEVEDO, Marta Maria. Diagnóstico da População Indígena no Brasil. Em: Ciência e Cultura, vol.60 nº4 São Paulo. Out. 2008
ARAÚJO, Íris Morais. Osikirip: os “especiais” Karitiana e a noção de pessoa ameríndia. Tese de doutorado aprovada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2014.
BRUNO, Marilda Moraes Garcia; SUTTANA, Renato (Org.). Educação, diversidade e fronteiras da in/exclusão. Dourados: Ed. UFGD, 2012. 224 p.
BURATTO, Lúcia Gouvêa. A educação escolar indígena na legislação e os indígenas com necessidades educacionais especiais. s.d. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/565-4.pdf. Acesso em: 25 jan. 2017.
FALEIROS, Vicente de P. 2004. “Infância e adolescência: trabalhar, punir, educar, assistir, proteger”. In: Revista Ágora: Políticas Públicas e Serviço Social, ano 1, nº 1. Disponível em: www.assistenciasocial.com.br
MANIFESTO DO 13º ACAMPAMENTO TERRA LIVRE. Disponível em: https://mobilizacaonacionalindigena.wordpress.com/2016/05/12/manifesto-do-13o-acampamento-terra-livre/
MARCÍLIO, Maria L. e VENÂNCIO, Renato P. 1990. “Crianças Abandonadas e primitivas formas de sua proteção” In: Anais do VII Encontro de Estudos Populacionais ou www.abep.org.br
QUERMES, Paulo Afonso de Araújo & ALVES DE CARVALHO, Jucelina. Os impactos dos benefícios assistenciais para os povos indígenas: estudo de caso em aldeias Guaranis. Revista Serviço Social & Sociedade, São Paulo (SP), n.116, p. 769-791, 2013.
SEGATO, Rita Laura. Que cada povo teça os fios da sua história: o pluralismo jurídico em diálogo didático com legisladores. Revista Direito. UnB, janeiro–junho de 2014, v. 01, n.01 66.
TRINDADE. 1999. Trindade, Judite M. B. 1999. “O abandono de crianças ou a negação do óbvio” In: Revista Brasileira de História, Vol. 19, nº 37. São Paulo. p. 1-18.
VENERE, Mario Roberto. 2005. Políticas públicas para populações indígenas com necessidades especiais em Rondônia: o duplo desafio da diferença. 2005. 139 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) ‒ NCT, UNIR, RO, [2005].
* Marianna Holanda é antropóloga, doutora em Bioética e pesquisadora associada da Cátedra Unesco de Bioética – UnB.
Protesto “contra o infanticídio” organizado por grupos religiosos em frente ao prédio do governo do RJ. Foto: Gazeta do Povo, 2015.

25 de janeiro de 2017

Com "probabilidade de mortes", Justiça Federal suspende despejos contra comunidades Guarani Kaiowá


Crédito: Rafael de Abreu

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação - Cimi  
No contexto de violências contra os indígenas no Cone Sul sul-mato-grossense, um alento aos Guarani e Kaiowá da demarcação Dourados Amambai Peguá I - chamada pelo povo de Tekoha Guasu. A 2ª Vara da Justiça Federal de Dourados (MS) suspendeu o cumprimento de despejos envolvendo duas fazendas incidentes nos tekoha - lugar onde se é - Nãmoy Guavira'y e Jeroky Guasu. A decisão, todavia, é provisória e aguarda sentenças aos processos.
As reintegrações de posse foram determinadas no último mês de dezembro, com prazo inicial de despejo a ser cumprido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Como o órgão indigenista tem funções constitucionais inversas, acabou para a Polícia Federal executar a reintegração - o que ocorreria à força. Na última semana, os prazos foram encerrados sem a retirada das comunidades das áreas.
Em ofício à Justiça Federal, o comando da PF argumentou sobre a "probabilidade concreta de mortes durante a execução do provimento jurisdicional". Dando procedência ao ponderado pelos agentes federais, o juiz suspendeu as reintegrações alegando ainda "recentes decisões do STF no sentido de obstar o cumprimento de mandado de reintegração de posse quando houver risco de remoção de grandes contingentes de pessoas".
O Supremo Tribunal Federal (STF) possui jurisprudências contra reintegrações de posse envolvendo territórios indígenas. O que pode influenciar outras situações. São duas fazendas incidentes em cada um dos tekoha com pedidos de reintegração de posse deferidos. Com isso, outros dois pedidos de despejo ainda estão valendo. No entanto, para estes, a Justiça Federal solicitou mais informações aos fazendeiros com prazo estabelecido em dez dias.
Mais dados também foram solicitados pela Justiça federal aos 'proprietários' de duas áreas a serem reintegradas na Reserva de Dourados, que compõem o tekoha Yvu Vera. Casos de despejos também determinados em dezembro pela 2ª Vara num pacote de tensão lançado sobre as comunidades Guarani e Kaiowá na virada de ano. A decisão dos indígenas era e é a de não sair das retomadas e resistir.
No interior da Dourados Amambai Peguá I, município de Caarapó, estão diversos tekoha retomados pelos Guarani e Kaiowá nas últimas décadas - Paí Tavy Terã, Ñandeva, Ñamoy Guavira’y, Jeroky Guasu, Tey’Jusu, Kunumi Vera, Guapo’y, Pindo Roky e Itagua. Sem a conclusão do procedimento demarcatório, os indígenas sofrem sucessivos ataques de pistoleiros e fazendeiros, além dos despejos judiciais.
Em dezembro ainda outro tekoha teve decisão de despejo concedida pela 2ª Vara: Kunumi Vera. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu a retirada da comunidade. No local onde o agente de saúde Guarani e Kaiowá Clodiodi Aquileu de Souza, de 26 anos, acabou  assassinado a decisão foi a segunda tentativa de despejo dos indígenas nos últimos seis meses.
Yvu Vera
De acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), Yvu Vera é uma área de quase 20 hectares que integra a Reserva de Dourados e foi invadida por não-indígenas. Na terra tradicional não vivem apenas indígenas Guarani e Kaiowá, mas também Guarani Ñandeva e Terena. Para a reserva os indígenas foram expulsos de forma violenta de suas aldeias.
Os indígenas retomaram as "propriedades" incidentes em Yvu Vera em fevereiro do ano passado como forma de realocar famílias que saíram da Reserva por falta de espaço físico. Com quase 3.500 hectares, a área reservada ainda na época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na primeira metade do século XX, é ocupada por 13.100 indígenas (Funai, 2015).

24 de janeiro de 2017

Entre o improviso e a maldade: a política (anti) indigenista do Governo Temer

Segundo o presidente, a criação de um Grupo Técnico Especializado para ajudar a demarcação de terras indígenas serviria para "reduzir conflitos"


Indígenas durante a CPI da Funai, em 2015.  AG. BRASIL

ADRIANA RAMOS

Na semana passada o Governo editou duas portarias alterando os procedimentos de demarcação de terras indígenas no país. A primeira, publicada na quarta-feira, dia 18 de janeiro, alterou a forma como as Terras Indígenas (TIs) são declaradas no Brasil. Assinada pelo ministro da Justiça e Cidadania Alexandre de Moraes, a Portaria nº 68 criava um Grupo Técnico Especializado para subsidiar o ministro quanto à demarcação de Terras Indígenas, com representantes da Funai, Consultoria Jurídica, Secretaria Especial de Direitos Humanos e Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.


Além disso, trazia uma série de disposições para modificar o procedimento de demarcação, incorrendo em violações à Constituição Federal e ao Decreto nº 1.775/1996 que regulamenta esse processo. Diante da imediata reação das organizações indígenas e indigenistas, o Governo recuou.
Na sexta-feira saiu a revogação da Portaria nº 68 e a publicação de uma nova, excluindo algumas das ilegalidades, mas mantendo a criação de um Grupo Técnico Especializado (GTE) para tratar de processos de demarcação de TIs, agora com atribuições que reprisam exatamente o que está disposto no Decreto nº 1.775/1996.
Não foi a primeira vez que o Governo se viu obrigado a voltar atrás sobre o tema. Logo que tomou posse, Temer sinalizou à Frente Parlamentar da Agropecuária que o Governo revisaria todas as portarias declaratórias e decretos de homologação de Terras Indígenas publicados ao final do Governo Dilma Rousseff.
No fim do ano passado, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma proposta de decreto que estaria sendo elaborada pelo Ministério da Justiça. Tal proposta alteraria o rito de demarcação de terras indígenas, restringindo drasticamente os direitos territoriais dos índios sobre suas terras, abrindo essas áreas a empreendimentos econômicos e permitindo até a revisão de processos de terras já homologados, entre outros pontos. Mais de 130 organizações como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Central Única dos Trabalhadores (CUT), GreenpeaceMovimento Nacional de Direitos Humanos e Associação Brasileira de ONGs (Abong) repudiaram a proposta que, na prática, acabaria com as demarcações de Terras Indígenas.
Na ocasião, o ministro negou que houvesse a minuta ou qualquer intenção de alterar o procedimento de demarcação. A portaria veio logo depois, demonstrando que a intenção do ministério existia sim.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo na quinta-feira (19), o presidente Michel Temer afirmou que a medida visava reduzir conflitos. É a visão equivocada de que o conflito está na garantia constitucional da demarcação das terras indígenas. Ao contrário, como bem lembrou o subprocurador-Geral da República, Luciano Mariz Maia, coordenador da 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF), em entrevista ao ISA, “o objetivo não é assegurar certeza e segurança jurídica para as demarcações, mas assegurar que elas não se realizarão”.
O recuo do Governo não surpreende. As denúncias e reações negativas às decisões tomadas expuseram suas intenções espúrias e anticonstitucionais. Com maldade evidente, o Governo desmente, recua, mas deixa claro, pela falta de transparência, que sua motivação não é das melhores.
As nomeações para a Funai também foram precedidas dessa dinâmica. Em setembro de 2016 Temer afastou da presidência da Funai Artur Nobre Mendes, que ocupava o cargo interinamente desde a saída do ex-senador João Pedro Gonçalves, em junho. Em seu lugar foi nomeado, ainda como interino, um assessor especial do Ministério da Justiça, Agostinho do Nascimento Netto.
Desde junho de 2016 foi aventada a intenção de nomear um general para a presidência do órgão. Diante de questionamentos do movimento indígena pela inexistência de conhecimento ou experiência do indicado, o Governo recuou da nomeação do general Roberto Sebastião Peternelli Júnior, filiado ao Partido Social Cristão (PSC). Surgiu então o nome do general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas, assessor de Relações Institucionais do Comando Militar da Amazônia, em Manaus (AM). A Casa Civil determinou que a Secretaria Especial de Saúde Indígena - Sesai - financiasse o deslocamento de índios para Brasília para pressionar o Ministério da Justiça a nomear os indicados do PSC para cargos de direção na Funai.
Como o movimento indígena manteve sua reação negativa à ideia de o órgão indigenista ser comandado por um militar, a solução dada pelo Governo foi nomear Franklimberg para a Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável, e Antônio Fernandes Toninho Costa para presidente, ambos indicados pelo PSC.
De acordo com notícias publicadas na imprensa, a nomeação de Antônio Toninho Costa aconteceu logo após o presidente Temer cobrar do ministro Alexandre de Moraes uma solução para a questão da Funai. Temer foi informado que o órgão não tinha um presidente efetivo durante a reunião que discutiu a retomada do crescimento econômico, quando a demarcação de terras indígenas foi apontada como empecilho para a finalização de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
O pacote do PSC para a Funai é preocupante, visto que o partido está alinhado com a prioridade dada pela bancada ruralista no Congresso de desconstituir os direitos territoriais indígenas. Que ninguém se surpreenda: atuando de forma errática, o Governo Temer está contribuindo para a eclosão de incidentes graves nas situações locais de conflito, que esperam há anos por soluções das autoridades.
Adriana Ramos é coordenadora do Programa Política e Direito Socioambiental, do Instituto Socioambiental.

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